Deixe morrer

Mais um ano se encerra. Mais um ano de arrependimentos, de raivas, tristezas, salpicado de alguns poucos momentos bons, e uma ou outra conquista minúscula — daquelas que, se ainda fosse otimista (e ainda tivesse algum ideal de mundo), fariam com que pensasse que tudo valeu a pena por conta delas. Para o otimista as poucas coisas boas redimem o mar de lama que a vida é. Para mim, não.

Pintura de Raymond Douillet

Quando Deus nos dá limões, não acho que devemos fazer limonada e também não acho que devemos arrumar outros deuses — nós não somos tão autossuficientes quanto imaginamos ser hoje em dia, na era do culto ao empreendedor e autorealização. Penso que se os deuses nos dão cartas terríveis, e elas sempre são, devemos nos abster da reprodução e parar de trazer novas vítimas para este liquidificador de carne que é a vida orgânica.

Paremos de alimentar os deuses. Eles só estão vivos porque se alimentam desta desgraça toda. Devemos deixá-los morrer. Sísifo nunca vai ser feliz. Quem diz que devemos imaginá-lo feliz ou não sabe do que está falando ou tem segundas intenções. Mas é uma ideia que vende, infelizmente. "Todo o imenso sofrimento pelo qual passamos durante a vida não tem sentido, porém somos livres e podemos forjar nosso próprio caminho, que legal!" Não é legal. É uma porcaria. É revoltante, e as opções efetivas que nos restam são poucas.

Não compro mais isso. Você pode se perguntar: "ué, se você não compra, deixe-me comprar, tenho o direito de forjar o sentido da minha vida e de meu sofrimento." Tudo bem. Você tem sim. Só acho problemático no momento que você e qualquer outra pessoa cria outras vidas para os substituírem nesta linha de montagem cruel, que produz protótipos descartáveis cujo o propósito real é perpetuar o processo, nada mais. Façamos o que quisermos com as nossas vidas. Mas não precisamos trazer outras para se ferrarem aqui.

Tudo bem. Se depois de todos esses alertas, ainda quiser produzir novos protótipos, não tem problema. É seu direito. Mas saiba: você é o responsável por tudo. Se ele ou ela que você criou pegar um resfriado, terá acontecido pela sua decisão. Se quebrar um braço brincando no pátio do colégio, a mesma coisa. Se tiver leucemia, o mesmo. Se ele se tornar um político corrupto ou um serial killer, também. Caso nada disso aconteça e, anos depois de você ter morrido, ele ou ela morram de velhice, com problemas cardiovasculares ou dolorosos tumores malignos, ainda assim o responsável terá sido você.

Não tem problema nenhum. Se quiser assumir essa responsabilidade apesar de saber de tudo isso, vá em frente. Só não minta para si mesmo. Isto daqui não é um paraíso, nunca foi e nunca vai ser. Esqueça Utopia. Não vai chegar. E mesmo se chegar, não vai chegar a tempo de salvar seus filhos, netos e bisnetos de sofrimentos terríveis. Eles terão sido os intermediários entre o hoje e a Utopia, e portanto sofrerão tão ou mais do que nós sofremos. Mas, se ainda assim achar que vale a pena, vá em frente.

Entra ano, sai ano, é tudo a mesma coisa. Algumas melhoras incrementais no saber e na tecnologia, mas a condição humana continua a mesma de sempre, porque a condição humana é apenas um caso particular da condição de toda a vida senciente, capaz de sentir dor. Nós apenas temos o adicional de termos uma consciência reflexiva, o que potencializa ainda mais as dores do mundo em nossas mentes. Não bastassem as dores físicas, temos todo um universo interior de dores, dúvidas e ressentimentos.

Meu voto para o ano novo é que mais pessoas percebam que devemos deixar isso morrer. Celebremos nossas vidas, façamos o melhor possível com elas, mas deixemos o mundo em silêncio depois de partirmos.