Eviscerado

Uma mosca consciente teria que confrontar exatamente as mesmas dificuldades, os mesmos tipos de problemas insolúveis que o homem. Melhor ser um animal que um homem, um inseto que um animal, uma planta que um inseto, e assim por diante. Salvação? O que quer que diminua o reinado da consciência e comprometa a sua supremacia. (CIORAN, O Inconveniente de ter nascido)

Tiradentes Esquartejado, pintura de Pedro Américo

O ser humano vive iludido, esse é o seu diferencial. Na natureza — da qual o homem já se separou há muito tempo — os animais vivem e morrem com pouca consciência da terrível condição a que estão sujeitos. Um antílope, que passa a vida fugindo de algum grande felino, não tem a menor capacidade de refletir sua condição. Mesmo os animais que não são predados sofrem acidentes, têm suas feridas infeccionadas e, pouco a pouco, de maneira dolorosa, veem suas vidas se esvair. Seja por doença, acidente ou para servir de alimento, os animais deixam este mundo para o nada do qual vieram sem ter a mesma consciência que nós homens temos. De certa forma, é uma benção, pois quanto mais consciente do que a vida realmente é, pior.

Parece-me uma boa analogia, ou uma boa alegoria, pensar que o mundo foi criado por um Demiurgo malévolo, do qual seria possível nos libertar. Uma comparação ainda melhor, ao meu ver, é a cosmologia budista: toda a vida está presa no eterno ciclo de nascimento e morte, o samsara, do qual podemos escapar através da meditação sobre o que nos prende a ele. Em ambos os casos, o inferno é aqui. Contudo, aqui estamos, e por mais que eu quisesse que essas visões representassem a realidade — porque, se assim fosse, haveria alguma esperança —, a vida apresenta-se como um fenômeno transiente, efêmero, que existe a partir de uma realidade material mecanicista, e é derivada de acidentes determinísticos, ou indeterminísticos — o universo ser indeterminado não muda em nada o componente negativo da vida, aliás, o torna pior, pois nos faz ainda mais azarados.

Outro dia li uma matéria muito bem intencionada, que tratava do pobre cachorro morto à pauladas no estacionamento de uma grande rede de supermercados. A matéria também tratou de agressões à seres humanos. Sim, o ocorrido com o coitado do cão foi indescritivelmente terrível. Mas a escritora utilizou uma frase que não consegui tirar da cabeça, pois ela está no cerne daquilo que me move a estudar os fundamentos da realidade: "quantas outras mais agressões terão que acontecer até que alguém comece a olhar atentamente para as violências sofridas por humanos e animais?!" Apesar de bem intencionada e eu concordar com o espírito da matéria, surpreende-me o espanto com o mundo em que vivemos, e surpreende-me a esperança que ilude a todos nós na maior parte do tempo. A resposta para a pergunta obviamente é: infinitas agressões serão necessárias, pois nunca viveremos em um mundo onde a violência não exista.

O nosso sistema solar tem oito planetas e, até onde sabemos, em apenas um há violência, dor, fome, doença,  morte, tristeza, choro e ranger de dentes. Por um lado é bom a maioria dos homens desejarem a ilusão. Isso os poupa de utilizar a internet para ver o lado sombrio da realidade. Infelizmente, não foi o meu caso. Acompanho as notícias e as estatísticas. Em certas ocasiões, chegaram até mim páginas de internet que preferia não saber que existem. Por exemplo, aconselho a nunca assistirem os incontáveis vídeos de torturas e execuções filmados pelos cartéis mexicanos, pois foi através de um que aprendi que um ser humano não desmaia de dor ao ter a pele do torso e da cabeça arrancada com objetos cortantes. Era melhor que não existissem computadores e vivêssemos todos no campo, sem eletricidade, porque ninguém deveria ver esse tipo de coisa, nem por acidente. Notícias escritas (link para exemplo) e estatísticas áridas já são brutais o suficiente para quem tem um mínimo de intelecto.

Pode-se argumentar que as estatísticas e as notícias que retratam a violência no mundo provam que devemos lutar por um mundo menos violento, mais harmônico. Tudo bem, concordo, mas é uma luta constante, que nunca vai acabar. Não existe um ponto no futuro da humanidade que, caso trabalhemos duro, irá propiciar uma sociedade utópica sem nenhum tipo de violência. É um conto-de-fadas para adultos que muitos creem, infelizmente. Mas, como já escrevi, os homens precisam de alguma ilusão para levantarem da cama e tocarem a vida, seja ela Papai-do-Céu ou a irmandade universal. Temos que lembrar que a violência que cometemos uns contra os outros é apenas uma das violências que o humano — e a vida senciente como um todo — enfrenta ao existir. Não faltam doenças e acidentes para tornar nossas vidas um oceano de sofrimentos e morte (quase sempre) dolorosa.

Em julho de 2016, no estado da Califórnia, Estados Unidos, dois pais saíram do carro em que estavam com suas famílias depois de sofrerem um pequeno acidente na estrada. Um caminhão que passava pela estrada naquele momento acabou acertando a traseira do veículo estacionado no acostamento, fazendo-o cair em uma pequena ribanceira. As esposas e filhos dos dois homens, ainda vivos, ficaram presos dentro do carro, agora totalmente amassado. O veículo começou a pegar fogo, mas as famílias não conseguiam sair pelas portas, que estavam emperradas, nem pelas janelas. Equipes de socorro chegaram, mas não conseguiram se aproximar devido ao aumento das chamas. Mesmo assim, os pais, desesperados, continuaram tentando abrir as portas emperradas, sem sucesso. Eles assistiram suas mulheres e crianças gritarem e queimarem até a morte, enquanto tinham suas mãos, braços e rostos queimados pelo fogo intenso. (Link para a notícia)

Pode não ser hoje, pode não ser amanhã, mas algo, algum dia, virá para nos destroçar, seja física ou psiquicamente. Geralmente mais de uma coisa vem, e sempre quando não esperamos. O mundo não é bonito. Nunca foi e nunca será. A vida senciente é um fenômeno infeliz e, quanto maior a consciência, pior para aquele que sente. Quando digo que devemos pensar nos nossos filhos velhos, sozinhos, morrendo com dor em uma cama de hospital, estou pensando em um dos melhores futuros que nossos filhos podem vir a ter. Há tantas coisas piores esperando por eles. Aqueles que não exercitam suas mentes e condenam novas vidas à este moedor de carne existencial que é a vida — como se estivessem lhes dando o bilhete premiado de loteria — são o ponto de partida de uma dor imensa. Não há nada que possa ser dito ou acreditado que mudará esse dado. A vida não é um presente e temos muito azar de termos nascido.
Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um e outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara, loucura, morte, etc. (SCHOPENHAUER, Parerga e Paralipomena)