Não é “cortina de fumaça”

Já faz algum tempo que o termo “cortina de fumaça” tornou-se uma explicação para tudo o que o presidente Bolsonaro faz. Fico imaginando o momento em que ele sair na rua e atirar contra a cabeça de uma criança em frente às câmeras de televisão. Os analistas dos jornais e da internet dirão algo como: “está vendo! Isso não passa de uma estratégia para desviar a atenção do caso das rachadinhas de Flávio Bolsonaro.” Pode não parecer, mas é quase isso que vocês fazem ao afirmar que as barbaridades mais danosas cometidas pelo presidente são meramente parte de uma estratégia de desvio de foco.
Vlad III, o empalador. Gravura germânica de 1499.

Não que tal estratégia não existe e que o Bolsonaro não possa ter se utilizado dela. Não que inadvertidamente ele acabe de fato desviando o foco dos crimes de corrupção cometidos por seus filhos. Mas penso que aqueles que enfatizam demais em explicar tudo o que o presidente faz como sendo desvio de foco são pessoas que leram ou estudaram um pouco de filosofia política e acabam acreditando que Bolsonaro é uma espécie de Maquiavel piorado. Segundo essas análises rasas, o presidente seria um estrategista que segue os seus instintos, já que todos sabemos que ele nunca leu uma linha do que Maquiavel e seus comentadores escreveram.

Nessa ânsia de querer mostrar um conhecimento um tanto quanto superficial, muitas pessoas de esquerda, inclusive, cometem o pecado de acreditar que tudo gira em torno de questões puramente relacionadas à materialidade, ao acúmulo e à produção. Tais aspectos são importantíssimos e se relacionam sim com tudo o que nós fazemos, claro. Mas há um exagero de análise que impede os proponentes da tese da “cortina de fumaça” de enxergarem algumas coisas óbvias.

Desde o início, Bolsonaro estimulou teorias da conspiração sobre a covid-19. Ele incentivou aglomerações e a falta de precauções, algo que contribuiu diretamente para o Brasil ter 180 mil mortos em nove meses de pandemia — isso em números oficiais, na verdade há mais mortos. Já há algum tempo (e com cada vez mais intensidade), o presidente vem ativamente propagando teorias do movimento antivacina, o que sabemos que contribuirá para que dezenas de milhões não queiram se vacinar contra a covid-19. Muitos falam que ele pode ser punido pelo Tribunal Penal Internacional de Haia, mas não precisa: contribuir para a disseminação de um patógeno perigoso é crime pela nossa própria legislação. No caso, ele é um chefe de estado estimulando o povo a se contaminar, o que contribuiu para sermos um dos países com maior número de infectados e de mortos.

E sim, ainda há a acusação contra Bolsonaro na corte internacional de Haia, que está sendo apreciada. Ou seja, segundo a lógica dos que defendem a tese da “cortina de fumaça”, Bolsonaro comete crimes contra a humanidade para desviar o foco da rachadinha do Flávio, e das fake news de Carlos Bolsonaro. Temos quase 200 mil mortos e um crescente número de pessoas dizendo que não tomará a vacina de jeito algum, tudo isso minimizado e incentivado pelo presidente. Contudo, segundo muitos, isso não passaria de cortina de fumaça, um desvio de foco.

O que essas análises fracas não percebem é que isso seria equivalente a dizer que, caso Bolsonaro saísse na rua com uma M61 Vulcan e fuzilasse uma multidão, ele estaria apenas tentando desviar o foco da corrupção dos filhos. Ele estaria cometendo um crime ainda maior e várias vezes mais grotesco para desviar o foco de crimes menores dos filhos. Entendem como não faz sentido algum?

Bolsonaro poderia agora estar enchendo a boca e dizer: “sou o presidente que protegeu o país da pandemia”. Mas não. E por que não? Porque ele realmente acredita nos movimentos anticiência e obscurantistas de pessoas como Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo. Ele passou a vida inteira dele, mesmo antes da política, militando pelo o que há de mais reacionário. As pessoas parece que esquecem, mas ele tentou explodir bombas e culpar os comunistas para impedir o fim da ditadura militar na década de 1980, o que resultou na sua expulsão do exército. Ele não é só um oportunista. Sim, ele e seus filhos fizeram rachadinhas, desviaram dinheiro público. Mas eles também são fanáticos dispostos a matar e morrer pelas suas crenças.

Se o presidente quisesse apenas roubar e acumular patrimônio de forma indevida, se ele quisesse apenas encobrir os crimes dos filhos, ele poderia simplesmente ter ficado onde estava, no baixo clero do legislativo. Ele e seus filhos já tinham acumulado um patrimônio totalmente incompatível com a atividade que exerciam, e tudo isso só veio à luz agora que ele ganhou projeção nacional. Se o objetivo fosse apenas esconder sua corrupção, era só ele não ter sido candidatado à presidência em primeiro lugar. Não. Cortina de fumaça não explica o comportamento do presidente. Ele é dodói da cabeça mesmo. O sujeito acredita sim no movimento antivacina e em outras coisas tão bizarras quanto. Estamos nas mãos de um lunático.

Não faz sentido algum porque o presidente podia estar desviando o foco dos crimes dos filhos agindo de forma oposta: ele poderia muito bem ter aproveitado a oportunidade para aumentar sua popularidade, liderando os esforços contra a covid-19 desde o começo. Porém, ele preferiu sabotar qualquer esforço sério. Não havia nenhuma necessidade, nem mesmo estratégica, para ele contribuir com a morte de mais de 180 mil brasileiros só para encobrir a corrupção de Flavio e Carlos. Cometer crimes contra a humanidade... para desviar foco de rachadinha?


por Fernando Olszewski