Sobre ideologias e economia política: addendum (ou: qual o benefício de se ter filhos no sistema capitalista em que vivemos?)

Após conversar com alguns amigos, dei-me conta de que certos tópicos abordados no meu último texto, "Sobre Ideologias e Economia Política", precisam ser esclarecidos e expandidos. Creio que as razões pelas quais não defendo o liberalismo (há bastante tempo) e o capitalismo (mais recentemente), pelo menos na sua concepção de força mágica capaz de trazer crescimento, bem-estar e oportunidade para todos, ficaram claras.

Naquele texto, mencionei que existem aqueles que consideram a social-democracia como apenas um tipo de capitalismo no qual a classe burguesa, detentora dos meios de produção, promove um apaziguamento da luta de classes, dando à classe trabalhadora o Estado do bem-estar social, cheio de benesses—porém, no final das contas, a classe proletária continua subjugada. Até concordei que talvez essa ideia esteja correta. Também escrevi que, mesmo assim, ainda preferiria a social-democracia do que a economia de comando central. É sobre esse  ponto que preciso esclarecer algumas coisas.

A razão pela qual não defendo o comunismo (i.e. regimes marxistas-leninistas e suas variantes) é a seguinte: no sentido que considero como sendo o mais historicamente correto do termo, e no que concerne à economia política, esse sistema significa propriedade e administração estatal centralizada dos meios de produção, realizada por um governo que se diz representante legítimo da classe proletária—e, sendo assim, discordo que este modelo seja bom. Discordo porque, ao invés de existirem grandes capitalistas com muito poder econômico influenciando uma democracia burguesa, no comunismo—definido da maneira que escrevi acima—temos um comitê central partidário com muito poder—e isso o torna apto a ser autoritário, quer queiram ou não os seus defensores. Claro, podemos dizer o mesmo do capitalismo, mas sobre isso falarei mais adiante.

Quando o socialismo é tomado pela veia autoritária que descrevo (e a qual denominei de "comunismo" para simplificar a explicação, muito embora o termo não tenha esse significado originalmente), os trabalhadores não têm voz, não têm sindicatos livres da pressão do comitê central, não têm nada, a não ser a capacidade de obedecer os senhores que estão no topo. Dentro desse sistema, os dirigentes tornam-se, de fato, uma espécie de nova burguesia. Ou seja: de nada adiantou derrubar o capitalismo. É por isso que não defendo a volta de nada parecido com os regimes falidos da antiga Cortina de Ferro. A questão do autoritarismo era uma crítica e uma preocupação de pensadores anarquistas e sindicalistas já no século XIX, enquanto Marx ainda era vivo. Muito antes da implementação de um governo proletário ou de vanguarda na Rússia, já haviam aqueles que sabiam dos potenciais problemas. E deu no que deu: autoritarismo, cerceamento da liberdade e perseguições.

Infelizmente, os socialistas que não são autoritários quase nunca triunfaram ao longo do século XX. Há quem diga que não existam, principalmente os liberais e conservadores, porque, para eles, qualquer variante do socialismo é contra a propriedade privada dos meios de produção, o que já é anátema para a direita. Sendo assim, para liberais e conservadores, qualquer tipo de socialismo impõe aos indivíduos uma ordem diferente da ordem de "liberdade"—e se você não tem liberdade para ser dono dos meios de produção, na concepção da direita, você é um "escravo do Estado" ou "da coletividade". No entanto, existem as social-democracias que triunfaram e que prosperam até os dias atuais. Não são sistemas perfeitos, longe disso—até porque perfeição não existe neste universo que habitamos. Mas em termos de qualidade de vida e liberdade individual, são muito melhores, comparativamente, do que outros sistemas. O que quero dizer é: a qualidade de vida tem sido melhor na Noruega nos últimos 60 anos do que nos Estados Unidos, do que na antiga União Soviética e do que na antiga China maoista. Porém, já falei disso no texto anterior, não irei me estender novamente sobre esse assunto.

Agora, vou considerar alguns pontos que não falei a respeito do capitalismo, não mais definido aqui como qualquer economia de mercado—afinal, existe economia de mercado na Noruega, mas não podemos dizer que esse país possui um sistema igual ao dos Estados Unidos ou do Brasil—mas apenas as economias liberais: países que beneficiam os ricos com baixos impostos, que subsidiam grandes capitalistas, etc. Dessa forma, não vou incluir países que taxam os ricos e promovem um excelente nível de bem-estar social. Ou seja: não incluirei aqui Noruega, Suécia, Dinamarca, etc, na lista, muito embora essas nações possuam economia de mercado e uma classe burguesa. O ponto de partida para o presente texto é o seguinte: as pessoas estão certas quando criticam o capitalismo por ele ser um sistema político-econômico que promove salários baixos, desigualdade econômica, pobreza, perpetuação de uma classe no topo do poder econômico político ao mesmo tempo em que as massas são iludidas e levadas a acreditar que são livres. Boa parte, senão a maioria das críticas genéricas disferidas contra o sistema capitalista, são verdadeiras. O capitalismo é sim uma bela de uma porcaria.



A romantização feita do capitalismo por alguns de seus defensores—e até por aqueles que nem gostam muito dele, mas concordam comigo que a economia de comando central é bastante falha e tende ao autoritarismo—tem beirado ao absurdo. O capitalismo é muito ruim, por todas as razões que já falei no texto anterior, mas também por outras mais. A mesma crítica que faço ao comunismo, de que ele inevitavelmente torna-se autoritário ao concentrar as decisões econômicas nas mãos de poucos dirigentes, pode e deve ser feita ao capitalismo. Corporações capitalistas são exatamente isso: economia de comando. Podem ser sofisticadas e eficientes, mas elas são economias de comando. Em uma corporação, manda quem está no topo: seus CEOs, seus acionistas majoritários, etc. Eles estão no controle das decisões econômicas. Muitas vezes, as decisões tomadas por eles ferram, inclusive, os pequenos acionistas da corporação, que esperam ganhar alguma migalha com seu sofrido investimento.

Essas empresas—ou melhor, quem realmente controla essas empresas—gastam bilhões em lobby. Essas pessoas controlam a democracia burguesa. Ao contrário do que dizem liberais e conservadores, não é uma crítica inválida chamar os países capitalistas de democracias burguesas. Os liberais vão dizer "mas essas corporações só existem porque existe um Estado grande". Aqui dou a mesma resposta que dei no texto anterior: não é o Estado grande e malvado que necessariamente cria grandes corporações ou monopólios—muito embora ele crie alguns monopólios, mas isso é outra história. O que ocorre é que certas empresas vencem a competição, tornam-se grandes o suficiente e apropriam-se da política. No máximo, corporações e Estado crescem juntos, em simbiose. Mas não há uma grande guerra entre Estado e setor privado, como gostam de afirmar aqueles que estão na direita. O setor privado não é nem nunca foi o herói moral da civilização humana.

A dicotomia sociedade particular produtiva boazinha versus Estado malvado ineficiente que só traz problemas não é uma lei inexorável da natureza, algo que acreditava quando fui liberal. Só existe essa dicotomia quando alguns políticos menos vendidos aos interesses dos ricos tentam taxar as grandes fortunas (algo que apoio, mas raramente é feito) ou se apropriar dos meios de produção. Isso não é novo. O poder econômico particular sempre se refestelou com o poder político. Desde que o mundo é mundo, ricos têm privilégios concebidos pelo detentor do monopólio legal da força física—o Estado. É tentador concordamos com os liberais na sua crença a respeito das ineficiências e maldades só surgirem graças ao intervencionismo do Estado, mas isso é falso. Mesmo se viéssemos a aboli-lo, um novo Estado surgiria do poder privado, e as mesmas coisas aconteceriam.



O Estado nada mais é do que uma empresa que usou da força para dominar a sociedade. Mas não defendo a anarquia. Penso ser possível a existência de um contrato social menos danoso—meu puxa-saquismo das social-democracias nórdicas é justamente isso. Tendo a acreditar que aqueles países têm uma fórmula menos danosa de organização social. Se é possível ou não copiar esses sistemas, realmente não sei. Há quem diga que o Brasil já é uma social-democracia, pelo menos desde a Constituição de 1988—mas o Brasil seria uma social-democracia que não deu certo, já que temos um Estado de bem-estar social bastante ineficaz e corrupto. Nossos hospitais, educação e segurança públicas são ruins, na média. Concordo. Porém, dá para defender a tese de que interesses particulares e patrimonialismo (tratar o público como se fosse privado) são a causa dos nossos serviços públicos serem ruins. Podemos analisar da forma que for o caso do Brasil, mas o capitalismo continuará sendo uma merda. O Brasil ser uma social-democracia que não funcionou não valida o capitalismo liberal como alternativa. O capitalismo liberal não irá resolver nenhum de nossos problemas.

No texto anterior, escrevi sobre o salário real dos trabalhadores americanos estar praticamente estagnado desde meados da década de 1970, muito embora a produtividade desses trabalhadores tenha aumentado bastante de lá para cá. O lucro das grandes empresas e do setor financeiro, no entanto, só aumentou nesse meio tempo. As classes média e baixa daquele país estão estagnadas, ou até retrocedendo—muito embora ainda sejam bem mais ricas do que as nossas classes média e baixa. Segundo alguns economistas, essa é uma tendência mundial. Há algo de errado nisso, e esse algo é achar que o capitalismo,  sem intervenção estatal e sem redistribuição de renda na forma de impostos sobre os mais ricos é capaz de gerar, espontaneamente, uma classe média. Não é. Liberalismo não beneficia os pobres nem a classe média.

E, com isso, chego ao ponto principal deste adendo: por que ter um filho num mundo de merda destes? O custo de um filho do nascimento até os 18 anos de idade, nos Estados Unidos, nunca foi tão alto. Varia de região para região, de estado para estado, claro. Mas a média nacional, calculada em 2014 pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, é de 245.340 dólares (304.480 dólares se ajustarmos para a inflação projetada). Isso é mais do que preço médio dos modelos de Ferrari ou Lamborghini vendidos nos Estados Unidos. Algo me diz que o custo de um filho em outros países capitalistas não é menos absurdo. Séculos atrás, antes da era industrial, antes do capitalismo moderno, além da euforia biológica causada nos pais, havia uma utilidade real na procriação. Podemos descontar o fato de que um trabalhador servil medieval trabalhava menos dias por ano do que qualquer assalariado do mundo moderno—ou seja, ele tinha mais tempo livre—algo que, novamente, liberais dirão que não importa, já que a vida medieval era uma porcaria. No entanto, tanto esse trabalhador quanto outros tantos trabalhadores, nas eras passadas, tinham um porquê de colocar uma nova pessoa no mundo, além do fator sentimental.

Esse porquê era a ajuda que uma nova pessoa traria, em termos de mão-de-obra, na lavoura, carpintaria, etc, além do auxílio na defesa da família, tribo, feudo ou o que quer que seja. Havia uma razão lógica, além da emocional, para se ter um filho ou filha. Mesmo existindo dominantes e dominados nas eras passadas, havia uma função na procriação, que aumentava o bem-estar da família e do grupo. Por mais que os senhores do passado também tomassem boa parte do que era produzido e tivessem regalias, ainda existia um lazer maior para os servos celebrarem suas vidas, através de rituais religiosos, festas, etc. Já um assalariado moderno, seja ele pobre (um gari) ou membro da aristocracia salarial (um médico ou engenheiro), não tem razão alguma para ter cria além de motivos emocionais. A utilidade é negativa. Celebrar a vida dos filhos e da família na era contemporânea custa muito dinheiro. Além disso, o tempo de lazer é bem menor—e ainda há quem diga que se trabalha pouco, e que férias longas são regalias de países desleixados...

O custo é muito alto. Por mais que um filho se dê bem na vida em termos profissionais, as chances são extremamente baixas dele ter uma ascensão social absurda. Dificilmente ele se tornará  um Lionel Messi ou um Mark Zuckerberg. Aliás, as chances são cada vez menores de grande ascensão social. Terão sorte de pertencerem à uma aristocracia salarial, que encolhe cada vez mais com o passar do tempo—no desenrolar do século XXI, robôs serão capazes de tomar os empregos não apenas de motoristas profissionais e atendentes de mercado, mas de médicos e engenheiros, também. A única justificativa de se colocar um filho no mundo capitalista moderno de maneira planejada é a emocional. No resto todo, o saldo é negativo. Pessoalmente, diria que a vida é uma imposição, não uma escolha—mas isso é assunto para um outro texto, e baseia-se num tipo de pensamento que expus no texto "A Los Muchachos de Colombia", que é filosofia anti-natalista e pessimista; mas essa filosofia não vem ao caso aqui.

No capitalismo, quem ganha mais com a reprodução das massas são os que estão no topo das mega-empresas, das grandes corporações e das grandes indústrias do mundo. Ganham mão-de-obra barata, além de novos consumidores. E, da mesma forma que em uma economia de comando central, os que estão em posição de comando na sociedade capitalista têm privilégios inacessíveis à prole. Os detentores dos grandes meios de produção têm privilégios inacessíveis aos peasants, por mais privilegiados que uns ou outros camponeses sejam. Não se iludam: a prole assalariada, ganhando mal ou bem, ainda é prole na ótica dos capitalistas. Eles não se importam com as massas para além de sua capacidade de trabalho e consumo.



Quando bilionários nos Estados Unidos são conservadores e apoiam o fim do direito ao aborto, por exemplo, há de se pensar que não estão apoiando porque têm valores morais cristãos ou algo do tipo. Bilionários não possuem valor moral algum, se eles aderissem à alguma ética racional, não seriam bilionários. Eles apoiam a proibição do aborto simplesmente porque querem mais consumidores comprando as porcarias que vendem, e quanto mais pessoas desesperadas existirem, menor será o custo mão-de-obra. A vida sempre foi uma merda. O passado não era bom. Só que glorificação deste presente mercadológico é nojenta. 

Liberais podem criticar o que escrevo aqui dizendo coisas como: "é fácil criticar o capitalismo usando um computador criado e fabricado no sistema capitalista." Ao responder esse tipo de crítica, não posso ignorar o fato de que, sem subsídios do governo americano, muitas das inovações tecnológicas que hoje são comuns não existiriam. Não foi o liberalismo que nos trouxe a internet e os computadores modernos. Capitalistas tinham pouco ou nenhum interesse em financiar boa parte das inovações que transformaram nosso mundo—foram os governos que se interessaram, geralmente por questões militares e de defesa, ao longo do século XX. Essa crítica é tosca. Dizer que não posso criticar o capitalismo porque tudo o que possuo é inventado ou produzido no capitalismo é o mesmo que dizer que um escravo não poderia reclamar da sua condição, porque seu alojamento e comida eram produtos no sistema escravocrata. Também equivale a dizer que  um servo feudal também não poderia reclamar da sua condição servil, porque suas ferramentas de cultivo eram inventadas e produzidas no feudalismo, e assim por diante.


Referências:
1. Statism and Anarchy
2. Letter to La Liberté
3. The Soviet Union Versus Socialism
4. The Nationalities Question in the Russian Revolution (Rosa Luxemburg, 1918)
5. This Is How Much It Costs To Raise A Child In The U.S.
6. How Much Does It Cost to Raise a Child?
7. https://www.truecar.com/prices-new/ferrari/
8. https://www.truecar.com/prices-new/lamborghini/
9. Why a medieval peasant got more vacation time than you