"A Chegada", determinismo e apatia

Atenção: este texto contém spoilers do filme A Chegada (2016) e do quadrinho/filme Watchmen (1986-1987/2009).

Recentemente assisti A Chegada. O filme é muito bom. Excelente trilha sonora. Inclusive me surpreendi ao escutar trechos idênticos aos da trilha sonora do filme A Ilha do Medo, de Martin Scorsese—refiro-me à música On the Nature of Daylight, do compositor Max Richter. Fiquei grato de não ser mais uma história que fala de guerra entre humanos e alienígenas, mas não achei ela tão cerebral e complexa quanto alguns críticos gringos têm falado—Rotten Tomatoes, cof cof. Apesar disso, a narrativa tem um conceito profundo, que desagrada muita gente, mas que gosto bastante.

Resumindo muito e pulando por cima dos detalhes, A Chegada conta a história de uma linguista americana tentando decifrar a linguagem escrita de seres extra-terrestres que acabaram de estacionar um espaçonave no estado de Montana, nos Estados Unidos. Outras onze ou doze naves alienígenas também pousaram em lugares aleatórios ao redor do mundo. Durante esse tempo muitas confusões acontecem, os ânimos se acirram e uma guerra quase estoura—mas, graças a Zeus, tudo acaba bem.

A coisa mais importante da história é o que os extraterrestres queriam: uma troca com os seres humanos. Eles nos dariam sua linguagem (que percebe passado, presente e futuro ao mesmo tempo e por isso é capaz de saber o futuro) em troca da ajuda humana para salvar a espécie deles daqui a três mil anos. Os alienígenas sabiam que necessitariam da nossa ajuda daqui três mil anos por terem uma linguagem onde o tempo não é entendido de maneira linear. Basicamente o tempo, na linguagem deles, é encarado como um bloco sólido onde todas as coisas já aconteceram.

Na minha humilde opinião de expert em nada, a capacidade de uma língua escrita saber o futuro é algo que ultrapassa a ficção científica e torna-se mágica. Não digo isso por achar que só a magia seria capaz de prever o futuro, mas por causa do que entendo por determinismo. Determinismo é a ideia de que todos os eventos que ocorrem no universo são frutos de eventos e condições anteriores. A ideia, claro, possui diferentes graus. Mas é importante saber que não é necessário nenhuma mágica. Não é fatalismo. Não é como se os deuses tivessem escrito nosso destino. Porém, para o determinismo, o destino está lá. O que me faz pensar que a linguagem alienígena do filme é mágica não uma crença de que o futuro está em aberto e que estamos em total controle das nossas vidas (não tenho essa crença), mas o fato de que seria impossível termos todas as variáveis necessárias para calcular o futuro de maneira exata.

Por exemplo, para Albert Einstein, todos os eventos que aconteceram no passado e ocorrerão no futuro são falsos ou verdadeiros—não há espaço para incertezas. Nós podemos não saber, mas nossa ignorância não significa que o gato "está vivo e morto ao mesmo tempo".1 Ele, assim como outros físicos clássicos antes dele, acreditava que se fosse possível saber a posição de cada partícula do universo desde o seu início poderíamos calcular exatamente toda a história do universo—inclusive toda a história da vida, dos seres humanos, etc.2, 3 A revolução quântica e as incerteza que ela trouxe ao mundo das partículas subatômicas o fez ter debates famosos com outros físicos.4 Para ele, a razão de termos incertezas na física quântica não era porque o universo subatômico era genuinamente incerto, mas sim por ignorância dos modelos, medições e observação. Por mais que os proponentes do universo quântico incerto sejam a maioria hoje em dia, o debate ainda não está encerrado.5

O que é certo é que esse debate está intimamente ligado ao tema da não existência do livre-arbítrio, algo que escrevi sobre no texto Livre Arbítrio, Meritocracia, Crime e Castigo. Porém, não vou falar diretamente da inexistência do livre-arbítrio aqui. Nem muito menos vou perder tempo falando do debate entre a visão determinística do universo físico e a visão incerta—a internet está cheia de material sobre o assunto, basta procurar. Mesmo assim, cabe uma observação: independente do universo ser determinístico ou incerto, não existe espaço para livre-arbítrio, pelo menos não da maneira como pensamos.6 Sobre esse ponto, um diálogo entre Morpheus e Neo no filme Matrix mostra como nossa natureza é incapaz de aceitar que não estamos no controle:

Morpheus: Você acredita em destino, Neo?
Neo: Não.
Morpheus: Por que não?
Neo: Porque eu não gosto da ideia de que não estou no controle da minha vida.

Os pontos que quero tratar diretamente aqui neste texto são a ética, o debate sobre ações consideradas certas e erradas, e a apatia. Em A Chegada, vemos a personagem principal, a linguista, lembrando de uma filha que morreu devido à um câncer. Acontece que, ao longo do filme, vamos percebendo que ela não lembrava da filha, mas via o futuro onde teria uma filha que morreria de câncer. Ao final do filme percebemos que tudo o que ela "lembrava" da filha e da separação do marido eram fatos que só ocorreriam no seu futuro. Mesmo sabendo que a filha sofreria e morreria de câncer—e que perderia o marido ao contar para ele que a filha iria morrer—, ela embarca na jornada de ser mãe.

Se fosse possível alterar o futuro, não haveria dúvidas de que seria errado escolher ter uma filha sabendo das dores terríveis pelas quais ela passaria—pelo menos errado segundo ao que normalmente valoramos coletivamente como certo e errado. A regra áurea e a empatia nos ensinam que não devemos fazer com os outros o que não gostaríamos que fizessem conosco e que devemos nos colocar no lugar das outras pessoas. Isso é o suficiente para entender que se meus pais soubessem que eu sofreria de uma doença terrível e mesmo assim escolhessem me colocar no mundo, eles estariam cometendo um erro. Seria eticamente reprovável. E nem sequer entro no tema do aborto: falo que seria errado fazer um filho de maneira planejada, desde o ato sexual.

Porém, a coisa muda de figura com o determinismo duro apresentado pelo filme. Se o universo é um bloco onde o tempo é apenas uma dimensão como são as dimensões do espaço, então a personagem saber ou não do futuro não interessa.7 Ela é apenas uma testemunha que sente estar no controle, mas não é culpada, pois não pode alterar absolutamente nada, mesmo tendo conhecimento.

O filme dá uma clara indicação que esse é o caso ao mostrar que os seres extra-terrestres sabem, através da sua linguagem atemporal, que os seres humanos irão ajudá-los no futuro, daqui a três mil anos. Os seres em nenhum momento demonstram uma grande preocupação ou ansiedade. Em um determinado momento, perto do final do filme, um deles diz para linguista que ela também consegue enxergar o futuro—um efeito derivado da sua gigantesca expertise em línguas humanas e crescente conhecimento da língua alienígena—e que deve usar essa capacidade para impedir o iminente ataque às naves alienígenas liderado pela China. Ou seja: aqueles seres já tinham uma boa ideia de qual seria o desfecho da história. Os únicos que não sabiam eram os humanos (e nós que estávamos sentados na sala do cinema).

Um conceito brilhante. O que o filme não mostra, nem dá a entender, é que a capacidade de enxergar um futuro que não somos capazes de alterar acabaria por nos tornar apáticos. Pessoalmente, não consideraria a apatia uma coisa ruim, porque concordo com a visão determinista de universo (penso que o futuro está certo, nós apenas não temos como saber o que vai acontecer devido a nossa ignorância e a total impossibilidade de previsão, nos falta uma "língua atemporal mágica"), mas haverá aqueles não gostariam de serem apáticos.

No quadrinho e filme Watchmen, o personagem Dr. Manhattan é um super-ser que passa a existir depois da desintegração do físico Jon Osterman em acidente de laboratório. O Dr. Manhattan não tem uma percepção linear de tempo, ele enxerga seu passado, presente e futuro ao mesmo tempo—algo bem similar a capacidade dos alienígenas em A Chegada. A princípio, depois do acidente, por mais que estivesse diferente, superpoderoso e capaz de saber o próprio futuro, Osterman ainda tenta viver e agir normalmente. Mas, com o tempo, ele vai abandonando as convenções sociais—deixa de usar roupa, por exemplo—e torna-se cada vez mais distante emocionalmente. A apatia toma conta. Concordo com a reação dele.

Seu determinismo absoluto fica claro quando ele diz para a segunda Espectral, personagem com quem tem um relacionamento:

"Nós todos somos marionetes, Laurie. A diferença é que eu enxergo minhas cordas."

Em outro momento, ele fala:

"Mas é tudo ilusão. As coisas têm suas formas no tempo, não apenas no espaço. Alguns blocos de mármore trazem estátuas encrustadas no futuro."

O universo é uma série de eventos causados por eventos anteriores. O presente nada mais é do que o passado de eventos que vão ocorrer, quer a gente queira ou não. Sabemos de grandes eventos no futuro: o fim do nosso Sol, o choque da Galáxia de Andrômeda com a Via Láctea, a contínua expansão do universo e seu fim frio e caótico. Mas não temos variáveis suficientes para calcular o fim de nossa espécie com exatidão (apesar de termos algumas noções de como ela pode acabar), nem temos a capacidade de prevermos exatamente como e quando será o fim de nossas vidas particulares—tirando o caso de algumas doenças e, mesmo assim, podemos morrer de outra coisa antes. Todo esse mistério gera insatisfação e nervosismo. É uma pena que não tenhamos uma língua atemporal que nos dê a capacidade de sabermos o futuro, como se ele já tivesse acontecido. Poderíamos ser tão apáticos quanto o Dr. Manhattan.


Referências: