Por que estudar filosofia? Para ser feliz!

Algo tem acontecido comigo desde o começo desta década, quando ainda terminava a faculdade de economia em outro país. Um melhoramento — acho — e, também, um refinamento progressivo na minha forma de pensar o mundo.


Não sou particularmente brilhante. Nunca fui. Quando criança fui chamado de lerdo até por alguns familiares, já ávidos em colocar as crianças para competir entre si, algo que possivelmente vem de nossa natureza primata que tanto glorificamos, infelizmente.

De fato sou lerdo (mas hoje percebo que muita gente também é, inclusive algumas das mesmas pessoas que me chamavam de lerdo quando eu era garoto). Também me falta esperteza e jogo de cintura para levar a vida. Complico demais coisas que não deveriam ser tão problemáticas e me meto em problemas desnecessários. É uma droga. Mas, apesar de tudo isso, pelo menos em um sentido pavloviano, não sou burro.

Não vou continuamente enfiar a mão na tomada para tomar choques, nem defender uma razão pela qual eu deveria estar tomando um choque atrás do outro pelo o resto da vida, nem como é uma virtude tomar choques. Entretanto, essas são coisas que vejo conhecidos — alguns deles são bem sucedidos em suas vidas particulares — fazendo ao justificarem todo tipo de coisas negativas no mundo.

No início da década, eu ainda cursava faculdade em um país de primeiro mundo e tinha um futuro razoavelmente bom à minha frente. Comparo minha situação individual com a de um país que está prestes à deixar de ser visto como "em desenvolvimento" e se tornar desenvolvido — não significa que ele vai se tornar o mais rico de todos, mas significa que os dias de pobreza endêmica ficaram para trás. Seria algo como uma Coréia do Sul ou talvez um Chile, que há cinquenta anos atrás eram pobres e hoje são considerados, se não ricos, desenvolvidos — pelo menos para os padrões do mundo capitalista deste início de século XXI. Supostamente era isso que a vida — caso tivesse continuado naquele caminho — iria me proporcionar em um nível individual: tornar-me-ia em um eu desenvolvido.

No entanto, aos poucos notei que nada daquilo me deixava feliz. Não estava bem. Havia algo de errado e percebi que estava vivendo os sonhos de uma pessoa que já não existia mais. O estereótipo do jovem monarca privilegiado, porém infeliz, pode vir à mente. Sidarta Gautama, filho de rei, abandonou toda uma vida de conquistas materiais e confortos para atingir a iluminação e deixar para trás a roda do Samsara. Não sou nem um pouco nobre, nem filho de rei, nem sequer tenho as magníficas intenções do Buda, mas reconheço os privilégios que tive e ainda tenho. Sei bem o que deixei para trás. Não sou um idiota e, pelo menos quando se fala de segurança física e material, sei que escolhi um caminho mais difícil.

Quando abandonei tudo aquilo (morar no primeiro mundo, fazer mestrado em economia), houve quem dissesse que era a coisa mais burra que eu poderia ter feito. Certamente a maneira como fiz, queimando pontes que poderiam ser úteis no futuro, não foi correta. Faltou-me esperteza. Mas havia inteligência, mesmo naquela minha ignorância toda — afinal, ainda era liberal e achava Mises o suprassumo dos grandes pensadores, e se isso não denota a gigantesca ignorância na qual eu vivia, não sei mais o que denotaria. A inteligência estava em reconhecer as minhas limitações. Sabia que não tinha condições, tanto psicológicas quanto intelectuais, de continuar aquela empreitada. Eu me diminuí.

Foi um fracasso seguido de outros grandes fracassos particulares após retornar para o Brasil. Cheguei num ponto em que a depressão e a instabilidade que tive por volta dos meus vinte anos de idade estava prestes a retornar com sede de vingança. E dessa vez eu não teria a ajuda nem da religião, nem das ideologias, que tanto deram um sentido maior para minha vida quando mais jovem. Naquela altura elas já não significavam nada para mim. Teria que partir direto para a terapia e remédios. Lítio, Depakote, Zoloft, Rivotril, entre outros que tomei naquela época, com vinte e poucos anos. Teria que apelar para outras coisas danosas, talvez. Estava desesperado.

Foi em meio a esse desespero sem fim de sonhos frustrados e total falta de significado na qual eu me encontrava que minha mãe me deu alguns livros de filosofia para ler. Na minha ignorância, eu não compreendia que estava passando pelo clichê universal, porém real, da crise existencial. Se todos os sonhos que tive desde criança — morar fora do país, ter uma família, ser bem sucedido em uma área reconhecida — não eram o verdadeiro eu, e se todos os ideais que permearam minhas visões de mundo tornaram-se meros embustes para mim, então quem era o eu de verdade? Existia algum?

Não tinha mais sonhos práticos a realizar, nem tinha mais crença política ou religiosa que levantassem meu astral. Estava acabado. Sentia-me um nada, vazio, fracassado pessoalmente, e sem nada para acreditar. Era um dead man walking. Um morto-vivo em vida. Olhando para trás vejo que poderia ter sido presa fácil para outro ideário maluco (e como perdi tempo com eles, caramba) ou, pior ainda, de alguma seita. Hoje sei que não fui o único que passou por situações do tipo, porém creio ser um dos poucos que saiu sem ter que comprar outra poção mágica para continuar vivendo. O que tem de conhecidos meus que hoje são cultistas do Olavo de Carvalho...

Dos livros que minha mãe me deu, alguns eram introdutórios, outros eram as próprias fontes. Existencialismo. Absurdo. Nietzsche, Sartre, Camus. Para minha sorte, tive boas aulas de filosofia no meu colégio durante o segundo grau, mais um dos inúmeros privilégios que tive crescendo. Ter conhecido um pouco da filosofia clássica naquela época (e ter prestado atenção nas aulas ao ponto de me lembrar um pouco de Platão e Aristóteles) me ajudou a compreender melhor do que falavam esses "novos" filósofos que mal tinha ouvido falar.

Ler aquele material que minha mãe me arrumou foi muito bom. Ajudou saber que existiram pessoas inteligentes que, através de um discurso racional sobre o ser e sobre a realidade, argumentaram que a vida não tem um significado intrínseco, que existência precede essência (no caso de alguns desses pensadores), que nós é que damos significado à vida através dos nossos pensamentos e da forma como agimos. A nossa existência apenas é, não há um significado cósmico por de trás dela. Ou seja: fomos jogados aqui. A receita desses filósofos popularmente considerados como "existencialistas", por mais que fossem diferentes entre si, possuía um ingrediente comum: encarar a falta de significado da nossa existência com coragem e viver a melhor vida possível.

Descobrir esses pensadores foi muito bom para mim naquele momento, mas logo o efeito passou. No final do dia, eu poderia exercer minha liberdade radical ou poderia abraçar o Absurdo — só que ainda continuaria sendo eu. Ainda seria um rapaz fraco, pálido, insignificante e, por mais que não fosse burro, faltava-me esperteza e coragem para enfrentar a vida. No passado, como já martelei diversas vezes, as ideologias e a religião serviram como uma muleta para mim. Elas preencheram esse vazio e deram um significado maior a tudo. Tornar-me um "herói do absurdo" não me parecia grandes coisas, não iria preencher nada, porque considerava minha vida, apesar de todas as coisas boas que existem nela, ruim, pois fui colocado neste mundo sem ter sido consultado — claro, tal ação é impossível de ser realizada (da mesma forma que é impossível consentirmos a algo quando estamos sob o efeito de alguma substância que nos faça dormir profundamente).

Minha alienação parecia ser maior. Foi apenas quando li outros filósofos, tidos como pessimistas — Schopenhauer, Cioran e Zapffe — e alguns dos estoicos — Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio — que a filosofia finalmente me salvou, pelo menos no que se refere ao pensamento. Com eles consegui dar forma à uma desconfiança antiga que tinha: a conclusão de que a nossa busca por um significado inexistente não é apenas absurda, mas que qualquer significado objetivo verdadeiro que poderíamos extrair da observação deste mundo onde a vida consome a si mesma seria grotesco. Não é que a vida não tem um significado e devemos lutar por um, como os existencialistas diziam, mas sim que a vida tem sim um significado e ele é ruim. No final, podemos lutar, chorar e espernear, mas única coisa eficaz que podemos fazer é ajustar nossas próprias perspectivas.

Estamos aqui por mero capricho do acaso. Nossa sorte pode mudar a qualquer instante. O mundo natural de onde viemos é um gigantesco mecanismo refinado de recompensa e punição, com o único objetivo de perpetuar a vida, não importando os custos em termos de dor, sofrimento e alienação. Saber disso, ou ao menos ser exposto à filósofos que deixavam isso explícito, me salvou.

Finalmente entendi que não era errado ter uma visão ruim desta empreitada que é a nossa existência.  Não preciso declarar amor ao fato de ter nascido, como se isto daqui fosse o maior presente que alguém poderia ganhar. As coisas são sim muito ruins e não há nada de errado em pensar dessa forma. Posso achar o capitalismo uma porcaria, e de fato penso que é, mas ao mesmo tempo posso argumentar que não existe uma Utopia capaz de nos salvar e fazer tudo ficar bem. Mesmo nos lugares menos injustos e mais prósperos do mundo a vida ainda assim não tem propósito algum, e é recheada de dores e sofrimentos. Zapffe, filósofo pessimista e antinatalista, viveu a vida toda no "paraíso" que é a Noruega, e mesmo assim chegou à esta conclusão: a melhor coisa que fazemos é nos abster da reprodução; é a única maneira de acabar com todo tipo de sofrimento.

Posso concluir que é injusto trazer alguém a este universo onde tudo sente dor e morre, onde as felicidades são efêmeras demais e onde o normal é possuir um viés otimista enganador. Como diz o filósofo marxista pop contemporâneo, Slavoj Zizek, "a primeira obrigação da filosofia é fazer você entender o quão na merda você está". Zizek pode não concordar que o correto deveria ser a extinção da dor através da não reprodução, mas ao menos, como filósofo, reconhece que o mundo e a vida não são coisas bonitas por si só, que estamos todos na merda. Essa me parece ser a marca de um bom pensador em contraste com um vendedor de sonhos baratos: o bom pensador reconhece o quão ruim as coisas são, o estelionatário sonhador vai enfatizar o quanto de bom há no mundo.

Desde então surgiu em mim uma vontade crescente de estudar filosofia formalmente, em uma universidade. Hoje estou fazendo isso. Tomei este rumo de mente aberta, sabendo que aquilo que enxergo como sendo o melhor modelo para representar o mundo em que vivo hoje talvez caia por terra amanhã. Para dar um exemplo: não penso que a história humana segue uma trajetória necessariamente racional, como os hegelianos, mas isso não significa que não estou disposto a mudar de opinião se me forem apresentados argumentos que considere convincentes.

Com o estudo da filosofia, poderia mudar até a minha conclusão pessimista de mundo. Só um tirano não muda de opinião. Só um tirano não pede perdão pelos seus erros aos outros e a si mesmo. Isso é que é tão maravilhoso no amor à sabedoria. Caso o estudo formal do assunto que me trouxe estabilidade há tantos anos atrás apenas confirme o que penso sobre a vida — que ela é um vale de lágrimas, e que é melhor não iniciá-la —, continuarei no meu estado de contentamento, porque mesmo no meu pessimismo, o discurso racional proporcionado pela filosofia gera um alento.

Esse alento é comparável a um tipo de felicidade que não vejo ser enfatizada pelo mundo consumista, capitalista e descartável que habitamos: a felicidade do espírito, o que quer que se considere como sendo o espírito. A consolação proporcionada pela filosofia nos ensina a sermos contentes mesmo sabendo que nossas vidas vão acabar, que bem provavelmente elas não terão significado algum, que nossas dores terão sido em vão e ninguém se lembrará de nós. Como disse Montaigne, parafraseando: estudar filosofia é aprender a morrer.