O suicídio de uma nação?

No mês passado, o jornal francês Le Monde publicou um editorial comparando a situação do Brasil com a de um suicida. Com o título "Brasil: o naufrágio de uma nação",1 o editorial aborda o atentado contra Jair Bolsonaro e os tiros à caravana de Lula no início do ano como exemplos da tensão política em que vivemos, afirmando que desde o (controverso) impeachment de Dilma Rousseff o país parece ter perdido o rumo de seu destino. São citadas mazelas como a violência generalizada, o assassinato de representantes da sociedade civil em plena luz do dia, as balas perdidas que matam crianças em periferias controladas por gangues e a classe política velha e corrompida.

Museu Nacional em chamas, foto de Felipe Milanez

O incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro no dia 2 de setembro é colocado pelo editorial como o símbolo do suicídio de uma nação. Agora, ainda segundo o jornal francês, os brasileiros parecem procurar um líder que os guie para fora da crise política, econômica e moral. Estaríamos, portanto, prestes a cometer o erro de eleger um proto-fascista que promete acabar com todas as mazelas e fazer tudo ficar lindo.


Discordo que o Brasil esteja cometendo suicídio, porque suicídios são rápidos. Até mesmo inalação por monóxido de carbono em ambiente fechado demora pouco, de cinco à quinze minutos.2 O que está acontecendo com o país parece ser mais próximo do que acontece com um fumante compulsivo, já cheio de tumores. A princípio, o câncer se desenvolve em uma localidade. Não sendo remediado, ele se espalha, toma conta de outros órgãos vitais e a morte dolorosa torna-se inevitável. Pode até ser que a morte não demore, mas ela nunca será tão rápida quanto um suicídio — e não existe suicídio à prestação, ninguém se mata aos poucos, da mesma maneira que ninguém gera uma vida aos poucos.

Na ocasião do incêndio que pulverizou o Museu Nacional, um amigo meu de longa data resumiu bem o que está acontecendo no país: "Vamos queimar os museus, acabar com a cultura, com a educação e colocar uma arma na mão de todo cidadão, vai dar super certo! Parabéns aos envolvidos." Sua ironia tragicômica está de acordo com o sentimento passado pelo editorial do Le Monde. Está de acordo, na verdade, com os sentimentos de qualquer um que pondere sobre os absurdos que estão acontecendo agora no Brasil.

Os absurdos não estão apenas no flerte com a truculência sem alma da direita radicalizada. Este é apenas o último estágio da nossa condição. Muito antes do mais novo "messias" nacional, vindo da direita, outros já existiram. O anterior, de esquerda, está na cadeia, condenado por corrupção, dinamitando candidaturas de pessoas que teriam uma chance muito maior contra o messias da direita.3 Acreditava que conseguiria emplacar um dos seus para a presidência. Enganou-se. Ele também acreditou que emplacaria a ex-presidente cassada para o senado federal pelo estado de Minas Gerais. Ela nem chegou perto.4 Que mente iluminada. Que grande estrategista!

O grande estrategista foi responsável por tirar do segundo turno a figura que mais tinha condições de vencer a extrema-direta nas eleições. Como uma turba de esquizofrênicos, a maioria do povo o quer preso, mas ainda assim gostaria de vê-lo presidente.5 Na crença de muitos, Lula foi ungido pelas forças históricas materiais com o objetivo de guiar a nação. Contudo, agora a extrema-direita brasileira também tem o seu ungido.

Nem durante o regime militar houve um culto à personalidade tão forte dentro de movimentos conservadores quanto há hoje por Bolsonaro. Mas isso também é feito por parte da nossa esquerda — e há muito mais tempo do que a direita. Nenhum direitista brasileiro chorava de emoção ideológica na década de noventa quando via o FHC ou o Jorge Bornhausen na sua frente, coisa que já acontecia com Lula desde a década de oitenta. Pouco interessa se os ideais daqueles representavam a opressão e os deste a libertação e harmonia entre todos. Cultuar homens é ainda mais destrutivo do que cultuar deuses.

Não dá para ficar culpando apenas os fascistas, ricos e privilegiados pelo resultado do dia 7. O sujeito recebeu 49 milhões de votos no primeiro turno. Não existem 49 milhões de brasileiros ricos e privilegiados que simpatizam com o fascismo. O Brasil provavelmente não tem nem um milhão de pessoas com mais de um milhão de reais.6, 7 A única faixa de renda em que Haddad vence é a das famílias que ganham até um salário mínimo.8 Entre famílias que ganham de um a dois salários mínimos, Bolsonaro vence com dez pontos percentuais de vantagem. Conservadores? Em boa parte, sim. Mas ricos, privilegiados e fascistas?

Também não adianta agora, faltando menos de dez dias para a votação, tentar passar uma imagem mais palatável para o eleitorado conservador — ou, pelo menos, o eleitorado que comprou o discurso conservador. Quando (provavelmente) perderem no dia 28, também não vai adiantar jogarem essa imagem criada para o segundo turno na lata do lixo. Não vai adiantar a esquerda voltar a se portar exatamente como a direita à caracteriza, porque agora a maioria dos brasileiros comprou a imagem que os bolsonaristas fazem da esquerda. Não adianta agora utilizar as cores da bandeira nacional. Agora é tarde demais.

Algum erro grosseiro, ou vários, acabou por gerar esta situação. Não é o momento para apelar à teorias da conspiração. Da mesma forma que conservadores são ridicularizados por acreditarem no suposto plano da União das Repúblicas Socialistas da América Latina, a URSAL, não adianta os progressistas falarem de conspirações internacionais do capitalismo global. Até porque, mesmo se forem verdade, não vão influenciar mais os eleitores, se é que um dia influenciaram. Se os opositores do bolsonarismo quiserem sobreviver, uma autocrítica precisa ser feita para o futuro, mesmo no caso de um milagre acontecer e ele perder.

Mas duvido que seja feita qualquer tipo de autocrítica. Todos acham que têm a Verdade, com v maiúsculo, em mãos.

O país morrerá um dia — ele morreria de qualquer maneira , mas não terá sido suicídio. Não será rápido. Já não está sendo, porque essa enfermidade oculta, discreta, não começou este ano, mas está em curso há décadas. Há muito tempo sentimos o mal-estar que ela causava, mas acreditávamos ser um resfriado forte ou, no máximo, um doença crônica tratável, com a qual poderíamos viver. De fato, os especialistas jamais conseguiriam, mesmo com todas as suas ferramentas de análise, diagnosticar a doença lá atrás e tratá-la.

Será uma morte que, quando se consumar, alguns dirão que era previsível há anos, por conta de determinados fatores históricos, o que é completamente falso. Todos os que disserem no futuro que previram há muitos anos atrás a eleição da extrema-direita no Brasil — ou qualquer forma de idealismo político destrutivo  utilizando alguma lógica historicista estarão mentindo. A verdade é que perceberam o desastre só em cima da hora, quando estamos correndo à noventa quilômetros por hora à apenas um metro de distância do sinal vermelho.

O museu queimou e as pessoas não estão nem aí. Querem mais é que ciência, cultura e memória queimem no inferno. Se até auto-proclamados "progressistas" celebraram o incêndio, afirmando que o edifício era um suposto símbolo da escravidão, o que esperar então daqueles que dizem "Bíblia sim, Constituição não"? Se as eleições deste ano servirem como base para analisarmos a realidade, a demanda da maioria dos brasileiros parece ser a posse de uma arma para andar na rua — e provavelmente matar alguém em uma discussão de bar.

Essa mesma maioria é contrária à aceitação de diferenças inócuas por conta do pensamento místico, tão difundido no Brasil. Por causa do misticismo, tratam diferenças inofensivas como diferenças inaceitáveis. Tudo aquilo que fere a sensibilidade moral hipócrita e extremamente violenta do pensamento místico brasileiro é tido como intolerável, até a existência de indivíduos pacíficos que vivem de uma maneira diferente. Ao que tudo indica, será um futuro ainda mais tenebroso para aqueles que não aderem ao estilo de vida tradicional.

Mesmo que a economia venha a decolar com a extrema-direita no poder, o país estará morto. Viver em um esboço de teocracia, sob um regime de escravidão salarial,9, 10 onde a violência certamente permanecerá alta ou agravar-se-á ainda mais, é o mesmo que estar morto. Aliás, é pior. Poderia dizer o mesmo caso o medo dos conservadores virasse realidade e o país caísse nas garras da ridícula e fantasiosa URSAL, mas não é este o caminho que estamos seguindo. A distopia de esquerda que tantos temiam não virá mais, ainda bem. Contudo, outra tomou seu lugar.

Boa sorte a todos.