Homens e baratas
Tenho grandes amigos que imaginam estar no meio de um processo histórico de superação de uma contradição, no qual duas forças opostas digladiam-se pelo controle da realidade. Discordo deles. Não acredito em nada disso. Só há duas características que posso concluir ao observar a realidade. A primeira delas é que não existe um rumo além daquele que é ditado pela natureza, com suas leis físicas, químicas e biológicas, e nós fazemos parte da natureza. A segunda é que a realidade é, em sua maior parte, dolorosa para os seres vivos dotados da capacidade de sentir dor.
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Hubble ultra deep field, NASA |
Não digo que a realidade é ruim e dolorosa por causa da política. Ela é ruim e dolorosa em relação ao todo no qual os entes estão inseridos, desde o começo do tempo. Não tenho uma visão negativa da realidade porque penso que havia um modelo ideal que foi corrompido, mas porque que tudo está "corrompido" desde o começo, desde a primeira coisa que existiu.
Contudo, para os que creem que a história é uma sucessão de lutas que levam ao progresso, qualquer atitude que não seja o engajamento em favor do que acreditam ser a verdade da existência é equivalente a aceitar a opressão. Equivale, portanto, à uma legitimação do mal, seja ele qual for. Uns dirão que este mal é a opressão dos trabalhadores no modo de produção capitalista, outros dirão que o mal é representado pelos movimentos progressistas que querem acabar com a família tradicional e a propriedade privada — afinal, assim como existem herdeiros progressistas de Hegel, também existem os conservadores. Esse tipo de pensamento permeou tudo e, ao que parece, muitos de nós crescemos presos a ele.
Na minha vivência, quase não existem pessoas que discordam que a história se comporta necessariamente como uma espécie de evolução para algo melhor, que vai desde o mais primitivo até o mais desenvolvido. Pouco interessa que uns acreditem que a época mais desenvolvida se dará quando atingirmos uma sociedade sem classes, ou se o mais alto grau de desenvolvimento ocorrerá com a segunda vinda de Jesus Cristo. Todos concordam que a história segue algo e que este algo pode ser entendido de tal forma que podemos saber exatamente onde estamos dentro do processo e para onde vamos. Parece não haver grandes diferenças entre o pensamento místico ou o pensamento materialista.
Aqueles que têm fé na história humana como o progresso de algo acreditam piamente que abster-se do mundo — ou desejar uma alternativa diferente — é dar o voto para o inimigo. Não simpatizar com eles é — dentro de tal ótica, salvo raras exceções — automaticamente simpatizar com o lado errado. Observo isso todos os dias há dois meses, por conta das eleições presidenciais. Místicos e materialistas, infernizando meu devir. Ambos acham que é impossível não tomar um lado ou defender uma terceira posição, porque ambos, no fundo, acreditam que discordar da vanguarda, seja ela qual for, beneficia o inimigo, quer queiramos ou não.
Concordo que a verdade não seja democrática. A maioria das pessoas acredita que existir é uma benção e que há mais coisas boas no mundo do que ruins, e isso não é verdade. Os dialéticos sérios concordarão comigo que essas afirmações são falsas. O que me distingue deles é que não acredito na possibilidade de uma superação de contradições que dará a luz à uma realidade histórica que justifique todo o sangue, miséria e degradação pela qual a humanidade — e a vida em geral — passou ao longo da história. Não tenho como acreditar nisso. Nenhuma Utopia futura será capaz de justificar o nascimento, envelhecimento, doença, dor e morte de um ser vivo contra a sua vontade.
Há uma citação que tem sido erroneamente atribuída à Dante Alighieri, supostamente encontrada na Divina Comédia, que vi sendo utilizada muito nestas eleições: "o lugar mais quente do inferno é reservado para aqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise." Esta frase não está na Divina Comédia. Contudo, no Canto III do Inferno, Dante e Virgílio entram no vestíbulo do Inferno, onde não é nem quente nem frio. Lá encontram os anjos que não foram nem fiéis, nem rebeldes a Deus, além das almas dos covardes que não foram nem louvados, nem difamados em vida. São anjos e homens que não foram aceitos nem pelo Céu, nem pelo Inferno. Sua punição é passar a eternidade na antecâmara do Inferno. Lá caminham incessantemente atrás de uma bandeira, sendo picados por vespas e mutucas.
Ser neutro é diferente de ser covarde e difere ainda mais de ser convicto de uma posição que não está de acordo com as duas grandes narrativas (ilusões) do nosso tempo, que é o caso em que me encontro na atual disputa. Não concordo que o partido da esquerda e seus aliados são a encarnação do processo histórico de libertação dos oprimidos. Não.
Independente do que o futuro nos reservasse — uma revolução que inaugurasse uma nova era de igualdade e progresso humano; uma guerra que derrotasse o materialismo ateu coletivista; ou alguma outra bobagem —, seria positivo se entendêssemos que nada disto foi feito para nós: o planeta, o sistema solar, a galáxia, o universo. Uma barata que fosse capaz de refletir acreditaria que o esgoto foi feito para ela viver, quando na verdade o esgoto não foi feito nem especificamente, nem indiretamente para ela.