As tentações da classe média

Há aqueles que culpam a classe média por tudo e, em menor número, aqueles que a defendem como guardiã dos valores na sociedade. Não concordo nem com uma coisa, nem com a outra. A verdade é muito mais complexa do que isso e não tenho nenhuma pretensão de explicar absolutamente nada sobre a classe média de uma maneira acadêmica neste texto. O que escrevo aqui é anedótico, baseado em minhas experiências de vida.
Charge do Vitor T
Depois de anos procurando um norte, um chão para fundamentar o mundo, concluí que tudo não passa de uma piada de mal gosto e que nós, animais capazes de sentir dor, somos o alvo dessa piada. No caso específico da humanidade é pior ainda. Nós estamos andando em círculos, achando que estamos indo para algum lugar, quando não estamos indo a lugar algum. O progresso técnico e científico é irônico, porque para cada avanço, surgem centenas ou milhares de novos problemas. Muitos desses problemas não são meramente teóricos, mas impactam de maneira negativa a vida no dia-a-dia.

Quer dizer: concluí que estamos em um beco sem saída, que a dor é o mecanismo primordial da vida animal, incluindo a humana, e que talvez teria sido melhor se não tivéssemos existido em primeiro lugar. Mas, já que estamos aqui, penso que devemos fazer o melhor que podemos, dadas essas condições terríveis. O que quero dizer com isso? Que junto com a conclusão de negativa que cheguei do fenômeno da vida, também cheguei à conclusão ética de que devemos tentar minimizar o sofrimento, o nosso e dos outros. No que diz respeito ao coletivo, penso que a organização política deve buscar minimizar o sofrimento das pessoas, uma espécie de utilitarismo negativo, muito embora eu não creia que possa me considerar utilitarista no que diz respeito à ética.

A sociedade de mercado, que já defendi com unhas e dentes no passado, é extremamente problemática e causa uma gama imensa de sofrimentos. Não que os outros tipos de sociedade não tenham os seus problemas, eles têm muitos problemas graves, mas aqui me concentrarei em criticar a sociedade de mercado contemporânea por ela ter se sobressaído como o tipo hegemônico de civilização. Quando alguns desses sofrimentos são sanados por mudanças tecnológicas e políticas ao longo das décadas, novos sofrimentos aparecem. É ironia do progresso da qual falei.

Porém, é óbvio que algumas sociedades de mercado são muito menos sofridas do que outras. Há muito menos sofrimento na Suécia do que nos Estados Unidos, por exemplo—nem me darei o trabalho de comparar a Suécia com o Brasil porque seria covardia. Esses dois países de primeiro mundo têm economias de mercado, mas um deles tem um robusto e eficiente estado de bem-estar social (Suécia), e o outro tem um estado do bem-estar social menos robusto e menos eficiente (Estados Unidos). Não é à toa que a Suécia está entre os cinco países mais felizes do mundo, enquanto que os Estados Unidos não figura nos dez primeiros.

Já o Brasil, apesar de ser uma das maiores economias do mundo, é um país subdesenvolvido e extremamente desigual por questões estruturais e políticas. Por exemplo: a Suécia tem uma mobilidade social maior do que os Estados Unidos, que por sua vez tem uma mobilidade social maior do que o Brasil. No que diz respeito às desigualdades, desses três países, Suécia é o mais igualitário e o Brasil é o menos. Tal cenário já seria o suficiente para nós lamentarmos, mas a coisa piora muito. O quadro piora porque, infelizmente, no Brasil—e também nos Estados Unidos—, grande parte da população acredita que essa desigualdade se dá por conta de mérito pessoal. Essa crença parece ser difundida, em especial, por uma significativa parcela das classes alta e média. Essas pessoas acham que o pobre é pobre porque não fez por onde, e que o rico é rico porque mereceu. Isso pode ser verdade em alguns casos? Pode, claro. Mas para a esmagadora maioria, isso não é verdade.

Não existe nenhum estudo acadêmico sério que conclua que a perpetuação da pobreza é fruto da falta de mérito pessoal dos pobres. A pobreza e a miséria em sociedades como a brasileira são fruto de problemas da ordem política. Temos problemas estruturais na configuração da nossa sociedade. A pobreza aqui é feita por design, não é um acidente: nossas instituições políticas e sociais são configuradas de tal forma que o resultado é nossa sociedade desigual, majoritariamente pobre e violenta. Entretanto, está cada vez mais difundido o mito ridículo da meritocracia—que me orgulho em dizer que sempre considerei como sendo um devaneio, mesmo quando fui de direita. Agora, adicione ao mito da meritocracia o componente racial, a herança da escravidão, e a coisa piora ainda mais. O discurso fica ainda mais nojento, pois agora não apenas é uma questão de esforço, mas de racismo.

Sendo pertencente à classe média, sei que isso é verdade. Não acho que exista um só rapaz branco, filho da classe média brasileira (e americana, vivi lá uma época da minha adolescência e vi isso), que não tenha recebido esse tipo de cultura elitista e racista de alguma fonte—seja através de familiares, amigos, colegas ou conhecidos. Alguns a recebem de forma direta. Mas, na maior parte, a transmissão desses mitos é feita de maneira velada, quase que passivamente, através de comentários que são repetidos tantas vezes em lugares diferentes que a pessoa acaba tomando como verdade. Isso não significa que todos os rapazes brancos de classe média tornam-se racistas, não é isso. Nem de longe. A maioria esmagadora nem sequer pensa muito a respeito. Mas a semente da ideia fica lá, plantada. Boa parte a rejeita, outros esquecem a respeito dela—mas em alguns a semente germina. Os tempos atuais têm nos mostrado muito disso, tanto no Brasil quanto no resto do mundo.

Agora, o que uma parte grande aceita de bom grado é a crença do elitismo meritocrático. Não passa pela cabeça deles, por exemplo, que os colégios de qualidade superior que frequentaram ao longo da vida—graças à boa condição financeira de suas famílias—serviram de porta de entrada para uma vida melhor, materialmente falando. Eles não entendem que uma parcela gigantesca da população acaba tendo que estudar em um sistema de ensino público sucateado e nunca terá as mesmas chances das classes média e alta. Acaba que a velha máxima política se confirma: a classe média prefere acreditar nas mentiras dos ricos do que apoiar os pobres.

Acreditar nesse tipo de pensamento é extremamente prejudicial por diversos motivos. Ele impede que o país se desenvolva, pois uma nação onde a maioria das pessoas não possui educação—técnica, científica e de humanidades—é uma nação fadada ao fracasso. Além disso, a ideia imoral de que os pobres merecem ser pobres perpetua um sofrimento que já não deveria existir mais: há riqueza suficiente no Brasil para erradicar a pobreza, basta nossa sociedade ser organizada de uma maneira um pouco menos esdrúxula. Mas nada é feito enquanto se reforçam ideias toscas, como noções meritocráticas falsas, ou a imbecilidade de que o liberalismo econômico vai desenvolver a nação, o que nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo. Essas ideias acabam por gerar um ambiente de tanta hostilidade entre as pessoas que, no final das contas, até os pobres compram o discurso do elitismo meritocrático e acabam ajudando a eleger governos que perpetuam o status quo.

O pensamento elitista de classe média—que ela adota dos ricos sem ponderar muito (e quem pondera é logo tachado de comunista, socialista, esquerdista e outras balelas)—faz com que muitos pobres votem contra seus próprios interesses. Aliás, a própria classe média vota contra os seus interesses ao comprar esse discurso imbecil de que a maioria dos ricos ficou rico por mérito. Herdeiros e rentistas não têm mérito.

Veja: não estou dizendo que as pessoas não deveriam poder herdar ou viver de renda, elas podem. O que critico é a ideia de que a maioria dos ricos tornou-se rico por mérito exclusivamente pessoal. E, se há privilégios para alguns desde o seu nascimento, eles não têm mérito exclusivamente individual. Não adianta culpar os problemas do país nas massas que são mantidas na pobreza por conta uma estrutura que (praticamente) só permite à elas herdarem a pobreza. Se a elite não enxerga isso e prefere o caminho da abolição do pouco estado do bem-estar social que temos, ela é muito burra; e as pessoas de classe média que compram esse discurso também são muito burras.

Não é a toa que hoje estamos vivendo uma situação em que o presidente da república, um pseudo-conservador tapado que nada lê, está submetido a um astrólogo picareta medievalista que acredita (e ensina) que a Terra é o centro do universo. As pessoas preferem colocar um sujeito desses no poder à eleger qualquer alternativa mais racional, só pelo fato dessas alternativas serem minimamente redistributivas. Por causa disso, estamos agora vivendo um episódio do Além da Imaginação na vida real. Não bastasse uma década de demagogias baratas, agora caímos no colo de loucos que literalmente pensam que o Sol, os planetas e as estrelas giram em torno da Terra.

Como escrevi no meu texto anterior, também já fui burro, mas eventualmente consegui deixar de ser. Vale a pena lembrar a definição que dei para o adjetivo: argumento que são burros todos os ignorantes que persistem na ignorância por orgulho e birra, mesmo após terem seus erros apontados por especialistas. Vamos aguardar e ver se essas pessoas também deixarão a burrice para trás—e, com ela, as tentações de um elitismo meritocrático mentiroso e grotesco. Seria bom para o país: tanto para os pobres, quanto para a classe média e para os ricos. Mas duvido muito. Só agradeço aos deuses por não estar até hoje encantando com a verborragia de astrólogos picaretas e as sandices teóricas de economistas austríacos inexpressivos.