Alguém tinha dúvida de que seria esta porcaria?

Estamos em março de 2019 e não sei por que diabos tenho acompanhado os comentários em notícias de jornais sérios nas redes sociais—notícias que cada vez mais têm a cara de clickbait, diga-se de passagem. Talvez eu goste de sofrer. A coisa ficou ainda pior do que era antes. O efeito Dunning-Kruger—no qual pessoas incapazes ou despreparadas acreditam saber muito mais sobre um assunto do que especialistas—tomou conta de todas as pessoas. É como se, de repente, um grande oceano de ignorantes periculosos tivesse recebido autorização de falar em praça pública e ditar os rumos da cidade-estado.

Charge de Bira Dantas

"O que te faz ter o direito e a audácia de escrever nesse tom sobre seus concidadãos?", podem me perguntar. Estão certos em me questionar sobre isso. Talvez o que me faz ter o direito e a audácia de escrever neste tom seja o fato de que sei que já fiz parte desse oceano de ignorantes periculosos. Já comprei quase que toda sorte de ideias malucas passadas como verdade. Fiz isso até o dia percebi o quão burro estava sendo — não era apenas ignorância da minha parte persistir em crenças sem conhecer seus fundamentos, era burrice mesmo. A definição que argumento para o termo "burro" é a seguinte: burro é todo aquele que, tendo sido apontada sua ignorância, escolhe persistir e ter orgulho dela. Não sei qual parcela do presente oceano de ignorantes periculosos é burra, como eu fui no passado, mas creio que o número não seja baixo, infelizmente.

"Então você se acha o dono da verdade agora, depois desses anos todos?" Não, não me acho dono de nada. É justamente esse o ponto. Sou convencido por argumentos de certas coisas, mas não estou pulando para cima e para baixo em uma bolha na qual as coisas das quais fui convencido não são questionadas. Nenhum dos meus amigos próximos e meus familiares concordam comigo em tudo—e os poucos que concordam comigo, concordam apenas em alguns pontos. O mesmo ocorre com colegas, professores e orientadores na universidade. Isso quer dizer que, sempre que surgem conversas sobre algum desses tópicos, estou escutando argumentos contrários. Sou constantemente bombardeado por argumentos contrários a respeito de todos os meus posicionamentos. Isso é ótimo.

Quem lê este blog sabe que de alguns anos para cá declaro-me pessimista. Acho que o fenômeno da vida não está indo para lugar algum e que a história humana não tem uma direção racional. Não penso como Hegel. Não acho que a coruja de Minerva alça voo no crepúsculo da história para revelar a direção que tomamos como sendo o desenrolar da razão no mundo. Mas estou apto a aceitar argumentos que me convençam do contrário—caso eu os considere mais fortes do que os argumentos que me convenceram de minha posição pessimista atual. É essa a diferença entre Fernando de hoje e o Fernando burro de dez, quinze anos atrás.

Não devo absolutamente nada a nenhuma crença ou posicionamento. Além disso, não estou disposto a massacrar os outros (em todos os sentidos possíveis) por conta daquilo que hoje penso ser o que melhor se encaixa como descrição de mundo. Viver e deixar viver é meu lema. Afinal, estamos todos indo para o mesmo caminho da não-existência. Um dia, nossa espécie vai deixar de existir, como a maioria das espécies já deixou. Um dia, todas as espécies serão extintas e não haverá ninguém no universo para lamentar a não existência de seres capazes do que nós somos. Isso não me impede, contudo, de expressar o que penso, então aqui vai:

Estamos em março de 2019 e o novo desgoverno está se provando ainda mais incapaz que o antigo desgoverno. A nova gestão de extrema-direita consegue ser anos-luz mais lunática em sua ideologia do que a gestão de esquerda que a precedeu. Que a atual gestão e seus apoiadores são infinitamente mais burros, é óbvio. Não que a gestão antiga e seus apoiadores não sofressem do mesmo mal; sofriam, mas havia um certo ar de normalidade, apesar das loucuras e dos nefastos cacoetes idealistas que ela tinha.

Qualquer notícia online sobre qualquer coisa, mesmo que não seja vinculada ao atual governo e o movimento conservador, hipócrita e burro que o sustenta, é recebida com uma chuva de comentários imbecis, irônicos e raivosos. Outro dia li um apoiador do presidente da república comentar barbaridades políticas em uma notícia que tratava da morte de um funcionário de frigorífico que caiu em um moedor de carne industrial. Parece que o cérebro dessa gente fritou ao passar muito tempo assistindo vídeos no Youtube do ex-astrólogo e ex-muçulmano que atualmente se passa por sábio cristão conservador (digo "vendo vídeos no Youtube" porque essas pessoas, assim como o tal sábio picareta, não leem nada).

O guru "cristão conservador" do desgoverno do Brasil é um sujeito que acredita que o petróleo não é um combustível fóssil, que marcas de refrigerante utilizam embriões humanos abortados—pobres almas!—como adoçante, que campanhas de vacinação são um pretexto para os globalistas malvados esterilizarem a população, e que o modelo geocêntrico do universo é correto. Ele periga sair a favor da ideia de que a Terra é plana, inclusive. E seus seguidores, que sustentam seus gastos descontrolados enviando dinheiro em troca de cursos (merdas) online, compram a ficção de que ele é brilhante, inteligente, lindo e maravilhoso. Seria um novo Aristóteles, praticamente. O próprio presidente e seus filhos, também políticos, o reverenciam. Ou seja: estamos todos na merda.

Fica cada vez mais clara a incompetência e a maldade da atual gestão. Peguemos a reforma da previdência como exemplo: a reforma dos militares, apresentada na semana passada, gerará uma economia de apenas dez bilhões em dez anos — uma quantia irrisória perto do que eles afirmam ser o rombo da previdência. Aliás, a própria ideia de que o Estado brasileiro tem gastado muito com aposentadorias e programas sociais já caiu por terra há muito tempo, ao ponto de que apenas palpiteiros conseguem acreditar em tal ficção. Nenhum economista sério diz isso. O que aleija o Estado brasileiro não é o povo recebendo aposentadorias faraônicas e benesses sociais, mas sim o pagamento de juros da dívida pública contraída com setores bancários e empresariais.

Digamos, porém, que houvesse um déficit enorme nas contas públicas causado pelas aposentadorias e programas sociais. Vamos fingir que isso é verdade. O desgoverno atual tem feito propagandas para demonstrar que a reforma é necessária para acabar com os privilégios daqueles que ganham aposentadorias e pensões gigantescas. Tudo bem. Se fosse verdade que há  um enorme déficit na previdência do Brasil, estaria correto reformá-la para, principalmente, acabar com os privilégios. Contudo, como a proposta apresentada para os militares durante a semana passada mostrou, aqueles que têm privilégios irão mantê-los: quem vai arcar com os custos da reforma serão aqueles de patentes mais baixas. Quem está no topo sofrerá pouco com a reforma. Podemos esperar o mesmo para os civis: os mais pobres e os que mais trabalham irão arcar com o maior custo. Não haverá fim dos privilégios nas aposentadorias coisa nenhuma.

Na área da segurança, também, alguém duvida que qualquer melhoria será irrisória, assim como os dez bilhões economizados em dez anos com a proposta da reforma da previdência militar? A segurança não irá melhorar no Brasil—pelo menos não por ação do governo, principalmente um governo de extrema-direita ignóbil como este que está no poder. Salvo um milagre na conjuntura demográfica do país que faça com que a criminalidade diminua, estaremos ferrados nos próximos anos. Salve-se quem puder.

A verdade é que aqueles que se empolgaram com a campanha da extrema-direita nas eleições de 2018 caíram no conto do vigário. Os eleitores deste presidente viverão em um país onde os ricos serão protegidos e permanecerão ricos—ou seja, não sofrerão os riscos advindos da saudável competição capitalista —, onde a possibilidade de ascensão econômica é cada vez menor — leia-se: o pobre, na maioria dos casos, permanecerá pobre—, e onde a segurança pública é uma piada ainda maior do que era anteriormente—aliás, talvez nem exista mais segurança pública, dado que a vontade da atual gestão é permitir que todos andem armados e cuidem de si mesmos pelas ruas do país.

É sério que alguém tinha dúvida de que isso iria acontecer? Talvez seja verdade. Quando você tem dezenas de milhões de pessoas que leem menos de um livro por ano apesar de serem alfabetizadas e, em muitos casos, terem curso superior, é normal que elas não prevejam todas as merdas que podem acontecer depois da eleição de um populista de extrema-direita. O mesmo valeria para um demagogo de extrema esquerda, tanto faz. A ignorância e a falta de cultura faz com que a civilização descambe para a barbárie, seja ela desenvolvida ou subdesenvolvida, como é o nosso caso.

Até pouco tempo atrás, boa parte dos brasileiros que vociferavam imbecilidades na internet eram fãs de líderes socialistas toscos e autoritários. Não faltavam defensores de caudilhos que fumam charutos caros em churrascarias da elite enquanto seu povo passa fome—estou falando Nicolás Maduro, obviamente. Agora, a coisa se reverteu: a grande massa de brasileiros que vociferam imbecilidades na internet são conservadores hipócritas e burros.  Já tratei da definição que argumento para a palavra "burro", quando ela é usada como adjetivo. Todo aquele que escolhe persistir e ter orgulho da sua ignorância, mesmo após ter sido informado dela, é burro. Já fui um. Demorei anos para deixar de ser assim. Afirmo que é perfeitamente normal ser burro uma vez ou outra na vida—e é ótimo que aprendamos a deixar de sermos burros. Mas, na maioria dos casos, primeiro é preciso que apontem para nós que estamos insistindo em uma posição totalmente equivocada. Caso contrário, nós tendemos a continuar batendo no peito e afirmando a nossa burrice.