Algumas considerações epistemológicas e éticas: Hume, Kant, o realismo científico e a filosofia negativa

Até agora, tive dois excelentes professores de Kant na universidade. Ambos são especialistas no filósofo e conhecem sua principal obra — A Crítica da Razão Pura — de trás para a frente, entendendo inclusive os pormenores das traduções e as disputas acirradas que aconteceram ao longo dos últimos dois séculos a respeito deste ou daquele termo. Infelizmente, dizem eles, Kant poderia ter sido um pouco menos obscuro na sua escrita. Concordo com eles. Existe a desculpa de que ele escreveu no linguajar rebuscado da época, imitando o estilo de Christian Wolff, mas o escocês David Hume escreveu antes de Kant e expôs suas ideias de forma bem mais clara. Além disso, poucos anos depois de Kant, outros filósofos alemães como ele já estavam escrevendo de maneira bem mais acessível — dentre eles, Schopenhauer.
Newton descobrindo a refração da luz, de Pelagio Pelagi

Para entender o que acontecia na época, precisamos lembrar da revolução científica provocada depois da publicação dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Newton, em 1687. Newton não foi o único a chegar ao cálculo diferencial — Leibniz também o fez —, mas a influência das leis da mecânica publicadas por Newton destroçou dois mil anos de filosofia natural aristotélica. A física aristotélica era descritiva, pois Aristóteles acreditava que a matematização da natureza era impossível. Ao matematizar as leis da natureza, Newton demonstrou que Aristóteles estava errado. Isso gerou uma revolução não só científica, mas técnica, que auxiliou no avanço europeu nos séculos seguintes.

É nesse cenário que Hume passa a fazer filosofia. Aqui vou resumir de maneira grosseira a teoria do conhecimento de Hume — e depois de Kant — para poupar tempo e, porque, francamente, estou anos-luz de ser um especialista no assunto. Hume foi um dos grandes empiristas da história. Para ele, todo conhecimento humano pode ser dividido em duas categorias: relações de ideias e questões de fato. As relações de ideias são coisas como proposições matemáticas e lógicas, enquanto que as questões de fato são todas as coisas que possuem algum tipo de contingência relativas à observação e à experiência.

Os únicos tipos de conhecimentos universais e necessários, nesse sentido, são aqueles obtidos através da relação de ideias. Por exemplo, quando dizemos que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, esse seria um conhecimento universal e necessário; mas quando afirmamos que o Sol nasce todos os dias no leste, estamos apenas afirmando algo pela força do hábito, já que nada garante que o Sol sempre nascerá ao leste — algo que hoje, através da astrofísica contemporânea, sabemos ser verdade; daqui a alguns bilhões de anos a Terra nem sequer existirá para o Sol "nascer".

Pouco tempo depois, Kant, impressionado com as teses de Hume, abandona o que ele chamou de "sono dogmático" — ele, como muitos outros pensadores alemães e europeus em geral, ainda consideravam algum sistema metafísico-religioso como base para o conhecimento humano. Porém, após ler Hume, Kant envereda por uma filosofia sem bases dogmáticas e parte em busca de uma filosofia mais afinada com o pensamento científico de sua era. No entanto, Kant ainda acreditava que era possível salvar a dignidade da metafísica como ciência filosófica, desde que a limitássemos ao extremo. Assim como Hume, Kant também se impressionou com a revolução científica causada por Newton, mas ao contrário dos empiristas, imaginou que aquilo que Newton descobrira foram leis universais e necessárias da natureza — algo que contraria o pensamento de Hume, que considerava tais leis aproximações excelentes, porém não universais e necessárias, já que eram pautadas na observação da natureza e experimentos.

O projeto crítico de Kant visou mostrar que há um terceiro tipo de conhecimento, além dos juízos analíticos — equivalente às relações de ideias de Hume — e os juízos sintéticos a posteriori — equivalente às questões de fato humenianas. Este terceiro tipo de conhecimento Kant chamou de juízo sintético a priori. Isto é, um conhecimento obtido a partir da experimentação, mas que é universal e necessário. Por exemplo, a equação newtoniana Força = massa x aceleração, para Kant, seria um juízo sintético a priori — não é nem uma relação lógica de ideias, como afirmações lógicas ou puramente aritméticas, nem meramente um fato contingente extraído do mundo. Seria, para Kant, um conhecimento universal e necessário obtido através da experimentação e observação do mundo.

Mas há um problema. De lá para cá, a ciência mudou muito. Os físicos descobriram que a mecânica newtoniana não explica uma série de fenômenos e, especialmente a partir das equações de Einstein, perceberam que a física newtoniana não estava correta. Quer dizer: a física de Newton serviu (e ainda serve) para explicar muitos fenômenos comuns e produzir equipamentos, prédios, máquinas, etc, mas apenas dentro de um determinado alcance. Quando lidamos com a física numa escala astronômica — quando falamos de tamanhos e velocidades extremas —, a física newtoniana mostra-se completamente inadequada, enquanto que a física einsteiniana se mostra validada. O mesmo vale para quando tratamos de fenômenos absurdamente pequenos, que tornou-se o campo da física quântica.

Então, agora que sabemos que a mecânica newtoniana não é universal e necessária, o que acontece? Kant está morto? Para muitos, sim, está, e já faz um bom tempo. Mas essa não é a história toda. Existiram filósofos kantianos que revisaram e relativizaram o conceito apriorístico, inclusive alguns deles se corresponderam com Einstein à época de suas descobertas. De fato, essa é uma opção: a relativização do conhecimento sintético a priori. Há algumas publicações acadêmicas que criticam certos críticos do juízo sintético a priori de Kant — pensadores como Karl Popper, no século XX —, afirmando que o próprio Kant nunca absolutizou a ideia do juízo sintético e que, de fato, ele jamais afirmou um abandono da ciência experimental. Pelo contrário, afirmam seus defensores contemporâneos: ao ver que os experimentos científicos derrubaram a mecânica newtoniana e corroboraram uma física einsteniana e quântica, Kant não veria problema algum em revisar o que considera ser universal e necessário dentro da ciência da física. Afinal, Kant não fora um pensador dogmático.

Onde me insiro dentro dessas opções? Honestamente, não sei. Quanto a minha capacidade de decidir-me entre a ideia kantiana de que existem princípios universais e necessários a serem descobertos pela ciência — quer dizer, quanto a possibilidade da física descobrir princípios incapazes de serem revisados ou emendados no futuro — e a ideia humeniana de que toda ciência experimental é sempre uma aproximação daquilo que é verdadeiro—mas nunca a própria verdade absoluta e eterna —, creio que permanecerei cético. O nome deste site, "Exilado Metafísico", faz referência à filosofia de Emil Cioran e à ideia de que nós todos fomos jogados na existência física sem possibilidade de escolha. Fomos todos arrancados do nada e agora habitamos um mundo onde sofremos e temos que criar significados apenas para, eventualmente, perecermos dolorosamente. Como diriam os americanos: life sucks and then you die.

Apesar das alusões à metafísica e do vocabulário muitas vezes poético, esse tipo de filosofia negativa de Cioran e muitos outros pensadores pessimistas não se baseia em fantasias, mas admite a validade das ciências contemporâneas — isto é: a aproximação de uma "verdade" aberta à revisões futuras através de novos experimentos e novas teorias científicas. Ou seja: a postura assumida por mim, no final das contas, é a postura do realismo científico. Aliás, em grande parte (diria que na maior parte) tornamo-nos pessimistas justamente por conta do que a ciência contemporânea nos diz sobre o animal humano e sobre o universo físico-químico que habitamos. A falta de um sentido maior para nossas vidas e a inexistência de um télos histórico racional (no meu caso, a recusa de uma teleologia que requeira tanto sangue e sofrimento) — são esses alguns dos "presentes" que as ciências naturais contemporâneas têm nos dado. Alguns, ao verem isso, desesperam-se e pretendem retornar ao mundo da fantasia medieval; pessoas como Olavo de Carvalho, por exemplo. Muitos outros preferem martelar novas crenças menos insanas, mas não menos fantasiosas, como a ideia de um progresso humano eterno, ainda que feito a partir de grandes sacrifícios.

No final das contas, independentemente da existência ou não de uma verdade universal e necessária que podemos descobrir através de experimentos, o fato é que a ciência contemporânea nos dá uma imagem cada vez precisa — e essa imagem não satisfaz. Alguém pode afirmar: "Mas se a ciência é revisável, independente da epistemologia adotada, então você não sabe se no futuro podem apontar para uma existência humana que valha totalmente a pena." É verdade. Não tenho como afirmar que a vida não vale a pena com toda a certeza do universo. Em determinado momento, uma postura ética — como a postura ética pessimista que assumo — requer escolha. A escolha que faço é aceitar que a validade das descobertas dos satélites WMAP, da NASA, e Planck, da Agência Espacial Europeia, são corretas: o nosso universo muito provavelmente irá terminar num fenômeno chamado "Big Freeze" daqui centenas de trilhões de anos, e não há nada que ninguém poderá fazer para impedir esse cenário. Nenhuma invenção tecnológica futura, saída dos cantos mais loucos da ficção científica, jamais poderá reverter esse quadro. Somente um Deus onipotente e metafísico conseguiria tal feito, mas esse Deus não existe.

Mas ainda que a ciência viesse a provar o oposto, que o universo continuará estático e capaz de prover vida orgânica para sempre, permaneceria a questão ética para o pessimista: "a continuação perpétua da vida vale a pena?" A resposta, pelo menos para o pessimista, continuaria sendo negativa, pois certos fatos a respeito do sofrimento — de todas as criaturas capazes de sentir algum tipo de dor física ou mental — são independentes do destino final do universo. Eles dependem apenas da composição da vida animal capaz de sentir dor. Ainda que soubéssemos que daqui 100 anos todas as vidas seriam maravilhosas e sem sofrimento algum, teríamos que considerar o quão ético seria a nossa perpetuação no mundo ao longo deste tempo que resta.

A valoração que faço, nesse sentido, é de que não seria nada ético: não era no passado, não é hoje e não será nunca, por conta da estrutura terminal do ser — sobre esse assunto, vale a pena ler Mal-estar e Moralidade, do filósofo Julio Cabrera. Mas não é exatamente isso que quase toda a humanidade faz, mesmo sabendo que é improvável que o sofrimento acabe em 100 anos — na verdade, mesmo sabendo que o sofrimento provavelmente nunca terminará enquanto existir vida animal? A maioria de nós acredita valer a pena, mesmo sabendo do horror e das possibilidades insidiosas que permeiam toda a vida.

Referências: