Um caminho muito perigoso

A hora que tínhamos para rir de memes sem agir acabou. Ontem, dia 24 de maio, o país chegou a mais de 22 mil mortos por Covid-19. Dada a curva em que estamos, hoje certamente passaremos dos 23 mil. Falo aqui dos mortos contabilizados de fato, visto que, como já se sabe, nossas autoridades conseguem realizar a proeza de subnotificar não apenas o número de contaminados como, também, o número de mortos pela doença. Somada à tragédia da pandemia, temos uma tragédia política que já vinha acontecendo, mas que agora se acentua. O atual governo do Brasil é resultado de uma conjuntura macabra: uma lenta e segura incursão evangélica, iniciada por pastores americanos que vieram para cá décadas atrás, tomou conta primeiro das periferias, depois de boa parte da classe média e, também, de uma parcela significativa dos ricos; o constante financiamento de movimentos anti-política por parte de bilionários conservadores (como exemplos desses movimentos, temos o Students for Liberty, que no Brasil produziu o Escola Sem Partido e o MBL); e o aumento no número de pessoas que escutam teóricos da conspiração obscurantistas como o Olavo de Carvalho.

Charge do cartunista mexicano Monero Rapé

Esses três fatores não são isolados. Eles se comunicam. O resultado disso é que hoje temos uma população que possui cerca de 30% de protofascistas na sua composição. Sim, protofascistas, sem tirar nem pôr. Em 2016, eu disse que uma parcela significativa do eleitorado de Trump era não apenas fascista, mas nazista. Fui considerado idiota por conhecidos meus, brasileiros de direita, que nunca viveram ou sequer visitaram os Estados Unidos, ao contrário de mim. Estive durante anos em um estado majoritariamente conservador e, quando disse que haviam muitos nazistas lá, sabia do que estava falando. Eventos como os ocorridos em Charlottesville, em 2017, provaram que eu estava certo. Em 2018, disse algo similar de boa parte do eleitorado de Bolsonaro e, mais uma vez, minhas palavras foram consideradas um exagero. Pois bem, hoje temos um governo que pode ser comparado a um hospício, tão lunáticos são os seus acessos de autoritarismo. A sorte é que temos instituições republicanas que ainda são capazes de segurá-lo. O problema é: até quando?

É de conhecimento de todos que Bolsonaro e sua família são envolvidos com criminosos. A natureza exata desse envolvimento não é clara, mas há indícios fortes. Por exemplo, existem indícios muito maiores do envolvimento do presidente com os assassinos da vereadora Marielle Franco do que existiam indícios de que Lula havia sido beneficiado por empreiteiras com imóveis no Guarujá e em Atibaia, mas nada disso impediu ou impede o entusiasmo que milhões de brasileiros têm por Bolsonaro. Há também indícios muito contundentes do envolvimento de Flávio Bolsonaro com esquemas de corrupção na Alerj, além do envolvimento dele em esquemas de construção e venda de imóveis irregulares em áreas ilegais. Mas, para os fanáticos, nada disso importa. Nando Moura, um youtuber de direita extremamente fanático que ajudou a eleger o atual presidente, chegou a ser escorraçado das fileiras do bolsonarismo e do olavismo por insinuar que Flávio Bolsonaro poderia sim estar envolvido com ilícitos. Olavo de Carvalho deu a letra ao afirmar, meses atrás, que a militância de direita não tinha que ser liberal, anticorrupção ou anticomunista, mas sim cegamente bolsonarista.

Além disso, vivemos a novela iniciada pelo ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro ao deixar o governo Bolsonaro. Ele acusou Bolsonaro de tentar interferir politicamente na Polícia Federal do Rio de Janeiro, justamente a polícia que investigaria os possíveis ilícitos dele e de sua família. Como uma das provas, Moro mencionou a (agora famosa) reunião ocorrida em abril, que fora filmada. Celso de Mello, decano do STF, assistiu ao vídeo e, depois de uma semana, liberou seu conteúdo para o público. Ele baseou sua decisão, em grande parte, na tese de que a defesa do ex-ministro Moro estaria em desvantagem com relação à defesa do presidente caso o vídeo não fosse divulgado. Além disso, Celso de Mello enviou um pedido à Procuradoria Geral da República para que fossem periciados os celulares do presidente e de um de seus filhos, Carlos Bolsonaro. Esse pedido partiu de parlamentares da oposição. É a partir daqui que as ameaças começaram a ser claras e inequívocas. A resposta do presidente e dos militares — não apenas aqueles que o cercam, mas militares da ativa e reformados que não fazem parte do governo, como os membros do Clube Militar — foi afrontosa à democracia e às instituições da república.

Depois das manifestações dos últimos dias, ficou claro que uma parte significativa das forças armadas nunca engoliu a Constituição de 1988 e não acredita estar submetida à ela. O general reformado Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da presidência, emitiu uma nota de teor explicitamente golpista na sexta-feira. A nota dizia que pedir o celular do presidente causaria um irreparável abalo nas instituições republicanas. Essa nota foi compartilhada pelo presidente. O Ministro da Defesa também declarou apoio a Heleno e reiterou as ameaças. Além deles, o Clube Militar emitiu um comunicado claramente ameaçador, no qual jogou com a possibilidade de uma guerra civil caso o presidente fosse obrigado a se curvar diante do judiciário. Para coroar tudo isso, o presidente participou no domingo de mais uma manifestação golpista em Brasília com cerca de duzentos apoiadores, talvez menos, e compartilhou nas suas redes sociais uma indireta ameaçadora para o ministro Celso de Mello, enquadrando sua decisão de publicar o vídeo como abuso de autoridade, crime passível de prisão. Juristas consultados pelos mais respeitados veículos de comunicação do país afirmaram que tal acusação de abuso da parte de Celso de Mello é absurda, provando por A + B que sua decisão foi pautada na Constituição.

Um dos autores do livro Como morrem as democracias, Steven Levitsky, esteve no Brasil em 2018 e realizou palestra na qual afirmou que há um histórico farto de líderes autoritários que falaram durante anos quais eram os seus objetivos mas que, infelizmente, não foram levados a sério pela população, que terminou os elegendo para os mais altos cargos públicos. Chovem exemplos disso na história recente da humanidade. O exemplo máximo é Hitler, mas existiram e ainda existem muitos outros  líderes autoritários que deixaram seus planos de dominação evidentes mas que, ainda assim, foram eleitos por cidadãos que muitas vezes ignoraram a retórica autoritária — excetuando-se, claro, parcelas da população que são de fato a favor de regimes antidemocráticos, seja lá quais forem suas vertentes políticas.

Os avisos sempre estiveram lá, mas permitimos que o anti-petismo e a frustração falassem mais alto em 2018, mesmo havendo alternativas para os eleitores, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político. Contudo, somados aos que votaram em Bolsonaro, mas que à esta altura se arrependeram, existiam também os membros daqueles 30% de protofascistas que mencionei anteriormente. Enquanto que os arrependidos não o apoiam mais, os 30% permanecem intactos na sua fé. Essa é a base dele, que já existia antes das eleições, apesar da visão otimista de alguns analistas e até professores, como Vladimir Safatle, que chegou a dizer em entrevista, durante as eleições, que Bolsonaro teria no máximo 20% de apoio na população em geral. Para piorar, há sim nazistas declarados entre seus apoiadores, por mais bizarro que isso possa parecer, algo que já tratei em outros textos meus. Basta nos lembrarmos do ex-secretário da cultura, Roberto Alvim, fã de Josef Goebbels. Fora isso, ocorreram inúmeras demonstrações de apoio a essa ideologia desde que Bolsonaro foi eleito, como quando um senhor foi a um bar em Minas Gerais com uma faixa nazista em um dos braços, suástica e tudo. Em uma manifestação golpista ocorrida ontem na Avenida Paulista, bolsonaristas colocaram uma bandeira neonazista ucraniana em um carro de som.

Talvez seja fantasioso demais temer um regime nazista no Brasil, visto que muitos de seus apoiadores brasileiros não chegam perto do biotipo ariano tão prezado pelo ideal racista, nem mesmo Roberto Alvim, um nazista convicto. Contudo, temer a implantação de um regime autoritário com claros toques de fascismo não é nem um pouco fantástico. Já temos todos os ingredientes e as pessoas no poder para que isso aconteça. Os militares mostraram claramente que, entre Bolsonaro e a Constituição, eles estão com o führer deles e não negam. Aquele embate entre as alas militar e ideológica não existe, ao contrário do que acreditam alguns analistas políticos influentes. Basta pegar o exemplo do general Heleno. Na época das eleições, falei para várias pessoas próximas — pessoas que ainda acreditavam na "capacidade técnica do exército" — que Heleno era incapaz e corrupto, mas muitos não me deram ouvidos. Hoje eles sabem que Heleno teve uma atuação pífia e criminosa no comando de tropas do Haiti. Infelizmente, esse conhecimento veio tarde demais.

Uma das operações que ele comandou no Haiti teve como objetivo capturar um homem e virou motivo de piada entre militares americanos. Durante a tal operação, nosso exército, comandado por ele, efetuou  mais de 22 mil disparos em uma favela haitiana, matando dezenas de civis, incluindo mulheres e bebês, e o homem procurado nem sequer foi encontrado. É triste sabermos que nossa atuação no Haiti foi vendida aqui como um sucesso absoluto em prol da paz durante o governo Lula, o que sempre foi uma mentira. Pelo menos Heleno foi removido do comando das forças brasileiras, o que gerou nele um crescente ódio aos governos do PT. Fora isso, Heleno já foi condenado pelo TCU por beneficiar amigos militares dele em milhões de reais. Esse é o tão aclamado general Heleno, que durante a campanha se tornou um símbolo de como os militares supostamente melhorariam o país caso voltassem novamente ao poder. Um engodo, uma mentira.

Para piorar ainda mais sua biografia, Heleno foi subordinado ao general Sylvio Frota, que considerava Ernesto Geisel esquerdista demais e tentou dar um golpe nele. É esse o tipo de gente que estamos lidando agora no governo Bolsonaro, pessoas que achavam os presidentes generais do regime militar esquerdistas demais. Heleno é apenas um exemplo, mas a biografia de muitos deles têm capítulos extremamente obscuros que denotam um carácter aberto ao autoritarismo e hostil aos processos democráticos de uma república liberal como o Brasil.

Na fantasia que eles têm na cabeça, a Constituição de 1988 torna o nosso país em um regime quase que socialista, algo que deve ser mudado a qualquer custo, inclusive através da violência e da mentira. Basta lembrar as constantes acusações de Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas não serem confiáveis, algo que ele fez durante a campanha e repetiu, em um episódio bizarro, quando visitou os Estados Unidos há poucos meses atrás. O presidente chegou a dizer que tinha provas de que as eleições haviam sido fraudadas contra ele, muito embora ele tenha vencido. Até agora ele não apresentou prova alguma, porque elas obviamente não existem. E, para que não pensemos que os cacoetes protofascistas existem apenas entre os militares, membros civis do governo também são entusiastas dessa visão tosca da nossa Constituição. O ministro da economia, Paulo Guedes, é talvez o maior exemplo dessa crença em todo o governo Bolsonaro. Seu entusiasmo pela era Pinochet é notório.

A verdade é que entramos em uma roubada histórica quando permitimos que Bolsonaro disputasse as eleições de 2018. Caímos nas mãos de facínoras antidemocráticos sedentos de poder e de sangue dos pobres. Os poderes constituídos aparentemente não são capazes de fazer nada contra eles sem serem ameaçados. O presidente, além dos crimes alegados e que necessitariam ser averiguados, comete crimes de responsabilidade e crimes comuns à luz do dia todos os finais de semana. Ele promove manifestações golpistas no momento em que vivemos a pior pandemia dos últimos cem anos. Ao estimular atos contra os outros poderes da república, está cometendo crime de responsabilidade e, talvez, crimes que poderiam ser enquadrados na lei antiterrorismo. Ao promover aglomerações durante uma pandemia, ele comete crime contra a saúde pública, de acordo com a palavra de juristas renomados. O que será necessário para que este homem e todos aqueles que o cercam sejam retirados do poder e respondam pelos seus atos?


Por Fernando Olszewski

Referências:
Ministro do GSI disse que haverá 'consequências' se celular de Bolsonaro for apreendido. Ele se referiu ao fato de Celso de Mello ter encaminhado à PGR notícias-crime que pedem apreensão.
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Defesa apoia nota de Heleno e vê risco institucional, mas nega golpismo
Em nota, oficiais da reserva apoiam Heleno e falam em 'guerra civil'
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