O Dragão

Às vezes, olhamos ao redor e pensamos: não é possível que ninguém mais enxergue que, mesmo nas melhores épocas e nos melhores lugares, vivemos um pesadelo. De fato, não é possível mesmo. Existiram e ainda existem muitos que pensam dessa maneira. Não é um clube exclusivo, qualquer um pode entrar. Então, por que o grupo de pessoas que enxergam a realidade como sendo análoga a um interminável pesadelo é bem menor do que o grupo de pessoas que a enxergam como um empreendimento que vale a pena ser perpetuado ad infinitum? Como apontam alguns filósofos contemporâneos, existem amplas evidências de que a maior parte da nossa espécie sofre de viés otimista e de polianismo (BENATAR, 2006). Mais da metade das pessoas — muito mais que a metade, aliás — acredita ter uma vida muito melhor do que a média.

O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol, William Blake, versão Museu do Brooklyn
A conclusão pessimista de mundo e as éticas negadoras da vida que advém desse pessimismo filosófico não são pautadas na noção de que somos incapazes de resolver os problemas sociais que nos afligem. Elas também não se baseiam na suposição de que somos incapazes de resolver problemas técnicos que resultem em uma melhora significativa na qualidade da vida humana. Você pode ser pessimista, filosoficamente falando, e ainda assim considerar justas as lutas contra a desigualdade, contra o racismo e contra a exploração de classe. Mais do que isso: não há problema algum em acreditar que esses problemas possuem soluções. Do mesmo modo, você também estará correto se pensar que a humanidade tem plena capacidade de melhorar a qualidade de vida de todos aplicando descobertas no campo científico a técnicas avançadas. Afinal, a humanidade tem feito isso nos últimos séculos: aos poucos, ela supera problemas sociais e tecnológicos.

O ano de 2020 nos trouxe versões atualizadas de aflições que a humanidade já conhece bem, ainda que volta e meia nós nos acostumemos com elas ao ponto de esquecermos que são ruins e que precisam de respostas. Racismo. Pobreza. Exploração. Falta de perspectiva econômica. Bilhões de pessoas se virando para sobreviver e matando umas as outras por oportunidades cada vez piores. Epidemia. Tudo isso enquanto os donos do mundo, que são poucos, vivem na opulência e no privilégio. No caso brasileiro, temos ainda que suportar um governo que é um dos exemplos mais bizarros da onda reacionária e neofascista que se abateu sobre o mundo nos últimos anos, movida por um crescente movimento obscurantista de décadas, do qual eu mesmo já fui um admirador idiota no passado. Contudo, apesar desses problemas serem complexos, não é tolice crer que possam ser resolvidos, por mais difícil que seja o enfrentamento.

Entre o final do século passado e o início deste, diversos pensadores, uns mais sérios do que outros, imaginaram a resolução de questões ainda mais profundas e que afligem o ser humano desde os seus primórdios, questões que mexeram com as sociedades ao longo da história e, também, com a espécie humana em si. Refiro-me à proposta de certos futuristas norte-americanos e europeus de extender a vida humana indefinidamente, seja por meios de tecnologias médicas que retardem, impeçam ou revertam o envelhecimento, seja através de meios quase que mágicos de transferência da nossa consciência para computadores, tornando-nos virtualmente imortais. Em luz do ano de 2020 e seus problemas mais prementes, sonhos de imortalidade vindos de pensadores brancos europeus e norte-americanos soam como white people problems, e de certa forma até são mesmo. Mas tais sonhos, ou propostas, servem para ilustrar o quão fútil e mal direcionados são determinados esforços e vontades humanas, pelo menos a partir de uma filosofia negativa.

Nick Bostrom, filósofo sueco que se tornou bastante conhecido pelo seu argumento de que provavelmente vivemos em uma simulação de ancestrais feitas por seres humanos muito avançados, publicou um texto em meados dos anos 2000 intitulado “A Fábula do Dragão-Tirano”. Na história, a humanidade é afligida durante muitos e muitos séculos por um enorme dragão devorador de pessoas. Todos os dias, ao cair da noite, o dragão exige que alguns milhares de humanos sejam entregues ao pé da montanha onde vive para que ele possa se alimentar. Por mais que tentassem se rebelar, lutar, fazer magias ou rezas para destruir o dragão, nada acontecia, seu poder era absoluto. Os humanos, então, decidiram impor uma lei que obrigava que idosos fossem servidos de alimento para o dragão. Com tempo, surgiram “dragonólogos”, estudiosos da coisa. Religiosos e filósofos passaram a considerar o dragão como parte da ordem natural, algo benéfico, até. O passar dos séculos fez eles perceberem que quanto mais regularmente idosos eram servidos ao dragão-tirano, menos ele se revoltava e saía para arrasar cidades e matar pessoas aleatórias.

A medida em que a humanidade ia crescendo e se desenvolvendo, o dragão exigia um número maior de vítimas, chegando a mais de cem mil por dia. Ele mesmo foi aumentando de tamanho, sendo quase tão grande quanto a montanha em que habitava. Em um determinado momento, surgiram dragonólogos iconoclastas que resolveram questionar se era mesmo impossível matar o dragão. Com muito esforço, recursos e engenhosidade, a sociedade humana se mobilizou para criar uma arma capaz de matar o dragão, o que acontece ao final da história de Bostrom. O dragão, segundo o próprio Bostrom, é uma analogia para a morte. Segundo ele, a humanidade atual ainda está nos estágios primordiais de questionamento da necessidade da morte. Um dia, porém, através de muito esforço e da engenhosidade humana, tecnologias avançadas serão capazes de nos tornar impermeáveis à velhice e às doenças mortais.

O problema todo é que isso se pauta na ideia de que a morte é o único ou o maior de todos os males, o que não é necessariamente verdade, especialmente em se tratando de filosofias negativas (CIORAN, 1989, 1990, 1990). O nascimento, o passar a existir, nos coloca forçosamente dentro de uma estrutura terminal, independentemente da morte pontual que ocorre ao final de nossas vidas (CABRERA, 2018) . Dentro desta estrutura terminal do ser:
“O ser humano é afetado, desde o início do seu surgimento, por três tipos de atrito: dor física (em forma de doenças, acidentes e catástrofes às quais está desde sempre exposto); desânimo (na forma do ‘faltar a vontade’ (a ‘gana’) de continuar agindo, desde o simples tedium vitae até formas graves de depressão); e, por último, a exposição à ação agressiva de outros humanos (em forma de discriminações, palavrórios, fofocas, calúnias, exclusões, perseguições, injustiças, tortura física e psicológica, e mesmo extermínio), também eles submetidos aos três tipos de atrito.” (CABRERA, 2018)
Para conseguir enfrentar isso, nós nos equipamos “de mecanismos de criação de valores positivos que funcionam como defesa [...] mecanismos que o humano deve manter constantemente ativos contra os avanços do surgimento decrescente e seus três tipos de atrito.” (CABRERA, 2018) Os valores positivos que criamos são capazes de adiar, amenizar, atenuar os atritos. Eles são capazes até de nos fazer esquecer completamente a nossa condição. De nada adiantaria ser imortal, pois esses atritos continuarão existindo. Na hipótese de sermos capazes de controlar a dor física e até a emocional através de tecnologias futuras, ainda continuaríamos com outros tipos de atrito, como o tédio, que junto com a dor, é condição basal da existência dos seres humanos (SCHOPENHAUER, 2014, 2015).

Há que se ter um pé atrás, também, quanto a nossa capacidade de solucionar problemas sem que novos revezes surjam. Máquinas movidas a combustíveis fósseis substituíram a tração animal, humana e eólica, mas elas criaram toda sorte de novos problemas. Trens, carros e aviões permitem um número enorme de pessoas viajar mais vezes e mais rápido, mas a existência dessas tecnologias já causou a morte de pessoas por acidentes, atropelamentos, atentados, guerras, etc. É como se existisse uma ironia diabólica embutida dentro da própria ideia de progresso.

Uma ética negativa olha para esse cenário todo e recusa as promessas de uma futura apoteose humana, promessas que ficam subentendidas nas filosofias positivas ou otimistas. Saímos do medievo, deixando todo aquele obscurantismo para trás, apenas para entrarmos na modernidade e vermos a morte de centenas de milhares de pessoas nas guerras que resultaram da Revolução Francesa — coisa que nunca ocorreu durante a Idade Média, por mais brutais e desumanos que fossem os conflitos, a quantidade de mortos e de miséria sempre foi menor. Saímos da “menoridade” coletiva, como dizia Kant sobre o Iluminismo, e chegamos à bomba nuclear. Progresso!

A recusa da vida não é necessariamente abraçar o suicídio, mas ela envolve, em grande parte, uma proposta de abstenção dos assuntos humanos, uma ética minimalista que visa deixar o menor rastro de estrago possível. Como escrevi há pouco, essa abstenção não significa que não possamos enfrentar questões sociais problemáticas. Ela também não significa que desafios tecnológicos não possam ser resolvidos. Porém, uma recusa da procriação está sim dentro do leque de opções encorajadas na luta contra o verdadeiro dragão-tirano: a existência em si, que engloba não apenas a morte, mas a vida, mesmo nos seus melhores aspectos.

Para a filosofia negativa, esses aspectos bons são apenas a “cenoura pendurada” na frente de qualquer ser vivo, fazendo aqui uma alusão ao burro que caminha em direção a uma cenoura que ele nunca alcança: sensações boas, sentimentos bons, que visam a permanência dos participantes no “jogo”. Essas sensações e sentimentos bons fazem com que os participantes produzam novos participantes, inclusive. A natureza, contudo, dentro de sua aleatoriedade biológica, produziu pelo menos um ser capaz de negá-la através de uma ética negativa: nós. Podemos ver as cordas que manipulam a realidade, algo que os outros animais não conseguem enxergar, e podemos escolher se continuamos o circo ou não. Dada a nossa constituição de morte estrutural, que continuaria ainda que fôssemos virtualmente imortais (a imortalidade absoluta é impossível dentro das leis da física), a resposta dos filósofos negativos é a recusa da vida em nome da ética, algo totalmente oposto ao que um pensador como Nietzsche fez, recusando a ética em nome de uma absolutização da vida (CABRERA, 2018).

Para alguns filósofos pessimistas contemporâneos, ainda que nascêssemos para termos uma vida genuinamente imortal e divina, uma vida repleta apenas de prazeres e sem nenhum tipo de dor, tédio ou angústia existencial, gerar uma nova pessoa não seria uma obrigação. Seria, no máximo, uma escolha indiferente. Isso ocorreria porque, segundo o argumento antinatalista, se A não existir, A não perde nada, nem mesmo os possíveis estados positivos que desfrutaria — e isso não é ruim, visto que A não existe para perder tais estados positivos. Porém, se A não existir, A não passará por estados negativos — e, ao contrário do cenário anterior, o argumento afirma que isso é bom, mesmo que A não exista para se beneficiar (BENATAR, 2006).

A intuição por trás do argumento antinatalista é a seguinte: estados positivos não fazem falta para alguém que nunca existiu (tanto faz haver um sorvete delicioso num planeta inabitado); porém, é bom quando estados negativos não são capazes de machucar seres inexistentes (é bom que não exista ninguém num planeta que chova ácido sulfúrico). Um exemplo real: o impacto do cometa Schumaker-Levy em Júpiter não provocou nenhum estado negativo em seres sencientes (capazes de sentir sensações boas e ruins, prazer e dor), porque Júpiter não é habitado por seres sencientes, até onde sabemos. Seguindo o argumento apresentado, mesmo que nossas vidas fossem verdadeiramente imortais e divinas, seria indiferente criarmos ou não novos seres imortais e divinos porque, embora eles fossem ter vidas maravilhosas caso fossem criados, ao não criá-los, eles não existiriam para sentir falta desses estados positivos maravilhosos.

Entretanto, sabemos que estamos longe disso acontecer. Aliás, temos uma boa ideia de que, por mais que avancemos tecnologicamente, as leis da natureza simplesmente nos impediriam de um dia alcançarmos esse estágio absoluto de benesses. Entretanto, apesar de sabermos que nunca seremos seres divinos, imortais e abençoados, sabemos também que existe espaço para muita melhora na vida humana concreta, real. Há diversos problemas e injustiças sociais que podem ser resolvidos. Há também problemas tecnológicos que podem ser vencidos. Contudo, dentro de uma perspectiva negativa, não há nenhuma razão pela qual devamos esperar para por em prática uma ética minimalista — isto é, não existem motivos pelos quais devamos perpetuar a vida através de uma contínua e incessante reprodução, na esperança de um futuro que justifique todos os nossos sofrimentos.

É possível que algum visionário do ano 900 tenha pensado: “um dia, a humanidade será capaz de realizar algum tipo de procedimento para amputar um membro gangrenado sem dor e sem que isso possa causar uma febre [infecção] que mate a pessoa”. Porém, qualquer perspectiva passada de que um dia avançaríamos ao ponto de operarmos com anestesia e termos antibióticos não justifica em nada as dores pelas quais incontáveis humanos passaram no período anterior à anestesia geral e aos antibióticos. Sim, devemos tentar melhorar o mundo concreto agora, hoje. Mas nenhuma transformação futura justificará trazermos novas pessoas ao mundo, sem que elas possam consentir, para que elas definhem e morram. Nem mesmo a perspectiva futura de que tais pessoas, em sua maioria, gostem de suas vidas e sejam gratas por terem existido.


Por Fernando Olszewski

Referências:
https://www.nickbostrom.com/fable/dragon.html
. BENATAR, David. Better Never to Have Been: the harm of coming into existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.
. CABRERA, Julio. Mal-estar e moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: Editora Unb, 2018.
. CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Tradução de: José Thomaz Brum.
. ______. De l’inconvénient d’être né. Paris: Gallimard, 1990.
. ______. La Chute dans le temps. Paris: Gallimard, 1990.
. SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014. Tradução de: José Souza de Oliveira.
. ______. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora Unesp, 2015. Tradução de: Jair Barboza.