Os culpados pelos 100 mil

Hoje é domingo, dia 2 de agosto. Ainda temos pouco mais de 93 mil mortos devido à pandemia de coronavírus — em números oficiais, mas sabemos que há subnotificação de mortos. Publicarei o texto quando atingirmos a marca dos 100 mil óbitos nos próximos dias.


No dia 26 de março, escrevi que Luciano Hang, Junior Durski, Roberto Justus, Olavo de Carvalho, Edir Macedo, Silas Malafaia e Jair Bolsonaro seriam os responsáveis pelo o que acontecesse a partir daquele momento no cenário da pandemia no Brasil. Claro que eles não seriam únicos responsáveis, mas, quando escrevi o texto, acreditava que essas figuras representavam o que havia de pior no negacionismo científico e no discurso imbecilizante brasileiro. Meses depois, creio que ainda representam. Porém, a verdade é mais profunda do que isso. Listo aqui algumas coisas que contribuíram diretamente com a tragédia.

Triunfo da morte sobre o Tempo, Georg Pencz

- NEGAÇÃO DA CIÊNCIA -

No dia 26 de março não haviam cem mortes confirmadas de covid-19 no país — oficialmente, o primeiro óbito ocorreu no dia 17 daquele mês. Desde o começo, os negacionistas da pandemia acusaram divulgadores científicos preocupados de "alarmistas". Ainda os acusam, apesar de terem morrido dezenas de milhares a mais do que as previsões toscas dos negacionistas. Por exemplo: o médico e político, Osmar Terra, disse que não morreriam nem 2100 pessoas.

Enquanto isso, o biólogo, doutor em virologia e divulgador científico, Átila Iamarino, vem sofrendo ataques públicos desde que alertou sobre os riscos da pandemia, meses atrás. Esses ataques pioraram muito nos últimos dias. Os negacionistas, pessoas como Osmar Terra e o empresário Roberto Justus, criticam-no por supostamente ter previsto que teríamos 1 milhão de mortos até o mês de agosto.

O problema todo é que os negacionistas da ciência fingem não saber que a previsão de 1 milhão de mortos não era do pobre Átila, mas da Imperial College em Londres, e que havia diversos condicionantes: a mortandade enorme ocorreria no Brasil e em outros países caso nenhuma medida de isolamento fosse adotada e caso uma parcela significativa da população, 70%, contraísse a doença. Sabemos que, por mais que o isolamento feito nos estados e municípios não tenha sido ideal, ele impediu que o pior cenário se concretizasse. Aliás, já sabíamos que o pior cenário não ocorreria quando os governadores de vários estados promoveram o isolamento social. O próprio Átila disse isso, ainda em março.

De lá para cá, descobrimos muitas coisas. Uma delas é que a hidroxicloroquina, medicamento propagandeado pelo presidente e seus apoiadores como cura milagrosa e cristã (literalmente, não é ironia), não apenas não ajuda a curar a covid-19 como pode ter efeitos colaterais pavorosos para aqueles que contraíram a doença. Sabemos que medidas de isolamento e higiene, como o uso de máscaras e álcool gel, ajudam a prevenir que o vírus se espalhe de forma mais rápida. Mesmo assim, os negacionistas da ciência afirmam um suposto direito de andarem nas ruas e entrarem em estabelecimentos comerciais sem máscara.

- OBSCURANTISMO MÁGICO-RELIGIOSO -

O pensamento obscurantista mágico-religioso sempre está presente, em maior ou menor grau, independentemente da sociedade em que se vive. Arrisco dizer que esse tipo de pensamento é diminuto em lugares como a Noruega, enquanto que ele existe em maior grau em países como os Estados Unidos e Brasil, ao ponto de influenciar eleições e políticas públicas. Há, também, os exemplos mais extremos, as teocracias: países como a Arábia Saudita e Irã. Nesses lugares, o obscurantismo mágico-religioso geralmente tem a palavra final. Isso é irônico nos tempos atuais, visto que até a Arábia Saudita tem exigido distanciamento social de todos os peregrinos que visitam Meca.

Não é segredo algum que a grande maioria dos eleitores evangélicos votou em Bolsonaro e que houve pregação maciça  nas igrejas pela sua eleição. No caso dos católicos, Bolsonaro também venceu, mas com uma margem pequena, quase havendo empate. Recentemente, venho notando que, quando criticam a vasta maioria das igrejas evangélicas brasileiras por conta de suas visões obscurantistas e reacionárias, sempre surgem alguns que dizem que não podemos generalizar. Invariavelmente, citam Martin Luther King como exemplo de evangélico progressista.

É um tanto triste pensar que MLK seja lembrado quase como que uma figura mágica do movimento pela igualdade racial, enquanto pretos ateus e sindicalistas como A. Philip Randolph são quase que totalmente esquecidos. Randolph foi quem idealizou e depois organizou, junto com MLK, a grandiosa marcha em Washington. Sem Randolph, um ateu convicto, o famoso discurso "I have a dream" não teria acontecido. Hoje em dia, quando muito, alguns lembram que não haviam apenas cristãos lutando pela igualdade racial nos Estados Unidos na década de 1960 — e citam Malcolm X, um muçulmano. Parece que a religião sempre precisa apodrecer tudo, inclusive todas as iniciativas de libertação humana, é impressionante.

Não, mencionar MLK não faz diferença alguma. A própria forma como ele enxergava a sua religião protestante nada tem a ver com a grande maioria das igrejas evangélicas existentes hoje no Brasil — elas são pautadas em ignorância e teologia da prosperidade, o que é prato cheio para pregar neoliberalismo, valores ultra-reacionários e curas milagrosas como "cloroquina de Jesus". Sei que há um apego emocional de muitos que cresceram dentro de famílias que se tornaram evangélicas nas últimas décadas e que nem todos são reacionários obscurantistas. Quando eu era criança, era mais raro ver gente que nasceu e cresceu dentro de um ambiente familiar neopentecostal. Hoje é comum. Mas esse apego emocional não livra a responsabilidade da vasta maioria das igrejas neopentecostais e seus fiéis que surgiram nas últimas décadas no nosso país.

- MILITARES INEPTOS E CORRUPTOS -

O reacionarismo boçal brasileiro nunca vem desacompanhado de elogios à ditadura militar que tivemos entre 1964 e 1985. Já escrevi sobre mitos relacionados à ditadura, especialmente sobre a farsa de que a segurança pública era muito superior naquele período. Ao longo do tempo, ainda mais depois da redemocratização, certos setores da sociedade brasileira aderiram a um mito de que o nosso oficialato seria formado por intelectuais de ponta, poliglotas, homens cosmopolitas de vivência internacional. Cansei de escutar que, nas pesquisas de opinião, as forças armadas eram a instituição da república na qual os cidadãos mais confiavam.

Pois bem. Durante a ditadura, além da perseguição política aos esquerdistas, não faltaram escândalos de corrupção, abusos sexuais, estupros de crianças e assassinatos (não relacionados à questões de segurança nacional) que foram abafados pelo regime. Foi um circo dos horrores. Dois dos casos mais emblemáticos foram os de Ana Lídia, em Brasília, e Araceli, em Vitória, ambas entre 7 e 8 anos de idade. Nos dois casos, a impunidade reinou graças à influência sócio-econômica dos envolvidos. A imprensa não era livre para tratar do assunto com mais afinco. Ficou por isso mesmo.

Havia corrupção, sim. Havia impunidade, sim. E, depois da redemocratização, não foram poucos os casos de desvio de armas e munições, vendidas de dentro dos quartéis para o crime organizado. Não são poucos os casos de militares e policiais militares que matam inocentes e saem impunes. Preciso lembrar Ághata e Evaldo mais uma vez?

Apesar de não participarmos de conflitos armados desde a nossa pequena participação na Segunda Guerra Mundial — e não, missões de paz não são a mesma coisa —, nosso oficialato é uma das classes mais privilegiadas de funcionários do Estado em todo mundo. Basta ver como foram bem tratados na reforma da previdência de 2019. Toda a economia que seria feita modificando o regime previdenciário dos militares foi destruída com aumento de salários. Ainda assim, as aposentadorias dos nossos oficiais continuam sendo as melhores do mundo. Generais americanos, que de fato vão para guerras, têm aposentadorias menores em proporção ao resto da população americana do que os nossos generais têm ao compararmos com a aposentadoria do resto da população brasileira.

Não bastasse esses absurdos, agora, com Bolsonaro no poder, temos há meses um Ministério da Saúde comandado por Pazuello, um general inepto, supostamente especializado em logística, que defende o kit cloroquina e ignora a falta de diversos medicamentos necessários para entubar pessoas. Ele segue as ordens do presidente, um sujeito que há décadas é envolvido com o crime organizado, e vem loteando o Ministério da Saúde, distribuindo cargos para militares sem especialidade ou experiência na área da saúde.

Para piorar a situação, indicou uma amiga sua de longa data, sem nenhuma especialização ou experiência na área da saúde — ou em qualquer área, é uma socialite — para ocupar cargo de chefia no Ministério, ganhando um salário de mais de 10 mil reais. Não bastasse isso, a filha de Pazuello pediu o auxílio emergencial de 600 reais destinado aos mais pobres. Desde o ano passado, milhares de militares vêm ocupando cargos na administração pública do país, duplicando ou até triplicando seus salários em cargos onde não fazem nada. De nada adiantou encher o governo e a administração pública de oficiais das forças armadas. Nada.

- DISPLICÊNCIA GENERALIZADA -

Então, de quem é a culpa, de verdade? Dos negacionistas impulsionados por personalidades, empresários, líderes religiosos e políticos da direita reacionária? Sim, é deles, também. É verdade que, no Brasil, eles são de fato os grandes culpados. Mas há países que são comandados por governos de esquerda há muito tempo que também propagaram discursos loucos sobre o coronavírus.

Por exemplo, Daniel Ortega, ditador "popular" da Nicarágua, nega a gravidade da pandemia, estimula aglomerações e oculta dados sobre contaminados e mortos. Nicolás Maduro, chefe de Estado venezuelano, propagou os benefícios da hidroxicloroquina. Vivemos em um mundo tão louco que não é impossível (embora improvável) imaginar uma realidade alternativa na qual Lula nunca fosse preso, vencesse em 2018 e hoje estivesse negando a gravidade da situação — essa realidade alternativa é bem mais difícil de imaginar caso Haddad fosse presidente, claro; mas Haddad é, antes de tudo, um intelectual.

Não faço aqui uma falsa equivalência. É claro que, no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia, o obscurantismo reacionário de figuras como Bolsonaro e Trump é muito pior do que qualquer outra coisa que temos no mundo. Então, a culpa dos 100 mil mortos no Brasil (em números oficiais) é do reacionarismo obscurantista? Sim, é. A culpa é do tio do churrasco, do tia do WhatsApp, que são fascistas sem saber que são.

Mas a culpa não é só deles. A culpa também é dos cirandeiros de classe média que lotam a mureta da Urca e barezinhos na Tijuca. A culpa é daqueles que vão para baladas, bailes funk, festas e aglomerações sem máscara e pior: sem a menor necessidade. Entre esses, há ricos eleitores do Bolsonaro, sim. Mas também há pobres, muitos dos quais não votaram no Bolsonaro, que além de se exporem ao vírus para trabalhar, já que não podem fazer home office, expõem-se no lazer, também.

Uma parcela significativa da população não está nem aí, essa é a verdade. Séculos de massacres e escravidão, seguidos por décadas de violência urbana extrema, deixaram o brasileiro insensível ao grotesco. Muitos de nós ficamos insensíveis à mortandade ainda na juventude, independentemente das nossas crenças. Talvez a maioria de nós seja insensível. Adicione a isso uma pitada de obscurantismo mágico-religioso e pensamento reacionário, e temos a fórmula para o desastre.


Por Fernando Olszewski

Referências: