Os cristãos destruirão o Brasil

Aqueles que me conhecem pouco podem achar que minhas inúmeras críticas às religiões e aos religiosos traem um ódio visceral da minha parte. Porém, não só não há um ódio visceral da minha parte, como não há ódio algum. Em termos de criações humanas, poucas coisas são tão lindas para mim quanto os azan islâmicos, os cantos dos monges tibetanos, os templos do jainismo e as igrejas cristãs construídas séculos atrás — sejam elas católicas, ortodoxas ou protestantes.

Cristo liderando os cruzados, ilustração do século XIV

O grande problema que vejo é com determinados religiosos extremamente vocais. Eles não são poucos, há muito deixaram de ser minoria. Falo aqui de pessoas tão histriônicas que chegam ao ponto de acreditarem haver validade real no seu pensamento mágico-religioso, validade esta que deve, segundo elas, sobrepor-se à laicidade das sociedades contemporâneas. As religiões vêm da necessidade humana de buscar uma ligação com algo maior, algo que transcende o mundano. Respeito essa necessidade. O que não respeito é que ela se sobreponha à razão, à empiria e à laicidade que foram conquistadas a duras penas. O que não respeito é passarem pano para fanáticos.

Recentemente, um padre foi punido pela Igreja Católica por abençoar uma união homossexual. Compadeço-me do casal e, também, do padre. O casal deve sentir uma grande necessidade de ver o seu amor ser aceito por essa instituição religiosa. E, ao que tudo indica, o padre discorda dos ensinamentos homofóbicos do catolicismo e crê ser possível alterá-los. Seria bacana, sim, mas não acontecerá. Dogmas não são democráticos e nem suscetíveis à evolução.

É melancólico saber que muitos sentem uma necessidade imensa de participar de religiões cujos ensinamentos as tratam como pecadoras. As pessoas sentem uma vontade tão grande de se ligarem a “algo maior” que elas necessitam de validação daqueles que “guardam as chaves do divino”, sejam eles padres, pastores, imãs, monges, sábios ou o que quer que seja.

A instituição católica e praticamente todas as denominações protestantes se reservam o direito de continuarem pregando suas doutrinas milenares. Dentre essas doutrinas, está a que diz que relações do mesmo sexo são pecado. Percebam: é por conta dessas coisas que a laicidade do Estado é tão importante. As religiões podem ensinar o que for, mas um casal homossexual têm o direito de se unir segundo as leis do Estado laico. O Estado democrático de direito admite a evolução de seus conceitos e de suas leis, já as leis de (um suposto) Deus são imutáveis. Sinto muito pelo casal e pelo padre, de verdade. Acredito que eles lucrariam deixando a Igreja para trás e buscando a transcendência que tanto precisam em outros lugares.

Esse caso é só uma gota d'água no oceano de problemas causados pelo dogmatismo religioso. Em um Estado laico, uma instituição religiosa tem o direito de condenar o que quiser como sendo pecado, contanto que faça isso dentro de suas portas e não tente impor essa visão ao resto da sociedade. Mas e quando as religiões fazem com que as pessoas ajam violentamente contra terceiros que nem sequer participam da mesma religião?

Recentemente, pudemos acompanhar o escândalo de uma mãe que perdeu a guarda da filha por ter permitido que a adolescente participasse de uma cerimônia de candomblé. Ficou bastante claro que houve preconceito religioso por parte dos assistentes sociais evolvidos. A avó, que é evangélica, fez várias acusações infundadas, acusações essas que foram acatadas pelo Conselho Tutelar mesmo depois da polícia descartar abusos à adolescente. Foi mais um nítido caso de cristãos considerando religiões diferentes como “satanismo” e agindo para “proteger uma alma inocente”. Nas redes sociais, muitas pessoas falaram sobre como seria legal se esses cristãos aceitassem que os deuses dos outros não são demônios. Várias manifestações em favor da tolerância foram feitas.

Sim, seria muito bacana que cristãos exaltados respeitassem ou, no mínimo, tolerassem a fé alheia. Mas não é assim que funciona a realidade. Não adianta apelar ao bom-senso e à tolerância de religiosos fundamentalistas, sejam eles cristãos ou não. É claro que o extremismo e fundamentalismo religioso nunca foi monopólio do cristianismo ao longo da história humana. Há outras religiões que agem de forma ainda mais extrema e fundamentalista no mundo de hoje. Porém, devemos lembrar que o Brasil é um país onde o cristianismo reina. A preocupação que temos que ter aqui é com a radicalização dos cristãos, visto que eles são maioria esmagadora, mesmo quando separamos as diferentes denominações.

Ensinar que os deuses e entidades de outras religiões são demônios sempre foi parte fundamental do cristianismo. Aqueles que levam a doutrina cristã de forma extremamente séria não têm como pensar de maneira diferente, sejam eles católicos ou protestantes.

Tal crença está ou esteve presente em praticamente todas as denominações cristãs. Hostilidades aconteceram até mesmo entre cristãos que pensavam diferente uns dos outros, ao ponto de ocorrerem guerras terríveis entre denominações cristãs diferentes. Tudo isso porque elas acusavam umas às outras de não adorarem Deus da forma correta, o que era o mesmo que adorar o demônio. Esse tipo de doutrina não ficou no passado. No mundo contemporâneo, tal interpretação serve como pedra angular do cristianismo neopentecostal que tem tomado conta do país e está prestes a se tornar a religião da maioria dos brasileiros, se já não é.

Embora isso também ocorra entre católicos, no catolicismo de hoje em dia parece haver espaço para interpretações menos intolerantes — ênfase no parece. Contudo, tratar os deuses das outras religiões como demônios é um dos pilares sem os quais o cristianismo evangélico neopentecostal não se sustenta. Não basta eles acreditarem que os deuses das outras religiões são demônios, como fazem os católicos menos intolerantes — não, muitos neopentecostais sentem a necessidade de atacar fisicamente terreiros de candomblé e de umbanda, por exemplo; isso quando não agridem os praticantes dessas religiões.

Há uma mistura crescente de fanatismo violento com o mais descarado mercantilismo. Sempre que viajo para a chácara de meu avô, no interior de SP, faço o exercício de assistir aos vários canais evangélicos e católicos. A Rede Vida, por exemplo, é tipo um Shoptime católico: vendem estátuas de “Maria passa na frente” e bacalhau norueguês da Topterm em meio às orações. O método de venda dos católicos aparenta ser mais acanhado que o dos evangélicos neopentecostais, mas ele é tão grotesco quanto.

Minha avó paterna, que morreu em janeiro de 2018, vivia assistindo o programa do Pai Eterno, liderado pelo famoso padre Robson. Este padre agora é investigado por desvios multimilionários. Segundo algumas acusações, ele também quebrava o celibato para se relacionar com homens — o que é irrelevante para um descrente como eu, mas, caso confirmado, demonstraria uma imensa hipocrisia da parte de um padre, especialmente um padre que serve como gigantesco porta-voz de uma instituição religiosa que perpetua homofobia.

Escândalos similares podem ser observados em denominações evangélicas. A fé cristã é recheada de escândalos, mas boa parte dos cristãos brasileiros contemporâneos, incitados por seus padres e seus pastores vendilhões, ainda se sentem no direito de perseguir pessoas tidas como pecadoras dentro de suas igrejas, além de perseguir praticantes de outras religiões. Quando podem, eles utilizam até o aparato do Estado para perseguir outras religiões, como no caso da mãe que perdeu a guarda da filha adolescente ao permitir que ela participasse de uma cerimônia de candomblé.

Não à toa, muitas das minhas manifestações recentes de desespero político ocorreram, em grande parte, por ter a certeza que em 2020 reelegeremos figuras como Crivella nas eleições municipais. O mesmo ocorrerá em 2022, nas eleições para governador e presidente. Creio que o Brasil tenderá a eleger demagogos que falam em nome de Jesus e contra a corrupção, e por corrupção leia-se: comunismo, ateísmo, valores liberais, etc. Desvio de verba para pagar Guardiões do Crivella e Gabinete do Ódio não são vistos como corrupção pela maioria dos cristãos. Há dois anos atrás, com a eleição de Bolsonaro — um boçal que evoca Deus a todo momento e defende ministros “terrivelmente evangélicos” no STF — penso que determinadas comportas foram abertas que não poderão ser fechadas tão cedo. Deve piorar muito antes de melhorar.

Neste momento da crítica, sempre aparece algum cristão apegado à religião na qual cresceu para dizer: “nem todos nós somos assim, lembre-se do progressista Martin Luther King!” Esquecem que o sequestro do movimento negro norte-americano por pastores fez da comunidade afroamericana uma das mais homofóbicas daquele país. Quase ninguém se recorda de Asa Philip Randolph, sindicalista negro e ateu que foi fundamental na luta pelos direitos civis na década de 1960. Foi ele quem organizou a marcha em Washington na qual Martin Luther King fez seu famoso discurso “I have a dream...”. Menos lembrado ainda é Bayard Rustin, sindicalista negro e abertamente gay.

Entre os católicos mais progressistas, há aqueles que gostam de lembrar que Madre Teresa de Calcutá foi exemplo de solidariedade com os menos favorecidos. Esquecem-se que mesmo ela foi acusada por fontes diversas de fazer proselitismo com aqueles que estavam à beira da morte, além de existirem evidências de que os doentes em suas missões eram mantidos em dor e agonia, algo que supostamente os colocaria próximos de Deus.

Fora as acusações, que são rebatidas por seus defensores, existem também as opiniões controversas que ela própria expôs publicamente. Uma delas foi durante o seu discurso pelo recebimento do prêmio Nobel da Paz, em 1979, no qual ela disse que a maior ameaça à paz mundial era o aborto — ideia cretina que hoje ouviríamos da boca de pessoas como Sara Giromini. Além da sua oposição ao aborto, Madre Teresa era ferrenhamente contrária a todos os métodos contraceptivos e ao divórcio, mesmo vivendo em um país extremamente patriarcal, com uma população gigantesca e miserável.

Portanto, por mais que evangélicos e católicos progressistas deem como exemplos grandes figuras associadas a causas progressistas, como igualdade racial no caso de MLK e a solidariedade com os pobres no caso de Madre Teresa, a verdade é que mesmo esses exemplos não estão livres de controvérsias ou até de escândalos que colocam em xeque sua validade. Sim, existem cristãos progressistas. Sim, embora não sejam perfeitos, MLK e Madre Teresa fizeram o bem, pelo menos da forma como enxergavam. Mas os cristãos progressistas precisam assumir que são uma insignificante minoria no Brasil, principalmente no caso dos cristãos evangélicos.

Nas eleições presidenciais de 2018, cerca de 70% dos eleitores evangélicos votaram em Bolsonaro. Entre os eleitores católicos, Bolsonaro também venceu, mas com uma diferença menor, 51%. Em março, o pastor José Wellington Bezerra da Costa, líder da Assembleia de Deus no país, disse em entrevista que, se depender dos evangélicos, Bolsonaro está reeleito. Isso foi dito antes do auxílio emergencial por conta da pandemia aumentar a popularidade do presidente.

Agora, no Brasil pós-auxílio emergencial, vejo que muitos analistas políticos deixaram de dar relevância para pauta dos valores religiosos. Ainda pensam que Damares e Olavo são "cortina de fumaça" ou, no máximo, pautas auxiliares. Discordo. Inclusive arrisco dizer que a pauta religiosa, dos costumes, é muito mais importante para o sustento da popularidade do governo Bolsonaro do que a permanência de Paulo Guedes na pasta da economia.

Infelizmente, muitos preferem acreditar que tudo é uma questão material. Sim, a questão material é fundamental. Afinal, nós precisamos de comida física para sobreviver, não existe pão metafísico. Contudo, dado o grau crescente de fanatismo, não é difícil imaginar que uma parcela significativa da população crente e pobre prefira um auxílio emergencial menor vindo de um presidente que impõe Jesus goela abaixo da sociedade a um auxílio maior vindo de um governo laico que respeita os direitos LGBTQ+ e não favorece as igrejas.

Tenho poucas dúvidas de que, embora o auxílio do Estado seja importante para a aprovação de um governante, o pobre fanatizado por padres e pastores sempre preferirá o governante “temente a Deus”, mesmo que isso signifique um auxílio menor. Entre um “comunista” dando condições dignas de vida e um cristão demagogo dando uma esmola, a maior parte do povo acabará apoiando o cristão demagogo. Principalmente agora que o alçapão da demagogia religiosa foi escancarado no Brasil pós-2016. A caixa de Pandora se abriu e os males escaparam.

A partir de agora, será muito mais fácil proibirem aborto legal para vítimas de estupro do que expandirem o direito a todas as mulheres. Também já não é mais inconcebível que o casamento gay volte a ser proibido através de alguma legislação draconiana. Há hoje no país um crescimento pavoroso no número de terraplanistas e de pessoas contrárias à vacinação — ambos os grupos são fortemente impulsionados por leituras bíblicas toscas. Não se surpreendam quando começarem a forçar o ensino de criacionismo em escolas públicas — afinal, há anos que cristãos tentam enfiar orações em colégios públicos.

Caminhamos por uma estrada perigosa e muitos fingem que está tudo normal. Caso o pior aconteça, os grandes pensadores da atualidade, que ignoram o perigo, dirão: ninguém poderia imaginar tal destino! Isso se eles ainda estiverem vivos para contar a história. Mas o destino inimaginável está escancarado na cara deles e de todos nós.


Por Fernando Olszewski

Referências:
Homophobia, hypermasculinity, and the US Black Church - Artigo de Elijah G. Ward publicado em setembro de 2005 na revista Culture Health & Sexuality.
. Deconstructing Sodom and Gomorrah: A Historical Analysis of the Mythology of Black Homophobia - Trabalho de Doutorado de Lance E. Poston (Ohio University), publicado em 2018.