O sangue evitável

Pode parecer que alguém que defenda a posição filosófica de que todos os seres sencientes se encaixam dentro de uma estrutura terminal e atritada — e que portanto teria sido melhor não termos existido — não tem como se revoltar com as brutalidades do sistema socioeconômico em que vivemos e querer que as coisas mudem, mas isso é apenas aparência. Uma posição é perfeitamente compatível com a outra. Inclusive, argumento que uma posição leva à outra, embora não creia que isso ocorra sempre, tendo em vista os diferentes afetos que temos e que nos levam a ter diferentes visões de mundo, inclusive da política.


3 de maio de 1808, por Francisco Goya

Na véspera da comemoração do Dia da Consciência Negra no Brasil, o país assistiu ao assassinato de um homem negro em um supermercado da rede Carrefour, na cidade de Porto Alegre. Ele foi espancado até a morte por dois seguranças brancos do estabelecimento, sob os olhares atentos de outros funcionários e funcionárias brancos do local. O espancamento começou depois do homem supostamente ter dado um soco em um dos seguranças, após ser levado para fora do supermercado por ter discutido com uma caixa. A ação foi filmada por populares.

Fica a pergunta: isso teria ocorrido se fosse um branco, loiro, “bem vestido”? Ao observarmos as estatísticas, dificilmente. Segundo os dados divulgados pelo Ipea no Atlas da Violência 2020, os negros são de longe as maiores vítimas de homicídios no país: a taxa de homicídios entre pessoas negras é de 37,8 por 100 mil habitantes (CERQUEIRA; BUENO, 2020). Quando comparamos com os não-negros (brancos, asiáticos, índios), a taxa de homicídios por 100 mil habitantes cai pra 13,9. O mesmo ocorre com outros tipos de crimes. É como se os negros vivessem em outro país, muito mais violento e brutal.

Uma parcela significativa dessas mortes são perpetradas por agentes de segurança pública e privada. Não é novidade para ninguém que o Brasil tem uma das polícias que mais mata no mundo — e uma das que mais saem impunes, o que contraria a narrativa conservadora de que o policial no Brasil não tem como exercer sua profissão por temer ser processado.
Nossas forças de segurança, desde o alto comando do exército até o guarda da esquina, são treinadas para defender pessoas brancas e pertencentes às classes mais altas. Essa é a razão pela qual a polícia pode matar impunemente em favelas enquanto que jamais faria isso no Leblon. E não precisa ser multimilionário para receber tratamento diferencial, basta observar shopping centers da zona norte do Rio. Negros são muito mais vigiados e seguidos por seguranças do que brancos. Até pedintes brancos têm mais liberdade de mendigar em shoppings do que pedintes negros, que dificilmente têm a entrada permitida.

Poderia escrever aqui sobre a hipocrisia e o racismo implícito daqueles que criticam o Dia da Consciência Negra ao mesmo tempo em que acham lindas a Oktoberfest e outras celebrações de imigrantes europeus, mas já fiz isso em outros textos. Nesta altura do campeonato, ou as pessoas que pensam dessa forma são completamente ignorantes a ponto de não saberem nada do que falam ou elas são racistas. Em uma quantidade significativa de casos, são as duas coisas. Porém, cada vez mais há aqueles que, mesmo aprendendo o que é certo, escolhem o errado porque seus afetos não os permitem agir de forma diferente. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores, é um exemplo. Bolsonaro e seus filhos também. Eles tiveram todas as oportunidades para aprender que defendem imbecilidades, mas algo dentro deles os impedem de mudar.

Também é interessante neste momento o silêncio das igrejas neopentecostais, tão presentes na cena nacional quando se trata de qualquer outro assunto. Quando igrejas evangélicas são criticadas por defenderem as estruturas mais opressoras que permeiam o sistema em que vivemos, invariavelmente surgem dois ou três fiéis um pouco menos fundamentalistas e dizem: “Mas Martin Luther King era evangélico e progressista!” Alguém precisa explicar para essas pessoas que dizer isso não muda coisa alguma. Além do que, o sequestro do movimento pela justiça racial nos Estados Unidos na década de 1960 por lideranças religiosas produziu efeitos adversos na comunidade negra daquele país que perduram até hoje (POSTON, 2018; WARD, 2005).

Portanto, não escrevo este texto para conservadores, nem para cristãos fundamentalistas e grupos afins, porque infelizmente esses grupos não conseguem nem começar um diálogo interno que os permita questionar suas crenças, salvo raríssimas exceções. Seus afetos não os permitem fazer isso.

Meu objetivo aqui é expor resumidamente como alguém que não enxerga propósito em uma existência repleta de dores e pautada na terminalidade do ser pode também defender o fim de injustiças e opressões que humanos promovem uns contra os outros. Como alguém pode defender a posição de que seria melhor não termos existido — e que, portanto, o correto a se fazer é não nos reproduzirmos — e, ao mesmo tempo, defender que o capitalismo já deu o que tinha que dar e que a humanidade precisa de alternativas melhores, por exemplo? O que leva um pessimista cósmico a ver com bons olhos a luta política contra opressões sistêmicas?

A bem da verdade, quando se considera a vida como um campo de trabalhos forçados onde todos os dias alguns de nós são aleatoriamente executados, como escreveu Cormac McCarthy na sua peça — que virou filme — The Sunset Limited (2011), de fato o correto a se fazer é se abster da reprodução. Mas a história nos mostra que humanos se reproduzem até em campos de concentração e zonas de conflito (BLAKEMORE, 2018; DUBLIN, 1945). Quando analisamos a taxa de natalidade de sociedades mais prósperas, com índices baixos de pobreza e miséria, observamos que elas são baixas, enquanto que o oposto ocorre em sociedades subdesenvolvidas, com altos índices de pobreza, miséria e violência (NARGUND, 2009; GALLAGHER, 2018). Parece que quanto mais dura é a vida, mais queremos trazer novas pessoas para compartilhar a dor.

O que fazer sendo um oprimido, então? Partindo de uma perspectiva filosófica negativa, penso que mesmo aqueles que não são oprimidos e que fazem parte dos grupos mais privilegiados do mundo não deveriam se reproduzir. Caso quisessem muito, quanto menos filhos, menos sofrimento, portanto o “menos pior” é ter a menor quantidade possível, que seria um. Melhor ainda: existe a alternativa da adoção. Segundo a UNICEF (ORPHANS, 2008), há cerca 15.1 milhões de órfãos de pai e mãe no mundo, sendo que 5% deles têm até 5 anos de idade. A mesma prescrição ética vale os menos favorecidos e oprimidos, o melhor é não se reproduzir. Mas é perfeitamente compreensível ouvir de adultos que fazem parte de um grupo oprimido, como os negros no Brasil ou os palestinos na Faixa de Gaza, que eles têm o direito — e até o dever — de ter filhos que continuem suas lutas.

Da perspectiva do pessimismo cósmico, toda a vida é um cativeiro, mesmo as melhores delas, então reproduzir-se é o mesmo que colocar novas consciências neste cativeiro. Mas há pessoas que vivem cativeiros que vão além da perspectiva filosófica do pessimismo cósmico. Essas pessoas vivem em cativeiros reais, formados por estruturas humanas artificiais que podem e devem ser derrubadas para tornar a vida de todos um pouco menos pior. Claro que isso não mudará a estrutura terminal do ser, visto que isso é um dado ontológico inseparável do próprio ser. Isso também não acabará com os atritos que o ser enfrenta só por existir. Porém, se temos como melhorar determinados aspectos de nossas vidas — ainda mais para aqueles que estão vivos agora — porque não fazê-lo?

Éticas negativas e pessimistas como as de Emil Cioran ou Julio Cabrera tendem ao minimalismo, no sentido de que em boa parte dos casos, se não quase todos, nossas ações produzem consequências negativas imprevisíveis. Então, por mais que se adote uma ontologia negativa do universo e que, por isso, considere-se o antinatalismo como o melhor posicionamento ético, está fora de questão forçar os outros a fazer o mesmo através da violência. O filósofo antinatalista David Benatar não tem ilusões sobre sua proposta ética. Ele mesmo diz não há nenhuma possibilidade real de convencer, nem muito menos forçar as pessoas a não continuarem a perpetuação da vida. Além disso, ele argumenta que seria um erro querer forçar muitas de nossas próprias convicções filosóficas em cima dos outros e que devemos manter uma boa dose de ceticismo e cautela.

Há ainda outra questão. Digamos que todos os palestinos vivos atualmente decidissem por vontade própria parar de se reproduzir. Isso não resolveria a questão de que eles próprios são oprimidos hoje. O mesmo ocorreria com todos os outros humanos que são oprimidos por humanos. Portanto, eles têm todo o direito de lutar por uma existência menos atritada, independentemente de escolherem perpetuar a vida através da reprodução ou não. Claro que, partindo de uma filosofia pessimista, é melhor que escolham não perpetuar a miséria da vida senciente, mas essa decisão não está condicionada à luta por justiça e liberdade. Aqueles que têm vidas mais privilegiadas do que a maioria precisam entender isso e apoiar causas que ajudem a diminuir o sofrimento alheio.


Por Fernando Olszewski

Referências:
. CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira (org.). Atlas da Violência 2020. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.
. WARD, Elijah G. Homophobia, hypermasculinity, and the US Black Church. Culture Health & Sexuality.  S.l., v. 7, nº 5, p.493-504, set. 2005.
. POSTON, Lance E. Deconstructing Sodom and Gomorrah: A Historical Analysis of the Mythology of Black Homophobia. Athens: Ohio University, 2018.
.THE Sunset Limited. . Direção de Tommy Lee Jones. Roteiro: Cormac McCarthy. S.L.: HBO Films, 2011.
. GALLAGHER, James. 'Remarkable' decline in fertility rates. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/news/health-46118103.
. BLAKEMORE, Erin. This Midwife at Auschwitz Delivered 3,000 Babies in Unfathomable Conditions. 2018. Disponível em: https://www.history.com/news/auschwitz-midwife-stanislawa-leszczynska-saint.
. NERGUND, G. Declining birth rate in Developed Countries: A radical policy re-think is required. Facts, Views & Vision in ObGyn. S.l., v.1, nº 3, 2009.
. DUBLIN, Louis I. War and the Birth Rate: A Brief Historical Summary. American Journal of Public Health. S.l., v.35, abr.1945.
. ORPHANS. 2017. Nota de imprensa da UNICEF. Disponível em: https://www.unicef.org/media/media_45279.html.