Sofrimento e morte por todo lado

Já que o universo parece estar destinado a morrer no final das contas, realmente parece que estamos perdendo nosso tempo tentando nos perpetuar em uma paisagem em constante mudança, que simplesmente não permitirá que a vida sobreviva. Parece haver um tema recorrente em alguns pensamentos pessimistas e niilistas contemporâneos: de acordo com o nosso entendimento atual da cosmologia, o universo está destinado a morrer de um jeito ou de outro — provavelmente ele acabará na heat death, ou morte do calor, que ocorrerá quando a entropia alcançar seu ponto máximo em todos os lugares e nenhum trabalho, no sentido termodinâmico da palavra, puder mais ser realizado.
Bhavacakra tibetana

Isso é bastante sombrio, claro, e pode contribuir com uma visão pessimista da existência. Mas a finitude universal não é necessária quando tratamos de pessimismo cósmico. De fato, ela pode até oferecer um pouco de esperança quando pensamos a respeito. Ela nos apresenta a noção de que, não importa o que aconteça, não importa quantas vezes a senciência surja e evolua no universo, um dia tudo acabará. No final, haverá um final — para tudo, para sempre. Mas pode ser que isso não aconteça. Então, o que pensar? O pessimismo filosófico existe há um bom tempo, até mesmo entre aqueles que consideram o universo como sendo cíclico ou, de alguma maneira, infinito no tempo, pelo menos espiritualmente.

Por exemplo, o pensamento de que este mundo é um lugar terrível estava presente nos escritos antigos dos povos judeu, grego e hindu, para dar alguns exemplos de povos antigos que trataram do tema. E pelo menos no caso dos gregos e dos hindus, a visão predominante era de que o mundo se recicla depois de muito tempo. É importante notar aqui que a palavra “mundo” significa tudo aquilo que há, isto é, mundo aqui significa o mesmo que universo. Além dos gregos e hindus, escritores judeus muito provavelmente não pensavam que a morte era o fim de tudo, portanto, até mesmo se o mundo material estivesse destinado a acabar um dia, o mundo espiritual permaneceria. A noção de algo durando para sempre, seja esse algo material ou espiritual, estava presente nos antigos. Apesar disso, havia pessimismo no pensamento deles.

Se considerarmos Arthur Schopenhauer o primeiro pensador pessimista moderno, então ele também não estava familiarizado com o conceito de um universo destinado a alcançar a entropia máxima e permanecer dessa forma para sempre. Ele viveu e trabalhou a maior parte da sua vida durante a primeira metade do século XIX, antes mesmo de Darwin e Wallace publicarem a teoria da evolução das espécies, e muito antes da física avançada do século XX. Schopenhauer foi muito influenciado pela filosofia hindu, particularmente o budismo, que se tornou uma filosofia própria, separada da antiga religião védica. No budismo, a noção de um mundo que se recicla depois de muito tempo está presente e é parte crucial da soteriologia.

Apesar de ser admirador do budismo, Schopenhauer não acreditava nos aspectos sobrenaturais dessa religião, nem de qualquer outra. Mesmo assim, diferentes aspectos filosóficos de várias religiões o interessavam, particularmente aquelas doutrinas que consideram o mundo como um lugar terrível do qual devemos escapar de alguma forma — geralmente através da renúncia do mundo em si, tornando-nos ascetas. Além dele, Peter Wessel Zapffe e Emil Cioran foram dois filósofos pessimistas do século XX que também não dependiam da morte do universo para terem suas visões sombrias da realidade.

Ao contrário dos antigos, esses três filósofos viveram em um mundo onde a ciência empírica era considerada acima da fé quando alguém buscava expressar uma visão filosófica. Todos eles são pensadores pós-Iluministas. Até mesmo Schopenhauer, que viveu no século XIX e era um idealista transcendental como Immanuel Kant, não baseou sua filosofia apenas na razão sem limites ou na fé, mas na experiência e observação do mundo. O que fez eles serem pessimistas não foi a ideia de um fim que, de alguma forma, anularia tudo, mas as conclusões que tiraram da vida senciente e consciente. Uma existência eterna ou cíclica na qual a vida senciente e consciente surge e sofre várias e várias vezes não se torna, como que em um passe de mágica, dotada de sentido quando comparada com um universo finito que acaba na entropia máxima e eterna.

Do ponto de vista pessimista, ambos os universos se apresentam como lugares onde o sofrimento e a morte não importam no grande esquema das coisas. A existência em ambos os tipos de universo é sem sentido. A diferença está em um deles ser um eterno show de horrores com sofrimentos potenciais e efetivos, enquanto que o outro é um lugar onde a escuridão eterna eventualmente reinará. O irônico disso é que alguns físicos — e alguns leigos — acreditam que um universo cíclico é menos pior precisamente porque ele oferece um pouco de esperança na forma de continuidade. Eles não levam em conta o sofrimento, claro, porque eles seguem um programa que dita que a vida consciente é uma bênção inquestionável.

Escrevi sobre a Cosmologia Cíclica Conforme de Roger Penrose antes. Considerei brevemente as implicações que um universo eterno e cíclico teriam no pensamento pessimista. Naquele texto expressei a visão de que, do ponto de vista do pessimismo filosófico, um universo que tem um final definitivo e eterno é melhor do que um universo que nunca acaba, seja ele cíclico ou estático. Ainda argumento a favor dessa visão. Quanto menor a janela de tempo que permite a existência da senciência, melhor. Isso não faz com que tudo fique bem, claro, mas é menos pior. A morte sempre estará em todos os lugares, seja em um universo que nunca acaba ou em um universo que acaba uma só vez. Depois da entropia máxima ser alcançada, se não houver nenhuma chance de reciclagem, a morte do calor será um eterno cemitério cheio de partículas mortas movendo-se de forma caótica pelo espaço. A vantagem desse cenário é que o sofrimento não existirá mais. Haverá apenas uma recordação (que ninguém verá) daquilo que um dia foi.

Um aspecto dessa discussão que podemos notar são as implicações com relação à ética antinatalista. Alguns podem enxergar que o ato de não perpetuar a vida em um universo que morre uma vez e “fim de papo” como sendo um ato de maior impacto, enquanto que não reproduzir em um universo cíclico ou eterno pode ser visto como ato vazio e sem sentido, já que sempre haverá alguém se reproduzindo e perpetuando o sofrimento em algum ponto da eternidade. Mas filósofos antinatalistas contemporâneos não baseiam suas posições éticas no tipo de universo que nós possivelmente habitamos, mas sim em como agimos para perpetuar o sofrimento aqui, agora, e em um futuro que podemos enxergar.

Chega um momento que sim, nossas ações têm pouco impacto no grande esquema das coisas. Mas isso não deveria ser a base da ética. Se assim fosse, então poderíamos argumentar que assassinato tem pouco impacto no grande esquema das coisas, e que portanto não é nem errado nem certo. Nós podemos construir outro argumento similar contra o antinatalismo que usa o espaço, ao invés do tempo, para defender que é sempre fútil nos abstermos da reprodução. O argumento pode ser dito mais ou mais desta forma: sim, nós todos podemos acabar com o sofrimento da nossa espécie aqui na Terra, mas e quanto as (possíveis) vidas sencientes em outros planetas? Esqueça outros planetas, e quanto as diferentes formas de vida sencientes aqui no nosso planeta? Elas continuarão vivendo e, por causa disso, nossas ações terão pouco impacto no sofrimento total que existe. Notem que esses tipos de argumentos podem ser utilizados independentemente do tipo de universo que nós habitamos, cíclico ou finito.

É por isso que é importante frisar que o impacto total no universo de se seguir uma ética antinatalista não é o que faz alguém ser antinatalista em primeiro lugar — ou, pelo menos, não é a única razão pela qual alguém se torna antinatalista. Sim, nós podemos teorizar o número de potenciais descendentes nossos que sofreriam nos próximos dez mil anos caso tivéssemos uma ou duas crianças. Esse número pode fatorar na nossa escolha em nos abstermos da reprodução, é claro. Nós também podemos tentar calcular o quanto a nossa postura antinatalista individual contribuirá para a redução do sofrimento futuro. Mas ainda que façamos tudo isso, nós devemos ter em mente que essas pessoas, ao não existirem, terão pouco impacto em um planeta que contêm bilhões de espécies diferentes que matam umas as outras trilhões de vezes todos os dias para sobreviver. O impacto é ainda menor se considerarmos a possibilidade de vida em outros planetas, e menor ainda quando consideramos a possibilidade de um universo cíclico.

Precursores do pensamento antinatalista, pensadores como Schopenhauer, certamente concordariam que o impacto total na eternidade de nossa abstenção não deveria ser a base da ética. Para Schopenhauer, a compaixão é a base da ética. Isto é, o ato de nos enxergarmos nas outras criaturas dotadas de senciência é o que nos permite agir moralmente. De acordo com ele, todos nós somos animados por uma força universal que ele chama de Vontade. Essa Vontade metafísica é o que faz as galáxias girarem e células se dividirem. Ela também é o que faz animais matarem uns aos outros para sobreviver — ou para lucrar financeiramente ou emocionalmente, no caso exclusivo dos humanos. Já que humanos são dotados de razão, negar a Vontade que nos anima é uma pequena vitória perante o programa universal caótico e sem sentido da Vontade. Pode ser uma vitória pequena, mas é uma vitória mesmo assim.

Independentemente de como o nosso universo agirá no futuro longínquo, se ele vai ou não acabar de vez ou se reciclar, a senciência continuará a existir e sofrer um número inimaginável de vezes. Até mesmo se a senciência existir apenas no nosso planeta, até o dia em que o Sol destruir a Terra, nos próximos bilhões de anos, sofrimento e morte terão existido todos os dias por muitos milhões de anos. Possivelmente, o sofrimento em nosso planeta existe desde o surgimento dos primeiros animais dotados de sistemas nervosos — o que indica que eles provavelmente eram capazes de sentir dor — centenas de milhões de anos atrás, durante o período Cambriano.

Como cada um de nós age não deveria ser baseado no quão grande ou pequena será nossa contribuição. Do ponto de vista do universo, até Napoleão e Jesus não causaram um grande impacto, quanto mais nós. Não devemos pensar no futuro distante e na possibilidade de que o universo pode se reciclar para sempre, permitindo que a senciência surja de novo e de novo, eternamente. Não devemos nos preocupar com a vida depois da extinção da humanidade neste planeta. Devemos apenas negar o programa universal em nós mesmos e saber que salvamos ao menos uma pessoa deste inferno. Independentemente do que aconteça, ao não nos reproduzirmos, teremos essa certeza. Ao nos abstermos da procriação, nós teremos salvado uma pessoa do sofrimento e morte ao permitirmos que ela permaneça para sempre em um estado potencial irrealizado.


por Fernando Olszewski