Melhor ficar na potencialidade

Sou pessimista, no sentido filosófico do termo. Pense em Schopenhauer e Cioran, dois dos mais corrosivos filósofos contemporâneos, mas também no gnosticismo e no budismo — tanto Theravada quanto Mahayana. Concordo que a procriação seja um ato extremamente problemático. Melhor seria se todos nós deixássemos de nos reproduzir voluntariamente, abandonando este show de horrores que é a existência consciente e senciente. Há razões pelas quais escolho enfatizar isso nos meus textos, independente do assunto ser relacionado a questões existenciais ou políticas. Entendo que possa haver uma certa confusão, visto que pensadores pessimistas geralmente são vistos como apolíticos ou, pior, conservadores e até mesmo reacionários.

Pintura de Andrew Blucha

Por incrível que pareça, grande parte da minha guinada política à esquerda se deu justamente por conta da leitura de filósofos e escritores pessimistas, embora a guinada não tenha ocorrido somente por conta deles, claro. O que me marcou nessas filosofias foi a ênfase nos incontáveis sofrimentos dos seres vivos dotados de consciência e sensações, isto é, os animais, incluindo o homo sapiens. A ética antinatalista é diretamente ligada à questão do sofrimento físico e mental, além do problema existencial. Não enxergo esses problemas como coisas que devemos superar “heroicamente”, como um Nietzsche ou um Camus. Na realidade, enxergo-os como sinais de que nós nos demos muito mal ao nascermos. Mas, diferentemente dos outros animais, temos uma posição privilegiada na natureza. Somos capazes de negar a programação natural, coisa que o resto dos animais, que também são sencientes porém “irracionais”, não conseguem.

A ética da renúncia voluntária ao mundo é uma resposta ao sofrimento. Ao extrapolar isso para o coletivo, entramos no campo da política. Politicamente, então, defendo que nós humanos devemos organizar a pólis de tal forma que o sofrimento da nossa espécie seja minimizado. Se isso beira o utilitarismo negativo ou não, não importa, é o que dá para fazermos. É por isso que passei a defender a existência de um robusto Estado de bem-estar social que atenda os destituídos e promova um mínimo de conforto possível para todos. Isso é uma mudança radical de pensamento que levou anos para acontecer, e ela continua acontecendo. Durante um bom tempo, entre meus vinte até quase os trinta, segui o protocolo de muitos toscos de classe média e fui para a direita, embora tenha tendido à esquerda antes dos meus vinte.

Tendo deixado isso claro, é importante esclarecer algo. No final das contas, penso que, mesmo que realizemos nossos sonhos de libertação mais utópicos, isto é, mesmo que sejamos capazes de forjar uma sociedade mais fraterna e menos predatória, ainda haverá um pano de fundo nefasto por trás do fenômeno vida. Em especial, a vida dotada de sensações e consciência, a vida animal, continuará sendo uma luta constante para preencher vazios literais — fome; instintos de preservação e de procriação — e existenciais — tédio; falta de um sentido maior para a vida e seus sofrimentos. Isso quer dizer que, ainda que um dia nós alcancemos a utopia igualitária e fraterna, isso não alterará o pano de fundo nefasto por trás da consciência, por menos desenvolvida que ela seja. Da barata ao humano, fomos jogados aqui contra a nossa vontade para definharmos e atritarmos uns com os outros.

Continuaremos, assim como insetos, vivendo dentro de uma programação que nos machuca e para a qual somos descartáveis. A vida sofre e, para piorar, consome a si mesma trilhões de vezes por dia para sobreviver. Ainda que os objetivos dos chamados “transumanistas” se concretizem, ainda que possamos estender a vida humana indefinidamente através de tecnologias médicas ou até mesmo através da transferência de nossas mentes para computadores, nada disso mudará os aspectos da falta e do atrito. Sempre precisaremos consumir energia para sobreviver, o que equivale a continuar tendo fome, uma falta literal. Além disso, ainda continuaremos tendo faltas existenciais. Como diria Julio Cabrera: os atritos existenciais continuariam a nos assombrar ainda que fôssemos imortais.

Num determinado momento da obra Écartèlement, Cioran escreve que Plínio, o Velho, considerava os homens superiores aos deuses por poderem se suicidar, algo negado aos deuses imortais. Cioran usa isso como prova da inferioridade da teologia cristã diante da filosofia dos pagãos da antiguidade clássica. Segundo ele, invocar sabedoria nunca é invocar uma sabedoria cristã. O ponto a que quero chegar aqui é que, sim, a imortalidade absoluta pode ser encarada como um pesadelo do qual não é possível escapar. Essa é a imortalidade de Deus. Ao menos nenhum transumanista “sério” defende a imortalidade em termos absolutos; ainda dependeríamos de fontes de energia e ainda poderíamos morrer graças a acidentes e outras mazelas.

A vida nos estraçalha, nos corta em pedaços. Não há nada que possamos fazer para remediar isso. Atualmente, o mundo ocidental e suas periferias têm visto um crescimento espantoso do irracionalismo fundamentalista, do supremacismo racial branco — pelo menos do que se considera branco ou “mais europeu” em cada país, algo que varia — e de movimentos políticos neofascistas. Ou seja, a tendência é ficarmos ainda mais distantes de alcançar qualquer sociedade minimamente fraterna. Realisticamente, a luta, se quiser ser bem sucedida, deve durar gerações. Acontece que não é correto criar novos seres para sofrerem, independente das circunstâncias.

Certos aspectos não mudariam ainda que nascêssemos numa utopia. Agora, é ainda mais errado criar novos seres sencientes e dotados de consciência na esperança de que eles tomem o nosso partido e lutem as nossas lutas. Não é uma questão de resignação. Lutemos agora, hoje, com todas as nossas forças. Mas não vale a pena trazermos novos seres ao mundo para realizar uma tarefa que, no final, não nos libertará da nossa condição de seres sofredores, presos dentro de um corpo material de carne, com os dias contados.

Se, no melhor cenário dentro deste universo dominado pela entropia e decadência, a vida humana é como um campo de trabalhos forçados no qual vários são mortos todos os dias indiscriminadamente, o que dizer dos cenários menos favoráveis? O que dizer da vida humana num território dominado por fanáticos religiosos, desigualdade escandalosa, pobreza abjeta e criminosos brutais? Nem mesmo os poucos lugares decentes do mundo justificam essa empreitada, quanto mais a grande maioria dos lugares indecentes. Para nós que já estamos aqui, vale a pena buscarmos o melhor, mesmo que já vivêssemos numa Finlândia. Para os que habitam a tranquilidade do inexistente, os que existem somente em potencialidade, não vale a pena existir, ainda que fôssemos imortais como os deuses.


por Fernando Olszewski