Os novos helenísticos; ou a vida na próxima ditadura

Há alguns meses, escrevi que me concentraria na arte de viver e morrer tal qual os filósofos helenísticos, do período alexandrino à antiguidade tardia, pois não havia nada que pudesse fazer para impedir a locomoção da coletividade que me cerca em direção ao abismo. Tem sido difícil me abster, embora a abstenção total não fosse minha meta. Mas, recentemente, conversando com um amigo acadêmico que é engajado e trabalha com Schopenhauer, concordei com algo que ele me disse. Ele me falou que, embora não gostasse muito da postura de apatia política de Schopenhauer quando começou a estudá-lo, anos atrás, com o passar do tempo foi entendendo a postura do grande pessimista.
Daniel na cova dos leões, de Peter Paul Rubens
Prever o que vai acontecer, dependendo das variáveis, pode ser fácil ou difícil. Vou me arriscar a fazer uma previsão. O futuro próximo do meu país encontra-se entre duas possibilidades. Na melhor delas, continuaremos um país medíocre, tutelado por aqueles que têm o monopólio legal das armas e são discípulos de astrólogos charlatões que se dizem filósofos. Na pior possibilidade, teremos guerra civil e viraremos uma grande Síria. O que quer que venha a ocorrer, ocorrerá dentro desses dois parâmetros. Podemos ter o primeiro cenário, o segundo, ou podemos ter uma combinação com maior e menor grau de um deles. Mas, salvo uma ocorrência extraordinária, não haverá nada melhor, nem pior.

Platão foi aluno de Sócrates. Aristóteles foi aluno de Platão. Por sua vez, Aristóteles foi tutor de Alexandre, o Grande. Apesar da influência de Sócrates, Platão e Aristóteles ter continuado em diversas áreas do conhecimento antigo, politicamente, os três foram pensadores da pólis. As cidades-estado gregas eram ligadas culturalmente e linguisticamente umas com as outras, mas eram independentes e autônomas, a não ser em períodos em que guerreavam e uma dominava outra. Isso, contudo, não durou. E, à medida em que elas foram perdendo poder e sendo suplantadas por um novo tipo de organização política — o império macedônio —, a influência de escolas filosóficas rivais aos platônicos e peripatéticos aumentou. As mais conhecidas foram, sem dúvida, o estoicismo e o epicurismo.

O filósofo Emil Cioran se referiu aos estoicos e epicuristas como “pensadores crepusculares”, pois essas escolas floresceram em épocas de decadência. A influência delas cresceu durante a formação do império de Alexandre, que simbolizou o fim das cidades-estado, e continuou após a fragmentação do império. Ela só diminuiu séculos depois, com a decadência do império romano e o aumento da influência cristã, tanto dentro do império quanto nas suas fronteiras. Embora a Macedônia não fosse exatamente a Grécia, e embora os romanos não fossem gregos, praticamente todo o período entre o fim das cidades-estado gregas até a decadência romana pode ser chamado de “helenístico” devido à gigantesca influência da cultura, ciência e filosofia grega.

Um dos motivos que se dá para a enorme influência de escolas como a estoica e a epicurista durante esse período é exatamente o fim da cidade-estado, evento que simbolizou o fim da política participativa. O caso mais emblemático foi Atenas. Na pólis ateniense, os cidadãos — uma minoria, composta por homens livres, filhos de pais e mães atenienses — participavam das deliberações sobre o destino da coletividade. Subjugados a diferentes impérios, aquelas pessoas perderam o controle sobre seu destino político, mas ganharam a liberdade de viverem como bem entendiam, desde que pagassem seus tributos e não buscassem deliberar sobre política, o que significaria busca por independência.

O maior exemplo de todos os tempos de como esse tipo de coisa funcionava ocorreu na província romana da Judeia, por volta do ano 30 da nossa era. Lá, Jesus foi preso pelos guardas do sumo sacerdote do templo e julgado por apostasia, mas só os romanos tinham “poder da espada” para executá-lo de forma legal. É por isso que os sacerdotes o levaram para Pilatos, a autoridade romana da província, acusando-o de promover revolta contra o imperador. Mas há outra história, uma anedota na verdade, que mostra de forma mais clara a ligação entre império e filosofia como arte de viver e morrer.

A anedota é sobre Diógenes de Sinope, um dos fundadores da escola cínica, que vivia jogado nas ruas de Atenas como um cão (a própria palavra “cínico”, em grego, significa “como um cão”). Reza a lenda que, certo dia, Alexandre, o Grande, visitou Diógenes na cidade de Corinto, enquanto este tomava sol, jogado no meio da rua. Alexandre teria perguntado se havia algo que ele poderia fazer pelo famoso filósofo, ao que Diógenes teria respondido: “Sim! Saia da frente da luz do sol.” Enquanto os soldados de Alexandre riam, o imperador teria dito que aquele era o homem mais inteligente da Grécia, e que se não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes.

Eis aqui a grande lição do império: seja livre individualmente, faça o que bem entender da sua vida, só não busque autonomia política e independência. É uma interpretação um tanto quanto sombria da coisa, mas é válida. O cinismo não prosperou tanto quanto o estoicismo e o epicurismo, mas, ainda assim, os valores políticos que tais filosofias pregavam eram menos afrontosos ao modelo imperial do que filosofias que pudessem ser usadas para justificar a independência política das cidades. Os estoicos, diferentemente de Platão e Aristóteles, abraçavam a ideia cosmopolita de que o homem é um cidadão do mundo, não apenas da cidade. Além disso, são famosos por buscarem uma aceitação aos desígnios do destino, adaptando-se às circunstâncias. Estoicos buscavam a apatheia, um estado de graça onde o homem se torna indiferente às paixões, causa de desequilíbrios e dores.

Os epicuristas também se adaptaram bem aos impérios. Se não podemos mudar o destino, se não há nada de realmente efetivo que possamos fazer, o melhor, dentro dessa ótica, é viver a melhor vida que pudermos, com nossos amigos e pequenos prazeres, sem buscar confronto com ninguém. Claro, esse tipo de filosofia de vida só prospera quando não há um grau de fanatismo histriônico cercando as mentes da maioria das pessoas e dos poderosos. O estoicismo, mesmo com toda a sua difusão, foi esmagado e incorporado pelos cristãos — que depois proibiram violentamente sua prática, assim como a prática de qualquer outro tipo de mentalidade que não fosse a cristã.

Uma nova ditadura militar, intimamente ligada às igrejas evangélicas, num país sul-americano problemático, não é comparável a um império. A minha única expectativa é de que, na ditadura que se aproxima, exista ao menos um mínimo de autonomia para que indivíduos possam “morrer de fome à sua maneira”, parafraseando Cioran. Entretanto, do jeito que setores reacionários da sociedade que me cerca estão assanhados, é bem capaz que o crepúsculo da atual república seja mais parecido com o advento da ortodoxia cristã por volta do século III e IV.

Talvez, o admirável lixo novo que se aproxima nem sequer permita o livre pensamento e prática de algo tão inofensivo quanto o estoicismo ou o epicurismo, muito menos o pessimismo filosófico de alguém como Schopenhauer. Afinal, a negação da Vontade de vida carrega dentro de si uma rejeição à ideia de que a perpetuação da vida através da reprodução vale a pena, e isso é algo que cristãos modernos jamais aceitarão, principalmente os protestantes. Aos seus olhos, a reprodução é um imperativo universal. Até mesmo seus inimigos mortais devem se reproduzir. Sim, eles maltratarão as crianças depois de nascidas, como brasileiros costumam fazer com crianças negras, pobres, faveladas ou em situação de rua — mas ao menos eles terão sido contra o aborto e outros meios contraceptivos, o que nas suas cabeças os tornam santos.

Mas nada nos impede de sonharmos com uma possível brecha na qual possamos, ainda que de forma discreta, acreditarmos no que bem entendemos, inclusive sermos apáticos e extremamente negativos quanto ao andar da carruagem coletiva. Uma coisa me parece certa: qualquer um que tenha uma certa idade e um determinado tipo de pensamento se beneficiará psicologicamente do desapego nos próximos meses e anos — e de novo: salvo um acontecimento extraordinário. Torço para que ele aconteça, mas não conto com isso.


por Fernando Olszewski