Eu quero me libertar (desta carne e consciência criadas por outros)

Antes de entrar no real tema deste ensaio, preciso deixar claro que ele não é sobre a noção de livre arbítrio. Você pode se perguntar o que penso sobre livre arbítrio. Penso que é uma quimera sem sentido e tendo a abraçar o que hoje chamam de superdeterminismo. Sobre o que é superdeterminismo e como ele se relaciona com o teorema de Bell, assista o vídeo (em inglês) intitulado O Superdeterminismo salva a Mecânica Quântica? Ou ele mata o livre arbítrio e destrói a ciência? de Sabine Hossenfelder, física teórica alemã que foi professora no Instituto Nórdico de Física Teórica e pesquisadora associada do Instituto de Estudos Avançados de Frankfurt. Nesse vídeo, Hossenfelder explica em termos acessíveis como o superdeterminismo nos ajuda a compreender mecânica quântica. E, embora o superdeterminismo ajude a destruir as noções mais vulgares de livre arbítrio, ele não destrói a ciência — os que se opõem à ideia dizem que sim, porque o superdeterminismo supostamente acaba com a liberdade do experimentador, algo que Hossenfelder disputa ser besteira, já que, para entenderem o mundo, cientistas precisam construir teorias e testá-las de qualquer forma, livre arbítrio sendo uma quimera ou não. Afinal, entre Newton e o advento da mecânica quântica moderna, a maioria dos físicos trabalhou com a suposição de que o universo físico era determinístico, e isso não impediu a realização de investigações.

Também vale a pena assistir um vídeo mais antigo de Hossenfelder — intitulado Você não tem livre arbítrio, mas não se preocupe — no qual ela fala sobre como cientistas e filósofos da ciência contemporâneos tendem a abraçar a ideia de que um universo determinístico não permite o livre arbítrio enquanto que um universo não-determinístico permite. Para Hossenfelder, isso é absurdo, já que o livre arbítrio não faz sentido independentemente do universo ser determinístico ou não. Não é preciso falar sobre por que isso não faz sentido em um universo determinístico. Porém, vamos partir do princípio que a mecânica quântica seja realmente não-determinística, algo que a maioria aceita por conta do teorema de Bell: nesse caso, também não haveria espaço para livre arbítrio porque a aleatoriedade não acomoda um momento no qual uma decisão puramente livre é feita por um agente completamente livre que existe fora do mundo das probabilidades. Nesse caso, o agente e suas decisões são randômicas e probabilísticas — não há um fantasma tomando decisões fora do reino da aleatoriedade. O teorema de Bell prova que a mecânica quântica é incompatível com a maioria das interpretações de variáveis escondidas da mecânica quântica, não todas — de fato, foi o próprio Bell que afirmou que, se o universo fosse absolutamente determinístico desde o princípio, então sim, suas desigualdades não se sustentariam.

Buda dourado do templo Wat Phra Si Rattana Mahathat (estilizado)

Tendo dito isso, entremos no tema verdadeiro do ensaio: o desejo humano por liberdade e realização — especialmente no campo pessoal, social e político — e como algumas causas, embora justas, não podem nos impedir de entender que deve haver um limite para nossas esperanças. Apesar de ter aderido a posições políticas que abraçam a ideia de que a humanidade deveria ser livre da dominação por poderes políticos autoritários e interesses econômicos (já que não adianta sermos livres de governos autoritários apenas para sermos escravizados pelos donos dos meios de produção, i.e. a classe capitalista) eu também não tenho boas notícias nesse fronte. Nós podemos e devemos lutar por mudança. O mundo humano muito provavelmente poderia ser melhor do que a distopia triste que temos hoje. Infelizmente, porém, o futuro não nos satisfará — o que não significa que não devamos tentar, apenas que nossas expectativas precisam ser drasticamente ajustadas se nós queremos mesmo sobreviver e nos perpetuar em um planeta que morrerá nos próximos bilhões de anos, e em um universo que atingirá a entropia máxima no futuro profundo. Pode parecer besteira pensar nesses termos, mas não é. Caso os nossos ancestrais no período neolítico tivessem pensado à frente — se eles tivessem entendido ou se importado com os níveis de dor e miséria que atingiriam a nossa espécie nos milhares de anos seguintes — eles deveriam ter se abstido da reprodução. Parto do princípio que eles não tiveram tal capacidade. Mas, se tiveram, agiram de forma completamente imprudente. Não pensar no futuro distante e não se importar com aquilo que pode acontecer no futuro distante nos trouxe até aqui.

Além de imposições normativas e culturais perniciosas que podemos e devemos mudar, há um infeliz fato bruto: nós nunca seremos livres para “sermos nós mesmos” porque estamos presos em corpos feitos de carne, osso e sangue, e nós nunca fomos consultados antes de sermos colocados dentro deles. O que quero dizer com sermos trancafiados em corpos de carne? Isso é apenas linguagem poética. A realidade é que nós não existíamos antes de sermos gerados biologicamente por pais que queriam prazer ou perpetuação ou ambos. Alguns de nós sentem que nasceram em corpos com os quais eles ou elas não se identificam, por exemplo, e socialmente podem ser capazes de mudar isso — algo que apoio totalmente. Mas alguns aspectos de nossa criação estarão sempre conosco. Imagine, por exemplo, alguém nascido com uma deformidade ou incapacidade terrível que nossa ciência pode corrigir apenas parcialmente. Essa consciência está para sempre casada com tal condição. O mesmo ocorre com aqueles de nós que desenvolvemos cânceres mortais. Embora tentemos viver saudavelmente, muitos de nós terão câncer. Não importa se no final sobrevivamos, já que o processo de vencer a doença é doloroso, e a consciência da vítima terá de percorrer o percurso junto com sua roupagem de carne, sem a possibilidade de se separar completamente. Depois que nascemos, temos que seguir em frente com nossos corpos e consciências designadas, não importa o que ocorra, porque nós somos nossos corpos e consciências. Podemos mudar algumas coisas aqui e ali, mas continuamos sendo este corpo e esta consciência, separados de tudo e todos.

Humanos podem fazer algo sobre muitos tipos diferentes de insatisfação, sejam elas pessoais, sociais ou políticas. Mas quando estamos insatisfeitos de termos doenças incuráveis, não podemos fazer nada além de termos esperança de que uma nova e maravilhosa tecnologia surja. E se você está insatisfeito com a existência em si, é melhor você mudar seu pessimismo porque a existência não irá à lugar algum — e matar-se não mudará isso, já que o ato não apagará sua dor do livro da existência. Voltando à questão do livro arbítrio: mesmo se o conceito clássico e grotescamente ingênuo de livre arbítrio estiver certo, ainda assim nós não seríamos verdadeiramente livres porque nós já nascemos neste nosso corpo (que podemos mudar um pouco) e nesta época da história (algo impossível de ser alterado). Além disso, nós não nascemos pássaros, capazes de experimentar a alegria do voo, nem nascemos como outra coisa, ou como outra pessoa. Quando paramos para pensar no nosso dilema, percebemos que há pouco espaço para nós agirmos, ao contrário do que dizem os otimistas. De novo, nós não deveríamos nos desesperar por completo. Sim, há causas pelas quais vale a pena lutar aqui e agora. Contudo, nossas libertações pessoais, sociais e políticas do passado e do futuro são apenas suspiros de alívio quando levamos em conta a luta invencível contra a opressão da existência. Essa opressão total não pode ser mitigada, nem mesmo por mentes futuras.

É válido perguntar, então: por que não encerramos logo o ciclo nos abstendo da criação de novas consciências humanas que irão experimentar a opressão da existência? Pela perspectiva antinatalista, essa é certamente a rota preferível. Mesmo que tivéssemos a certeza de que o presente sistema econômico global fosse ser superado em, digamos, 100 anos, seria antiético criarmos novos seres sencientes e conscientes para participarem da luta de classes. A própria noção de criar outros seres humanos para que eles lutem as nossas guerras é obscena, independentemente do quão justas nós acreditemos que sejam as nossas causas. Além do mais, há a possibilidade — o fato, aliás — de que, no dia em que a nossa “justa causa” for vencida pelos nossos tetranetos, a maioria deles será como a maioria de nós é hoje, alheio aos horrores da existência, o que fará com que continuem se reproduzindo, sem entender os tipos de inferno aos quais estarão condenando as gerações futuras. Portanto, do ponto de vista ético, a escolha é clara — todavia, essa é uma escolha que não é feita por agentes possuidores do livre arbítrio, algo que não vazio de ironia, devo observar. O tipo de liberdade que nós eventualmente vamos querer é uma que nunca será satisfeita, porque a realidade é algo que constantemente tira lascas do nosso ser. Mesmo que fôssemos imortais, esse atrito1, 2, produzido pelo simples fato de existirmos, continuaria tirando lascas do nosso ser — a única diferença é que nós não teríamos a morte como consolo.

Não há escapatória. Uma vez criados, uma vez desenvolvidos no útero, o dano está feito. Tudo o que fazemos é buscar algo a mais enquanto saciamos nossas necessidades biológicas. Esse “algo a mais” pode certamente valer o nosso esforço, claro. Para saber disso, basta olhar a história humana. O fim da escravidão, o sufrágio universal, a declaração dos direitos humanos — todas essas coisas e mais foram causas pelas quais valeu a pena lutar e morrer. Porém, ainda que essas coisas tenham beneficiado as gerações futuras, algo que todos nós devemos ser gratos, nunca houve uma necessidade real para que as gerações futuras existissem. Nós estamos aqui apenas para satisfazermos a vontade de nossos ancestrais que queriam descendentes. E agora que nós — os descendentes — fomos criados, temos que participar na tênue manutenção das coisas boas que (alguns) dos nossos ancestrais construíram, coisas como a democracia representativa. Caso não participemos na manutenção dessas coisas boas, elas serão rapidamente corroídas nas mãos dos idiotas, dos preconceituosos e de seus líderes reacionários. Uma vez conquistadas, as coisas boas precisam de constante atenção. Mas, ainda que tomemos conta, elas sempre correm risco. Há uma única maneira de evitar isso. Hari Singh Gour, um jurista e reformador social indiano do século XIX, escreveu o seguinte no seu livro O Espírito do Budismo (tradução minha):
O Buda declarou suas proposições no estilo pedante de sua era. Ele as joga na forma de Sorites; mas, como tais, elas são logicamente imperfeitas, e tudo o que ele deseja comunicar é o seguinte: “Alheios ao sofrimento ao qual a vida é submetida, o homem gera crianças e, portanto, a causa da velhice e da morte. Se ele apenas entendesse o sofrimento que adicionaria por seu ato, ele desistiria da procriação de crianças; e então encerraria a operação da velhice e da morte.”3
O Sutra do Lótus4 contém uma parábola em que o Buda compara nossa existência no Samsara como uma casa em chamas. Nós somos como crianças pequenas brincando dentro da casa, que não percebem o perigo e relutam a sair. Nosso pai, então, precisa nos convencer a sair prometendo nos dar três tipos de carrinhos diferentes. Na parábola, o pai é o Buda, e os carrinhos representam os três veículos do budismo: o veículo do praticante que é libertado seguindo um Buda; o veículo do praticante solitário que liberta a si mesmo, tornando-se um Buda, mas não ensina os outros; e o veículo mais nobre, o do praticante que acumula tanto mérito ao longo de suas vidas que ele se torna um Buda e liberta a si e a outros. Mas deixemos de lado a crença na reencarnação e diferentes maneiras de atingir o nirvana no budismo Mahayana. Voltemos à forma sucinta com que Hari Sing Gour colocou em O Espírito do Budismo. A procriação é o combustível deste fogo metafórico de miséria e sofrimento intermináveis — não uma roda metafísica de metempsicose que existe fora de nosso alcance. Ao criarmos novos seres conscientes, nós estamos jogando mais e mais combustível na fogueira da dor. Devemos parar.

por Fernando Olszewski


Referências:
¹ See: CABRERA, J. Vicissitudes of the Operation of “Giving Oneself Value”: Between Excess and Disapointment. In: ______. Discomfort and Moral Impediment: The Human Situation, Radical Bioethics and Procreation. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2019. p. 36-39.
² See: CABRERA, J. Demasiado tarde para sermos imortais. In: ______. Mal-estar e moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018. p. 103.
³ GOUR, H. S.Spirit of Buddhism. Calcutta: Lal Chand & Sons, 1929.
LOTUS SUTRA. Translation by Gene Reeves. Somerville: Wisdom Publications, 2008.