Ensaio para a posteridade (sobre o Brasil)

Estava olhando postagens minhas dos últimos doze meses nas redes sociais e percebi algo triste: elas continuam servindo para descrever a minha pátria tão perfeitamente quanto... sempre. Postagens como essas muitas vezes inspiraram textos meus ou foram reflexos de textos que eu já havia escrito. Resolvi, então, utilizar algumas delas para escrever um novo ensaio, com o objetivo de, mais uma vez, deixar registrado meus pensamentos sobre a nossa história e sobre o que está se passando conosco. A primeira postagem é a seguinte:
Quando digo que o Brasil acabou, que morreu, não é tipo: “o rei morreu, viva o rei!”. Também não é: “esse país acabou, vamos construir outro melhor.” Não tem esperança alguma. É acabou, morreu. Ponto final. “Mas ainda tem gente vivendo aqui.” Sim. Cadáveres também abrigam vida.
É verdade. Triste escrever isso, mas estarei mentindo se disser que acredito que algo irá mudar substancialmente no futuro próximo, no médio prazo ou até mesmo no longo. Não vai. Em outubro deste ano elegeremos Lula, de preferência logo no primeiro turno, para que se acabe com toda a dúvida, para que mostremos a todos que ninguém aguenta mais o pesadelo que estamos vivendo e, também, para mostrar que a maioria de nós lembra que o país era outro há quinze anos atrás — era um país imperfeito, problemático e cheio de mazelas, sim, mas não era tão distópico, exceto para aqueles membros desgraçados de nossa classe média e rica que se horrorizavam ao ver pobres e pretos consumindo, andando de avião, entre outras coisas.

Mapa das capitanias hereditárias, de Luis Teixeira, 1574

Ainda que o próximo governo consiga fazer o Brasil retornar ao antigo patamar de quinze anos atrás, ainda que consiga fazer mais do que isso, ficará escancarada para sempre a realidade de que vivemos tutelados e ameaçados por forças militares e econômicas que simpatizam com o nazi-fascismo olavista. Também ficará escancarada para sempre a realidade de que parte significativa da população apoia o pior tipo de reacionarismo existente. Precisamos nos lembrar de que muitos milhões dos votos que Lula receberá em 2022 foram dados a Bolsonaro em 2018. Afinal, em 2018, Lula liderava as pesquisas até mesmo depois de ter sido preso, o que significa que ao menos dez ou vinte milhões de eleitores que votaram em Bolsonaro também estavam dispostos — ou até mais dispostos — a votar no Lula.

Isso também significa que parte do eleitorado do Lula vota nele por gostar dele, e não por gostarem do PT ou por se identificarem com “progressismo”, “esquerdismo” ou qualquer outra coisa do tipo. Essas pessoas, somadas à minoria que repetirá o voto em Bolsonaro — ou votará no Moro —, não vão simplesmente evaporar. Elas representam um Brasil que não tem medo de se declarar ultraconservador, hipócrita e violento. Nesse grupo, que não é pequeno, vemos do evangélico pardo que espanca gays mas faz sexo no sigilo com travestis, até figuras de peso do empresariado branco urbano e rural.

Lula voltará, e com o meu voto. Mas o cano da arma sempre estará apontado para a cabeça dos brasileiros que gostariam que o país fosse só um pouco menos merda, atrasado e idiota. Isso não irá mudar. A qualquer momento, dezenas de milhões de brasileiros que não se importariam de revogar a lei áurea podem apertar o gatilho. Basta eles se sentirem desconfortáveis com pobres tendo um mínimo de dignidade.

A segunda postagem é esta:
Guedes é o maior exemplo de uma pessoa que homens razoavelmente bem sucedidos, mas que não leem nada, acreditam ser “brilhante”. São tipos como Guedes e Salim Mattar que vendem ideias idiotas como se fossem caminho das pedras para homens mais ou menos bem sucedidos que não leem nada.
Figuras como Paulo Guedes e Salim Mattar foram quem ajudaram a vender a imagem de um governo nazi-técnico para uma imprensa e opinião pública emburrecidas com a ideia de que todas — ou as principais — mazelas do Brasil existiam devido à presença do Estado. Quando Salim Mattar saiu do cargo governamental que ocupava, que tinha a ver com diminuir o tamanho do Estado, ouvi de liberais que a sua saída era mais uma amostra da perda de credibilidade do governo Bolsonaro.

Mattar teria dito que o liberalismo de Bolsonaro era uma farsa. Acontece que, desde que saiu, Mattar fez inúmeras declarações e postagens em redes sociais defendendo o governo Bolsonaro. Nos últimos meses, chegou a dizer que Bolsonaro deveria ter o direito de tirar à força ministros do Supremo Tribunal Federal que estariam “atrapalhando” seu governo conservador. Enfim, é uma figura desprezível politicamente e, para quem acompanha seus negócios no setor privado, empresarialmente.

Sobre Guedes, acho que não é necessário falar mais nada. Tu, leitor, caso botes fé em um átomo deste ser humano, tem mais é que te ferrares mesmo — és um idiota.

A terceira postagem:
Três palavras que definem o presente etos. Rastaquera: (adjetivo) Ignorante; rude. Que ostenta riquezas, exibindo-a por meio de gastos exagerados. (substantivo) Pessoa que gosta de chamar atenção por seus gastos. Frotismo: (substantivo) Amalgama tosco de ideias derivadas do general Sylvio Frota, que tentou dar um golpe em Ernesto Geisel por considerá-lo esquerdista, pois Geisel iniciou o processo de abertura política da ditadura. Penabotismo: (substantivo) Amalgama tosco de ideias derivadas do pensamento do almirante Pena Boto, que presidiu a ‘Cruzada Brasileira Anticomunista’ nas décadas de 1950 e 60.
Bastante autoexplicativa, a postagem traz uma definição jocosa, porém correta, de três termos que ajudam a definir nossa política e sociedade contemporânea, embora um dos termos tenha mais de um século — rastaquera. Não vou perder tempo explicando a etimologia, mas recentemente a expressão “elite rastaquera” tornou-se comum para designar os ricos brasileiros, eleitores e defensores de Bolsonaro, Guedes, Moro e outros. São ignorantes endinheirados, seja por herança, o que acontece na maior parte dos casos, seja por realização pessoal, algo que é bastante raro. São famosos por serem desbocados e não entenderem bosta nenhuma de cultura — embora adorem se dizer europeus e herdeiros de uma cultura superior (que desconhecem). Já escrevi sobre em vários textos meus.

De alguns anos para cá, esses ricos idiotas passaram a se sentir um pouco mal com a sua óbvia falta de leitura e conhecimento — falo aqui de conhecimento humano, civilizatório, não conhecimento para fazer trambicagens financeiras e empresariais, nem de conhecimento técnico, como no caso de médicos, advogados e engenheiros que tiveram a sorte de serem extremamente bem sucedidos. Essa falta os fez abraçar charlatões como o agora falecido Olavo de Carvalho. Quando se tem um vazio no lugar em que deveria existir uma mente humana, é fácil se tornar membro de seitas lideradas por pseudointelectuais que não entendem porcaria nenhuma do que estão falando, mas escrevem de tal forma que passam essa impressão.

Sylvio Frota foi um general abertamente fascista e golpista durante a ditadura militar. O hoje infame Augusto Heleno trabalhou para ele durante essa época e tem grande apreço por suas ideias. Frota era contrário a abertura política promovida pelos últimos presidentes-generais e tentou, em algumas ocasiões, promover um golpe dentro da estrutura das forças armadas, para que o regime continuasse firme, forte, opressor e assassino. Pena Boto foi um almirante que, já na década de 1950, esteve à frente de um movimento ultra-reacionário chamado “Cruzada Brasileira Anticomunista”. Os panfletos deste movimento de idiotas contêm tantos estereótipos fascistas sobre qualquer causa política que se mostre preocupada com direitos trabalhistas que eles mal disfarçam que beberam de fontes antissemitas e nazistas.

Ou seja: desde as primeiras décadas da Guerra Fria — aliás, até mesmo décadas antes — o Brasil foi palco de um gigantesco e interminável Red Scare. Nos Estados Unidos, o termo é usado para designar mais de um período ao longo do século XX, em que a população americana, instigada por líderes políticos, empresariais e religiosos, se apavorou com uma suposta tomada de poder pelos comunistas e resolveu ajudar na repressão a qualquer movimento trabalhador. O medo do comunismo, contudo, nunca foi monopólio dos americanos. Ao longo de todo o século XX, o Brasil foi palco de um “medo vermelho” extremo, algo que continuou e se exacerbou no século XXI. Esse é o fruto de séculos de formação violenta, sádica, baseada no mando de senhores brutais e tiranias particulares. O Brasil, longe de ser um país receptivo a ideias socialistas e comunistas, sempre foi uma nação brutalmente conservadora e reacionária, pronta para eliminar violentamente quem ousasse questionar as hierarquias vigentes, ainda que timidamente.

A quarta postagem:
Nenhum lugar do mundo se tornou próspero dando poder aos caipiras, aos truculentos, aos boçais, aos toscos e pessoas que acham que sofisticação é “coisa de viado”. Nenhum.
Essa postagem se relaciona com a questão da cultura. Toda cultura que não fosse massificada e tosca sempre foi vista como “coisa de gente fresca” no Brasil, principalmente pelos senhores, pelos líderes locais, pelos ricos, pelos poderosos. Fomos o último país das Américas a ter uma universidade, graças à proibição imposta pela coroa portuguesa, que só terminou muito depois da vinda da família real ao Rio de Janeiro. Não é a toa, portanto, que a cultura e a ideia de uma educação humana é vista com tanto desdém por essas terras. Isso faz parte da nossa formação como nação. Nossas elites são toscas do jeito que são não por acidente, mas por design forjado ao longo de séculos.

E, como os mais pobres em grande parte reproduzem a boçalidade da elite que os comanda, eles também acabam agindo toscamente. Mesmo a hoje tão adorada alta cultura — adorada, mas pouco consumida, já que a elite rastaquera não entende patavinas de alta cultura e arte — era vista dessa maneira. A verdade é que ela ainda é, por mais que olavistas digam gostar dela, como é o caso do Mario Frias, secretário de cultura do governo Bolsonaro. Experimente tentar conversar com um metido a coach financeiro sobre Fra Angelico, Botticelli ou Bouguereau. Se ele já tiver consumido a droga de escolha dos operadores de bolsa (cocaína) naquele dia, é bem capaz dele dizer na sua cara que entender de arte é inútil, além de ser “coisa de viado”. Estamos lidando com seres idiotas, sem cultura, desgraçados.

A quinta postagem:
Esse reflexo brasileiro de achar que tudo é corrupção, dinheiro ou ambição por algum cargo mais importante... Aras faz o que Bolsonaro quer por ideologia — se vier cargo no STF, ótimo, se não vier, tudo bem. Queiroga faz o que Bolsonaro quer por ideologia também. Servem a uma causa. Guedes também. “Mas qual causa?” A causa de manter o país como sendo um grande fazendão. A causa de manter a maioria da população pobre e subserviente. O que eles não querem é que as hierarquias sejam abolidas ou sequer amenizadas.
Durante muitos meses, antes da indicação do terrivelmente evangélico André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, boa parte da imprensa acreditava que Bolsonaro ainda estava indeciso entre ele e Augusto Aras. Sendo assim, a imprensa noticiava a subserviência do procurador geral da república ao presidente como uma mera tentativa de se destacar. Depois que Bolsonaro confirmasse a preferência por Mendonça, Aras não seria tão subserviente, segundo os analistas. Isso, contudo, não aconteceu. Aras continuou subserviente. “Mas como?!?”, se perguntaram tantos espertalhões que ganham muito bem para falar o óbvio — e, às vezes, nem isso acertam.

A resposta é uma só: ideologia. O último dos muitos ministros da saúde, Marcelo Queiroga, também é subserviente ao presidente por ideologia. Guedes, também. A qual ideologia me refiro? A que visa manter o mundo rigidamente hierarquizado entre uma minoria detentora de poder econômico — e, portanto, político, já que nunca existiu uma separação real entre mundo privado econômico e político estatal, como fantasiam os liberais, libertários de direita, etc — e a maioria que é obrigada a vender seu trabalho para conseguir sobreviver, inclusive os poucos que ganham altos salários.

No caso específico do Brasil, essa ideologia tenta a todo custo nos manter eternamente como provedores de coisas primárias — produtos agrícolas e commodities. Chegamos a ter o maior parque industrial do hemisfério sul entre as décadas de 1970 e 80. Mas, desde o começo dos anos 80, essa tendência se reverteu sem nunca termos completado um ciclo robusto de industrialização. Pense na Coreia do Sul, com suas marcas que exportam produtos de alto valor agregado mundo afora: nós nunca tivemos isso. E não foi por falta de liberalismo: Samsung e outras marcas de peso coreanas só são o que são hoje porque, no começo, o governo sul-coreano protegeu sua indústria de competição estrangeira, coisa da qual abrimos mão sem investir pesadamente e, mais importante ainda, inteligentemente.

É por essa razão que o Brasil tenderá a ser sempre um fazendão que só pode oferecer à economia global aquilo que a Terra nos dá, acrescentando pouco ou nada em termos de valor agregado, em termos de tecnologia. Há honrosas exceções, claro, mas elas nem de longe são capazes acabar com o problema de que somos uma economia primária, muito mais dependente do resto do mundo do que o contrário, para desespero do agronegócio que precisa vender a imagem de que somos uma espécie de celeiro do mundo. O dólar afeta até as coisas que mais exportamos: minério, petróleo e grãos. Isto quer dizer que, como bem diz Ciro Gomes, nós brasileiros “comemos dólar”. Já os sul-coreanos não comem dólar, porque sua economia não depende imensamente dos ânimos voláteis do mercado financeiro internacional e de moedas.

Por fim, a sexta postagem:
O pessoal “votei no Guedes” é ainda mais patético. Sabe por quê? Ao menos o cara que vota no Bolsonaro pelo Bolsonaro tem alguma paixão dentro de si, ainda que seja uma paixão burra e nazista. Mas o cara que “votou no Guedes” se acha acima da política, se acha um tecnocrata. Mas é só um otário.
Autoexplicativa.