O tapa

O que deveria ser um evento irrelevante entre duas celebridades norte-americanas multimilionárias se tornou, no Brasil, uma espécie de divisor de águas. Concordo com Ricky Gervais quando ele diz que não liga para celebridades. Não ligo mesmo. O que me tira do sério não é o evento ou as pessoas nele envolvidas, mas a reação dos meus compatriotas.

Jovem decandente, de Ramon Casas

No Twitter, vi pessoas escrevendo coisas como: “só bolsonarista reprova o tapa”, “quem é contra o tapa é branco”, além de ver alguns fazerem análises absurdas, como: caso Bolsonaro tivesse tomado um tapa no Superpop em 2010, não estaríamos vivendo este pesadelo que é o seu governo. Sinceramente, queria conseguir alucinar dessa forma. Apesar de absurdas, algumas dessas postagens receberam centenas de milhares de likes — sim, centenas de milhares.

Pois bem. A lenda do basquete, Kareem Abdul-Jabbar, fez uma crítica contundente ao tapa, dizendo que ele perpetua estereótipos de homens negros serem violentos nos Estados Unidos.¹ Para piorar, Richard Williams — pai de Serena e Venus Williams, homem que foi interpretado pelo ator que desferiu o tapa — condenou a agressão, afirmando que sua família só aceita violência em autodefesa.² E não, na nota de Williams à imprensa não sobra espaço para interpretar a palavra “autodefesa” como defesa da honra. Em adição a eles, uma vasta gama de notórios progressistas norte-americanos e (em menor número) brasileiros acharam absurdo dar um tapa por causa de uma piada, por pior que fosse.

Eu escrevi um tweet três ou quatro dias depois do incidente. Depois apaguei, porque não achei que valia a pena continuar essa discussão. Mas, deveria tê-lo mantido lá e adicionado o que irei escrever mais abaixo, depois de reproduzí-lo na íntegra. Eis o que escrevi: “A aprovação em massa entre brasileiros de porradaria por causa de uma piada grotesca não me surpreende quando lembro que, há uns anos atrás, houve aqui uma aprovação significativa (embora não fosse majoritária) dos terroristas que fuzilaram o pessoal do Charlie Hebdo.” Pelo visto, não fui o único que pensou nisso, pois esse tipo de crítica gerou uma reação pavorosa daqueles que aprovaram entusiasmadamente ou, no mínimo, justificaram o tapa.

Um perfil famoso entre progressistas brasileiros escreveu que comparar um tapa a um atentado era coisa de lunático. Recebeu muitos likes e bajulação. Normal. O sentido que essa pessoa deu ao verbo “comparar” deixa clara a ideia de que estariam forçando uma igualdade entre atentado e tapa. Bom, creio que essa pessoa não deva ter se referido a mim, já que não sou ninguém no Twitter em termos de relevância. Ademais, ainda que estivesse se referindo a mim, a pessoa só vai achar que igualei tapa e atentado se ela tiver seríssimos problemas de interpretação de texto — e a pessoa da qual escrevo tem doutorado, então duvido que seja o caso. Porém, responderei de qualquer forma, como se a crítica fosse para mim:

O que escrevi claramente se refere à reação majoritariamente entusiasmada ao tapa por parte dos brasileiros, e que isso não deveria nos espantar, visto que uma agressão imensamente mais grave (o atentado do Charlie Hebdo) recebeu um apoio de uma minoria significativa nas redes sociais brasileiras na época. Claro, pode-se dizer que um tapa “não é nada” em sentido alegórico. Mas, dizer que um tapa não é uma agressão física, ainda que pequena, desqualificará você de qualquer conversa séria sobre qualquer coisa. A própria “comparação” que fiz estabelece a diferença gigantesca de grau entre os dois eventos: uma agressão pequena gerou uma reação imensamente positiva, enquanto que uma agressão imensamente maior e mais grave gerou uma reação positiva minoritária, porém significativa.

O irônico é que, ao mesmo tempo em que diziam que os críticos do tapa exageravam, essa pessoa e outras como ela compararam o tapa a algum tipo de “libertação dos oprimidos” ou coisa parecida, com direito a threads imensas no Twitter “explicando” por que aquilo era um evento histórico. O tapa foi quase que visto como um aufhebung do Espírito Absoluto hegeliano para quem o aprovou entusiasmadamente. Essas mesmas pessoas que trataram o evento como se fosse uma superação dialética, também compararam Chris Rock ao Bolsonaro, ao fascismo, etc — portanto, não é tão surpreendente que tenham feito elucubrações grotescas, como dizer que, caso Bolsonaro tivesse tomado um tapa em 2010 no Superpop, não estaríamos vivendo sob um governo reacionário hoje.

Concluindo: meu problema não foi com o tapa. Meu problema foi que aquilo não passou de um evento trivial que alguns dos meus compatriotas deram uma importância imensa, muito maior do que a importância real, que é nenhuma. Meu problema foi justamente com essa reação exagerada e, francamente, triste. É por causa dessa reação patética que escrevo este texto.


por Fernando Olszewski

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