Cortina de Fumaça

John Dee fazendo um experimento (detalhe), por Henry Gillard Glindoni

Quando vi a reação que muitos de meus compatriotas de terceiro mundo tiveram após a grande quantidade de notícias sobre o governo americano divulgar informações a respeito de objetos voadores não identificados, ou como quer que eles sejam chamados hoje em dia, eu confesso que me senti orgulhoso.

Veja, quando saíram histórias sobre coisas estranhas nos céus — que eram balões no final das contas — e que haveria nova investigação do governo, tanto fãs de OVNIs quanto pessoas que normalmente não ligam para esses assuntos ficaram entusiasmados, especialmente nos Estados Unidos. Mas a maioria dos comentários feitos no meu país giraram em torno de como essa história era apenas mais uma cortina de fumaça numa longa lista de cortinas de fumaça para distrair americanos de problemas internos e externos reais, problemas que poderiam ser resolvidos mas não são porque os ricos não se beneficiariam disso.

Simples assim.

Porém, embora seja verdade que em todo lugar, não apenas nos Estados Unidos, os ricos e poderosos enganam o resto da população para que ela se preocupe com questões inventadas ou sem importância, de acordo com alguns filósofos, até mesmo as questões importantes, num sentido último, são coisas que a humanidade se meteu para se manter ocupada, de modo que não pense na questão mais premente de todas. Como qualquer outra coisa, essa questão pode ser resumida quando respondemos a pergunta: o que está acontecendo?

Por exemplo, quando se trata dos engodos perpetrados pelos ricos e poderosos, como mentir ao público sobre um determinado assunto, podemos responder à pergunta “o que está acontecendo?” afirmando que aqueles que mandam na sociedade sentem que podem lucrar com uma narrativa inventada. Mais uma vez, simples assim.

No entanto, digamos que pudéssemos nos livrar dos tipos de engodos e distrações que beneficiam alguns em detrimento da maioria. Poderíamos então abordar e talvez resolver problemas reais, em vez de problemas inventados. Ainda assim, de acordo com alguns pensadores, esses problemas reais e suas respectivas soluções fazem parte de uma corrida infindável em que nos metemos porque nunca estamos satisfeitos com nossa existência e não queremos enfrentar uma realidade terrível — mas não importa o quanto tentemos, essa realidade sempre retorna.

À medida em que a humanidade avançou das sociedades rurais para a era da indústria, ela deixou o trabalho árduo no campo para poucos e começou a fazer trabalhos árduos e alienantes nas fábricas, ou passou a ter empregos que esmagam seu espírito em escritórios. A humanidade hoje consegue tratar doenças que costumavam matar a maioria das pessoas antes que elas pudessem envelhecer, mas os humanos agora estão expostos a outras doenças mortais.

Pode-se pensar no clichê de como, ao longo da história, a humanidade vai criando soluções que engendram novos problemas, numa corrida que não tem linha de chegada. Portanto, mesmo que pudéssemos criar a Utopia, salvo alcançarmos algum tipo de tecnologia mágica que nos transformasse num deus do tipo “motor imóvel”, ainda assim nós nasceríamos, viveríamos nossas vidas, encontraríamos estados positivos e negativos e morreríamos. Em última análise, então, a pergunta “o que está acontecendo?” é uma pergunta existencial.

O cerne da questão aqui são as coisas que fazemos e as histórias que contamos uns aos outros para nos distrair de uma realidade mais profunda que não queremos confrontar, nunca. Citando U.G. Krishnamurti em The Conspiracy Against the Human Race (A Conspiração Contra a Raça Humana, em tradução livre), Thomas Ligotti escreve:
Em algum momento ao longo da história da consciência humana, ocorreu a autoconsciência. [...] Essa consciência separou o homem da totalidade das coisas. O homem, no princípio, era um ser assustado. Ele transformou tudo o que era incontrolável em algo divino ou cósmico e o adorou. Foi com esse estado de espírito que ele criou, entre aspas, “Deus”. Então, a cultura é responsável por tudo o que você é. Afirmo que todas as instituições e ideologias políticas que temos hoje são frutos do mesmo pensamento religioso do homem. Os mestres espirituais são de certa forma responsáveis pela tragédia da humanidade. [1]
A “totalidade das coisas” de que fala Krishnamurti é a natureza.

De acordo com Karl Marx, os seres humanos são um produto da natureza material. Portanto, a humanidade depende da natureza para existir e, para isso, modifica a natureza para atender às suas necessidades e prosperar. [2][3] Isso não está errado, mas é um relato bastante descritivo e seco. Albert Camus, por sua vez, descreveu os humanos como sendo capazes de reconhecer a falta de sentido da existência e como tudo é absurdo. Vai um pouco mais fundo, mas ao reconhecer nossa situação, Camus propõe que suportemos essa falta de justificativa cósmica, mesmo diante dos horrores intrínsecos e da finalidade da vida. [4]

Mas Peter Wessel Zapffe teve uma posição diferente, uma posição que dispensa propostas de submissão a uma existência repleta de buscas sem fim e significados falsos. Como U.G. Krishnamurti — e Emil Cioran, também [5] — para Zapffe, os humanos são o produto da evolução cega por meio da seleção natural, e nossas vantagens evolutivas, nossa consciência auto-reflexiva e inteligência, tornaram-se um obstáculo para nós. Em seu ensaio, O Último Messias, Zapffe escreve:
O que aconteceu? Uma brecha na própria unidade da vida, um paradoxo biológico, uma abominação, um absurdo, um exagero de natureza desastrosa. A vida ultrapassou seu alvo, destruindo-se. Uma espécie tinha sido fortemente armada — pelo espírito feita todo-poderosa para fora, mas igualmente uma ameaça ao seu próprio bem-estar. [...] Apesar de seus novos olhos, o homem ainda estava enraizado na matéria, sua alma girava nela e era subordinada às suas leis cegas. E, no entanto, ele podia ver a matéria como um estranho, comparar-se a todos os fenômenos, ver e localizar seus processos vitais. Ele chega à natureza como um convidado inesperado, em vão estendendo os braços para implorar conciliação com seu criador: A natureza não responde mais, fez um milagre com o homem, mas depois não o conheceu. Ele perdeu seu direito de residência no universo, comeu da Árvore do Conhecimento e foi expulso do Paraíso. Ele é poderoso no mundo, mas amaldiçoa seu poder, adquirido com sua harmonia de alma, sua inocência, sua paz interior no abraço da vida. [6]
Zapffe compara nossa má adaptação biológica a um cervo pré-histórico que alguns acreditavam ter sido extinto por causa de seus chifres enormes. A seleção natural favoreceu os indivíduos com chifres maiores. Eles se reproduziram mais, criando uma tendência para chifres cada vez maiores. Isso, no entanto, tornou-se um obstáculo para aquela espécie, assim como a nossa consciência profunda e reflexiva mais tarde se tornaria um obstáculo para nós.

Com nossas mentes superdimensionadas, percebemos que estávamos separados da “totalidade das coisas”, que estávamos sozinhos, sem um sentido maior além de sobreviver, sem ninguém para nos socorrer. Por isso, inventamos histórias e ocupamos nosso tempo desde que a separação ocorreu.

A vantagem que nos foi concedida pela natureza acabou sendo uma maldição. Quando percebem sua situação, os humanos são expostos a algo que Zapffe chama de “sensação de pânico cósmico”. Nossa espécie, no entanto, aprendeu a limitar o conteúdo de sua consciência e, portanto, na maioria das vezes, não vemos nossa situação e não entramos em pânico. A consciência humana foi capaz de criar mecanismos para se limitar, para esconder que o ser humano é um ser efêmero que sofre por nada mais além de levar a espécie adiante no tempo, como qualquer outro animal que consome. E é por isso que o homo sapiens não foi extinto numa epidemia de loucura, segundo Zapffe. Essa é a maior cortina de fumaça de todas. Citando Zapffe:
A história cultural, assim como a observação de nós mesmos e dos outros, permite a seguinte resposta: A maioria das pessoas aprende a se salvar limitando artificialmente o conteúdo da consciência. [7]
Para Zapffe, essa limitação ocorre por meio de quatro mecanismos que podemos combinar, ou não, de inúmeras maneiras. São eles: isolamento, ancoragem, distração e sublimação. [8] O isolamento ocorre quando não pensamos ou falamos sobre isso para nós mesmos ou para os outros, seja por esforço ativo ou não. A ancoragem é quando nos fixamos em certas coisas que dão sentido às nossas vidas, seja consciente ou inconscientemente. Igreja, Estado, ideais, objetivos pessoais e relacionamentos são exemplos de ancoragem. Distração é, bem, buscar distrações ativamente, como assistir televisão, para ocupar nossas mentes e nosso tempo, a fim de evitar o pânico.

Finalmente, alguns são capazes de enfrentar o horror da existência e passam por transformações pessoais avassaladoras, seja experimentando algo ou produzindo algo de valor para si mesmos e talvez para os outros. Isso é sublimação. Uma obra de arte, um ensaio, uma tese científica, uma conquista atlética, a admiração da vista do topo de uma montanha — muitas coisas diferentes podem estar ligadas a uma experiência de sublimação. Mas vai depender, claro. Na maioria das vezes, nenhum desses exemplos estará ligado à sublimação.

Zapffe termina O Último Messias afirmando, pela boca do personagem epônimo, que devemos parar de nos reproduzir e deixar essa corrida sem fim para sempre, já que é tudo em vão e a corrida tem grandes custos — incluindo o custo cognitivo de termos que limitar nossa consciência para evitar o desespero. Esta é a sua prescrição ética:
[...] sejam inférteis e que a terra fique silenciosa depois de vós. [9]
Mas é claro que, logo após dizer essas palavras, o messias negador da vida é assassinado por uma multidão liderada por fabricantes de chupetas e parteiras. E assim termina o ensaio de Zapffe. A infertilidade é sua resposta para o maior de todos os truques, aquele que pregamos em nós mesmos para não cairmos no pânico cósmico. Esse truque faz parte do que Thomas Ligotti chama de “a conspiração contra a raça humana” em seu livro de mesmo nome. [10] Uma conspiração da qual todos nós participamos quando escondemos de nós mesmos o conhecimento de que a consciência humana foi um passo grande demais para a natureza, um peso insuportável que nos arrasta para baixo.

Portanto, mesmo que meus compatriotas possam estar certos ao dizer que o mais recente burburinho da mídia sobre OVNIs é provavelmente uma distração encorajada por grupos poderosos que preferem ver as massas fascinadas com balelas do que questionando o status quo, a realidade é muito mais insidiosa, pois mesmo os problemas reais que enfrentamos são inseparáveis da jornada coletiva que iniciamos há muito tempo, quando o humano, sem culpa própria, foi separado do resto da natureza.

A cortina de fumaça mais egrégia é perpetrada não apenas pelos poderosos, mas por todos nós.


por Fernando Olszewski

Referências:
1. U.G. Krishnamurti apud Thomas Ligotti, The Conspiracy Against the Human Race, Hippocampus Press, 2006, p. 238. (Tradução minha)
2. Karl Marx, The German Ideology, Prometheus Books, 1998, p. 36-37.
3. Karl Marx, The Economic Manuscripts of 1884, Prometheus Books, 1888, p. 76-77.
4. Albert Camus, The Myth of Sisyphus, Penguin Books, 1979.
5. Emil Cioran, The Coming of Consciousness, in: A Short History of Decay, Arcade Publishing, 2012, e-book.
6. Peter Wessel Zapffe, The Last Messiah, Philosophy Now #45, 2004. (Tradução minha da tradução inglesa)
7. Ibid. (Tradução minha da tradução inglesa)
8. Ibid.
9. Ibid. (Tradução minha da tradução inglesa)
10. Thomas Ligotti, The Conspiracy Against the Human Race, Hippocampus Press, 2006.