Assassinas de Milagres

Lição de anatomia do Dr. Deijman, de Rembrandt

O principal motivo pelo qual me interessei pela filosofia há cerca de dez anos atrás, tendo passado toda a minha vida desprezando o seu estudo, foi a estranha sensação de que há algo de errado com toda a realidade e não apenas conosco, embora também haja muito de errado conosco. Foi como se, subitamente, tivesse tido um espanto, não de admiração, mas de medo. Comecei a ter a intuição de que, citando Thomas Ligotti:
“Por trás das cenas da vida há algo pernicioso que faz do nosso mundo um pesadelo.”1
O que esse algo é ninguém sabe. Para Schopenhauer, é a Vontade. Outros descrevem de outras formas. O importante é que comecei a perceber que por trás da ideia de ordem, razão e beleza que projetei a vida toda na realidade, havia um caos intransponível. Nada poderia superá-lo. Do ponto de vista de um ser como o humano, só há duas alternativas: aceitá-lo ou rejeitá-lo. E temos na filosofia exemplos da aceitação da realidade caótica e da sua rejeição. Figuras como Nietzsche e Deleuze, por exemplo, aceitam a desordem-ordeira e criadora da natureza. Já Schopenhauer e Cioran rejeitam. E por aí vai.

A aparente ordem que há no cosmos e suas “leis” matematizáveis nos fizeram admirá-lo e tirar proveito dele, é verdade. Meu antigo desprezo e desinteresse pela filosofia vinha justamente da crença de que só havia ordem e que, dessa ordem, poderíamos extrair uma teleologia totalizante e reconfortante. A filosofia era apenas uma pré-ciência, obsoleta depois do nascimento da física, química e biologia modernas. Em grande parte, isso se manteve. Mas questões de um sentido cósmico para nossas vidas surgiram e permaneceram, principalmente num mundo onde em cada esquina se vende uma variante de significado e vida eterna.

Em retrospecto, vejo que, quando mais novo, busquei na religião esse sentido cósmico. A ideia de lei natural, de ordem, está toda ali, principalmente numa religião como a católica, mas não só nela. Apesar de existirem interpretações religiosas irracionais e toscas, para a religioso, por exemplo, para o católico ou para diversas correntes protestantes, o mundo criado por Deus possui uma lei racional. Deus não intervém a cada instante na sua criação. Nas raras vezes que Ele intervém, alterando o curso natural dos acontecimentos, damos o nome de milagre.

Nas igrejas caça-níqueis, tudo é milagre. Se a pessoa é curada de um resfriado, é porque pagou o dízimo em dia. Na Igreja Católica, há um processo supostamente mais rigoroso de verificação, pelo menos é o que se reporta. Claro, esse processo nem sempre foi tão rigoroso. O rigor tornou-se necessário para não atribuirmos santidade a pessoas que não são, de fato, santas. Isso tudo porque, no catolicismo, os santos intercedem a Deus pelos vivos. É Deus quem faz o milagre, não o santo — mas, segundo a crença, os santos, no céu, seriam capazes de apelar a Deus e Ele, na sua misericórdia e sabedoria, concederia milagres.

Nas décadas de 1980 e 1990 era comum ver nos principais canais de televisão reportagens sensacionalistas sobre assombrações, discos voadores e, claro, curas milagrosas. As curas milagrosas não eram restritas apenas ao catolicismo, mas estavam presentes também em diversas vertentes do espiritismo e, com o passar dos anos, no protestantismo. Recentemente, porém, notei a ausência de algumas coisas nesses relatos. Por exemplo, há uma ausência de casos de curas milagrosas considerados verdadeiramente inexplicáveis pela ciência quando se tratam de doenças como glioblastoma e doença do neurônio motor, mais conhecida como esclerose lateral amiotrófica ou ELA.

Glioblastoma ou glioblastoma multiforme é um tipo de câncer no cérebro considerado raro e, na vasta maioria dos casos, idiopático, isto é, sem causa conhecida. Mas ele é muito mais comum do que se pensa. Já conheci duas pessoas que morreram de glioblastoma. Pessoas que, por sinal, tinham hábitos de vida muito mais saudáveis do que os meus. Um rapaz, amigo de amigos meus, com vinte e poucos anos, foi a primeira pessoa que conheci que teve o azar de desenvolver esse tipo de tumor. A segunda pessoa é minha prima e ela morreu há menos de um mês. Glioblastoma é o câncer do sistema nervoso mais agressivo que existe e está entre os tumores mais letais em termos de sobrevida, se não for o mais letal.

Com tratamento, a média de sobrevida é de doze a quinze meses após o diagnóstico. O tratamento é composto de neurocirurgia agressiva para a retirada do tumor (quando possível), quimioterapia e radioterapia. Sem tratamento, a expectativa de vida é de três meses. Estima-se que apenas 3% dos pacientes sobrevivem cinco anos ou mais, mas inevitavelmente tornam-se vítimas da doença, que é incurável. Há na literatura médica casos raríssimos de remissão de longo prazo, mas mesmo esses possuem dúvidas sobre o diagnóstico inicial estar ou não correto.2, 3 Um diagnóstico de glioblastoma, para todos os efeitos, é uma sentença de morte.

Entre os primeiros sintomas e exames de imagens, mas antes da biópsia, disse à minha mãe que deveríamos torcer para que minha prima tivesse qualquer coisa, menos glioblastoma. Estatisticamente falando, dificilmente esse seria o caso, pensamos ingenuamente. Quando, após muitos dias de espera, o diagnóstico brutal veio, tornou-se ainda mais próxima para mim a mensagem contida nas seguintes palavras de Schopenhauer:
“Somos como cordeiros a brincar na relva, enquanto que o açougueiro nos observa e escolhe um e depois o outro; porque em nossos dias bons não sabemos que calamidade o destino está preparando naquele exato momento para nós: doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte, e assim por diante.”4
Embora diagnósticos de condições neurológicas raras sejam por definição escassos, este ano ouvi de um neurologista que eles, neurologistas, veem “muitos filmes de terror” e que, por isso, sentem a necessidade de passar exames que descartem ou confirmem logo o pior, ainda que o paciente dificilmente esteja acometido pelo pior. Conversando com meus pais, no ano passado, disse a eles algo parecido: a vida é como um filme de horror: uma hora está tudo bem e, de repente, tudo é transformado para o pior, sem a possibilidade de saída, salvo um verdadeiro milagre.

A doença do neurônio motor ou a ELA é também considerada rara. Porém, ela é mais conhecida do público em geral do que o glioblastoma, principalmente por conta do desafio do balde de gelo de alguns anos atrás, além de ter sido a doença que acometeu o físico Stephen Hawking durante a maior parte de seus 76 anos. Contudo, casos como o de Hawking são raríssimos. Aliás, ele é o paciente que viveu mais tempo com a doença após o diagnóstico. Assim como com o glioblastoma, a vasta maioria dos casos de ELA, mais de 95%, são considerados idiopáticos: a doença simplesmente não tem causa conhecida. Uma minoria dos casos possui causa genética.

A maioria dos pacientes de ELA morre de três a cinco anos após o início dos sintomas. Apenas 10% ou menos chegam a uma década.5 Apesar da raridade, a ELA é a terceira doença neurodegenerativa mais comum.6 A condição afeta tanto os neurônios motores superiores quanto os inferiores, o que significa que, aos poucos, mas progressivamente, o indivíduo perde os movimentos voluntários e involuntários. Aqueles que conseguem viver mais tempo invariavelmente necessitam de respiração e alimentação artificial. Em alguns casos, até os músculos que movimentam os olhos são afetados, trancando a pessoa dentro de si. Uma parte dos pacientes também acaba sofrendo de demência nos estágios finais da doença.

Na internet, há relatos anedóticos e, na maioria dos casos, risivelmente fabricados de pessoas que tiveram o glioblastoma curado por intercessão divina. No caso da ELA, a situação é ainda mais escassa, dada a raridade e característica avassaladora da condição.

Há condições tão horripilantes em termos de prognóstico que é mais fácil encontrar pessoas alegando terem sido “curadas” delas tomando suplementos alimentares altamente duvidosos do que relatos de cura pela fé. É como se nem Deus quisesse chegar perto dessas chagas e só restasse o charlatanismo mais rasteiro. Enquanto a ciência ainda não consegue nem discernir a causa da maioria dos casos de doenças assassinas de milagres, como o glioblastoma e a ELA, resta-nos atuarmos no teatro macabro da vida real. Afinal, podemos ser atropelados na calçada por um veículo desgovernado ou sermos vítimas de bala perdida, não é mesmo?

Para seres sencientes, o real é caracterizado por esse aspecto de roleta russa. Ninguém sairá vivo daqui e o melhor que podemos esperar é uma vida com uma dose balanceada de estados positivos e negativos, seguida de uma morte relativamente tranquila, indolor, e que não nos pegue de surpresa. Descrever a vida sem ilusões é descrever uma condição verdadeiramente apavorante. É daí que vem o “horror fati” ou “horror ao destino” que o filósofo Julio Cabrera define como sendo:
“... o espanto diante de uma força destruidora da qual não podemos nos livrar.”7


por Fernando Olszewski



EM MEMÓRIA DE MINHA PRIMA, JULIANA (1977 - 2023)



Notas:
1. Thomas Ligotti, The Conspiracy Against the Human Race. Hippocampus Press, 2011. p. 54.
2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5338899/
3. https://www.smh.com.au/world/the-professor-who-cured-his-own-cancer-20150224-13muh0.html
4. Arthur Schopenhauer, Parerga and Paralipomena. Oxford University Press, 1974. p. 292.
5. https://www.ninds.nih.gov/health-information/disorders/amyotrophic-lateral-sclerosis-als#:~:text=Most%20people%20with%20ALS%20die,for%20a%20decade%20or%20more.
6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4544832/
7. Julio Cabrera, Mal-estar e moralidade. Editora UnB, 2018. p. 652.