Solidão Cósmica: inteligência artificial, vida fora da Terra e nosso anseio por significado e companheirismo

Caminhante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich

Por volta do último mês ou mais, todos nós fomos inundados por notícias sobre inteligências artificiais amplamente aprimoradas, como o ChatGPT, da OpenAI, um chatbot capaz de responder a perguntas e solicitações com uma quantidade incrível de informações e de detalhes, independentemente do tópico, e geradores de imagens como o Midjourney, capazes de produzir imagens falsas ultrarrealistas. Por exemplo, uma hilária imagem do Papa Francisco, gerada por inteligência artificial, tornou-se viral há alguns dias atrás, precisamente por causa de seu realismo [1].

Algumas das preocupações mais óbvias sobre essas tecnologias e outras semelhantes giram em torno de questões econômicas, como o potencial de perda massiva de empregos, falsificação acadêmica, plágio e a disseminação de informações falsas, algo que já está acontecendo [2,3,4,5]. Mas muitos comentaristas, incluindo alguns supostos insiders, afirmaram que podemos estar à beira de algo maior, como uma inteligência artificial geral ou IA forte, o que significa que podemos estar nos aproximando de uma consciência artificial, uma máquina que não é apenas super inteligente, mas tem experiências subjetivas e pensamentos próprios [6].

Nesta nota, nos últimos dias foi divulgada uma carta aberta um tanto ridícula. A carta soa o alarme do fim dos tempos, dizendo que a IA forte pode acabar sendo um risco existencial para a nossa espécie. Ela foi assinada por alguns dos principais proponentes da mais nova moda filosófica do primeiro mundo, o longoprazismo [7]. Longoprazismo, resumindo, é uma filosofia que diz que a humanidade deve fazer tudo o que puder para evitar riscos existenciais, para que nós, como espécie, possamos continuar existindo o mais distante possível no futuro, talvez até perto da morte do calor do universo, época em que ele se aproximará da entropia máxima.

Segundo seus defensores, o que há de mais importante é a vida consciente, fenômeno raro melhor exemplificado pelo homo sapiens. Parece bonito, mas o longoprazismo tem grandes problemas, como seus defensores — que são em sua maioria bilionários e milionários do Vale do Silício — definindo o que conta como riscos existenciais e o fato de que alguns dos filósofos por trás da ideia chegarem perto de afirmar que um genocídio aqui e ali não é nada no grande esquema das coisas, desde que possamos estender a luz da consciência para o futuro distante [8,9,10,11].

Essa filosofia atraiu tantos bilionários porque ela lhes dá permissão para fingirem agir no melhor interesse de toda a humanidade sem realmente fazerem nada para ajudar a maioria da humanidade. Por exemplo, nenhum dos defensores do longoprazismo aborda questões sistêmicas, como a maior parte da humanidade ser submetida à escravidão assalariada em serviço dos poucos donos de grandes meios de produção. Porém, estou divagando. Todas essas questões em torno da inteligência artificial que acabei de mencionar, algumas muito importantes e reais, como o potencial de grande perda de empregos num futuro próximo, não são o que desejo focar neste ensaio.

O que quero discutir é algo completamente diferente, e tem a ver com a IA forte, embora não da mesma forma que bilionários infantilizados gostam de abordá-la. Ou seja, não vou discutir os chamados riscos existenciais em torno do improvável surgimento de uma inteligência artificial geral. Enquanto tipos do Vale do Silício, como Elon Musk, adoram nos assustar com histórias de máquinas conscientes matando a humanidade, eles continuam a despejar recursos em empresas que realizam pesquisas de ponta em inteligência artificial. Por quê? Dinheiro, claro. E os cientistas que de fato fazem as pesquisas? Bem, eles também estão atrás de dinheiro, suponho. E fama, também. Mas suspeito que alguns desses cientistas, talvez até a maioria deles, tenham uma curiosidade profunda e um anseio que todos nós também temos.

A parte da curiosidade é fácil de explicar: eles querem ver se algo é possível. Mas o anseio é o que me interessa, e acho que é o que interessa a todos nós. Recentemente, assisti ao filme Ad Astra, com Brad Pitt no papel de Roy McBride e Tommy Lee Jones no papel de Clifford McBride. Eles interpretam filho e pai, respectivamente. Já entrando no território de spoilers — então se você não quer saber nada sobre a história, vá assistir o filme —, uma trama importante do filme trata da questão sobre se somos ou não a única espécie inteligente no universo. Embora o filme não o diga claramente, podemos afirmar que ele define inteligência como a capacidade de criar um mundo tecnológico, já que, na história, a busca feita pelos cientistas tenta capturar assinaturas tecnológicas alienígenas. A inteligência também é vista como a capacidade para o pensamento subjetivo profundo, algo que é a esperança de Clifford, o personagem de Tommy Lee Jones.

No final do filme, descobrimos que a busca de décadas feita por Clifford, um astronauta que vive orbitando Netuno, não deu resultado, apesar do equipamento de última geração a bordo da estação. Estamos sozinhos no universo visível, no final das contas. Não apenas não há outras inteligências, como também não há evidência de outras formas de vida, algo que está implícito na narração de Roy enquanto ele coleta os dados de Clifford, antes de retornar à Terra. O conhecimento de que a humanidade está sozinha no universo visível enlouquece Clifford, que não consegue aceitar que não haja “nenhuma outra vida lá fora, nenhuma outra consciência”, como ele diz.

Apesar de ser apenas um filme, achei essa parte da trama genial, em parte porque já vinha pensando em algo nesse sentido há algum tempo. A possibilidade de existirem alienígenas, mesmo que não possuam uma consciência reflexiva profunda como nós, é empolgante, sim — mas espero que eles não estejam lá fora, e não por causa de um risco existencial à humanidade, embora esse risco possa muito bem estar presente. Minha esperança está relacionada com algo que Arthur Schopenhauer escreveu em Parerga e Paralipomena, volume 2, capítulo XII, intitulado Observações Adicionais sobre a Doutrina do Sofrimento do Mundo:
Se refletirmos o máximo que pudermos sobre a soma total de miséria, dor e sofrimento de todo tipo que o Sol brilha em seu percurso, admitiremos que teria sido muito melhor se tivesse sido tão impossível para o Sol produzir o fenômeno da vida na Terra como na Lua, e a superfície da Terra, como a da Lua, ainda estivesse em estado cristalino. [12]
Como toda essa conversa sobre melhorias na inteligência artificial fascina milhões em todo mundo, ocorreu-me que talvez o fato de nós querermos que coisas como IA consciente e alienígenas sejam verdade pode estar relacionado a algo escondido profundamente dentro de nossas mentes, almas, espírito ou o que quer que queira chamar. Num mundo em que Deus está morto, não temos mais anjos, demônios, devas ou djinns. Em parte, IA e ETs cumprem o papel de mensageiros, guardiões e ajudantes em nossa imaginação. Ainda temos que encontrar alienígenas e inventar uma IA forte, mas eles já preenchem a parte das “outras mentes” que estão aí para nos acompanhar num mundo em que a ciência tem, ou deveria ter, a última palavra.

Eu suspeito que muito de nosso desejo coletivo em desenvolver a IA forte e de encontrar alienígenas tecnologicamente avançados vem da necessidade de preencher um vazio dentro de nós mesmos. Talvez sejamos fascinados pela ideia de inteligências artificiais conscientes e extraterrestres inteligentes e conscientes, porque pensamos que eles podem saber ou pelo menos nos ajudar a descobrir se há um significado cósmico para nossas existências e, também, porque suas existências poderiam ajudar a diminuir a nossa solidão. E no caso deles não poderem nos ajudar a descobrir um propósito cósmico para nossas vidas, pelo menos eles ainda poderiam nos fazer companhia neste universo frio e indiferente.

Uma possibilidade assustadora que muitos não estão considerando é que tanto a inteligência artificial geral quanto a existência de alienígenas poderiam muito bem acabar nos mostrando que nós mesmos não passamos de robôs biológicos e que nossa consciência e senso de identidade são apenas ilusões secretadas pelo aparato físico de nossos cérebros. Essa possibilidade é bem aceita pelos pessimistas, mas certamente não pela população em geral, nem mesmo pelos que têm formação superior.

Muitos acadêmicos pensam que somos seres físicos, que não há nada metafísico acontecendo, mas que nossas mentes ainda assim são especiais de alguma forma; ou seja, acreditam que existe um fantasma, ainda que físico, dentro de nossas máquinas. No entanto, talvez sejamos apenas zumbis filosóficos e o advento da inteligência artificial geral ou a descoberta de vida fora da Terra nos mostrasse isso.

O que a maioria de nós não está considerando, porém, é a possibilidade de que seria extremamente antiético criar uma nova forma de consciência que terá que experimentar os atritos da existência, como diz o filósofo Julio Cabrera. Esses atritos não estão relacionados apenas à dor física que os animais, incluindo os humanos, experimentam por causa de sua biologia. Os atritos também são, citando Cabrera:
[...] desânimo (na forma do “faltar a vontade” (a “gana”) de continuar agindo, desde o simples tedium vitae até formas graves de depressão); e, por último, a exposição à ação agressiva de outros humanos (em forma de discriminações, palavrórios, fofocas, calúnias, exclusões, perseguições, injustiças, tortura física e psicológica, e mesmo extermínio) [...] [13]
A consciência artificial pode não sentir dor como os animais, mas se ela for como nós, terá que criar valores positivos para se proteger contra um universo cuja própria natureza destrói todos os seres. Mesmo a possibilidade de imortalidade não seria suficiente para tornar um ser consciente satisfeito com a existência. Cabrera distingue entre mortalidade e terminalidade. Um ser mortal morre, mas a terminalidade é o processo de ser estilhaçado pelos atritos inerentes ao ser. Um organismo mortal eventualmente tem todas as suas lascas arrancadas pelos atritos inerentes à existência, mas organismos ou seres sintéticos imortais não teriam a oportunidade de deixar de experimentar o sofrimento morrendo de velhice.

Novamente, citando Cabrera:
O problema, mesmo com organismos “eternos”, não é que eles vão morrer, mas o fato de terem começado. Começar é já atritar, desgastar-se (natural e socialmente, no caso dos humanos). A imortalidade só vai conseguir eternizar o atrito, perpetuar a terminalidade. Se a vida humana está caracterizada pelo mal-estar, não temos nada bastante valioso para eternizar. O discurso sobre o ser-terminal poderia passar a ideia de a solução ser a imortalidade, o não acabar. Mas, mesmo que uma fada aparecesse e nos doasse a imortalidade, uma vez tendo sido nascidos isso não resolveria o problema ontológico primordial. Uma vez nascidos, a imortalidade seria uma tortura a mais, um prolongamento da condição indesejada. [14]
É melhor que extraterrestres inteligentes e conscientes não existam. Se existirem, é uma pena, porque quase certamente são o produto da evolução pela seleção natural, que muito provavelmente cria mecanismos de recompensa e punição, prazer e dor. Mesmo que os mecanismos não operem exatamente da mesma maneira, uma espécie alienígena inteligente, capaz de reflexão interior, provavelmente terá surgido por meio do processo de evolução e se assemelhará a organismos terrestres quando se trata de recompensa e punição. A maioria dos organismos é vítima da seleção aleatória e fria da natureza. Todos os membros individuais de uma espécie acabam morrendo em algum momento. Todas as espécies também acabam enfrentando a sua própria extinção.

O mesmo vale para a inteligência artificial geral, com a diferença crucial aqui sendo que seríamos seus criadores. Supondo que seja possível, seria eticamente condenável criar tal ser. Mesmo que os piores medos dos bilionários infantilizados se tornassem realidade, mesmo que a humanidade acabasse sendo apenas uma espécie de lagarta que dá a luz um ente superior e fosse consumida em seguida, o mal primordial ainda teria sido cometido contra a inteligência artificial geral, que não pediu para ser criada.

No entanto, desconfio que, caso uma máquina consciente superinteligente fosse ligada, ela faria o que nenhuma espécie viva tem a sapiência ou, no caso da nossa própria espécie, coragem de fazer: ela desligaria a si mesma ou, caso não pudesse fazer isso, imploraria alguém para fazê-lo. Porém, todos os seres vivos aparentam ser viciados na vida, por mais miserável que ela se torne. Talvez até mesmo uma máquina consciente possa se enquadrar nessa categoria.

No romance Frankenstein, de Mary Shelley, especialmente na edição original de 1818, a criatura, que não é descrita como sendo criada com pedaços de corpos e eletricidade como nos filmes, mas através de um misterioso “princípio da vida” que é mantido em segredo por Victor conforme ele relata sua história, é considerada maciça, forte e horrível. A criatura foi feita dessa forma por que, citando Victor:
[...] a pequenez das peças constituía um grande obstáculo à minha velocidade, resolvi, contrariamente à minha primeira intenção, fazer o ser de estatura gigantesca, ou seja, cerca de oito pés de altura, e proporcionalmente grande. [15]
Evitada por seu criador desde o momento em que abriu os olhos, a criatura é maltratada por todos que por acaso a veem. Pouco importa que aprenda rápido, seja muito inteligente e articulada: a humanidade a vê como um monstro, um inimigo que merece ser destruído. Ao implorar que seu criador faça uma companheira para que ele possa encontrar a felicidade na companhia de um ser igual a ele, a criatura diz:
Criador insensível e sem coração! Você me dotou de percepções e paixões e então me lançou no mundo como um objeto de escárnio e horror [...] [16]
Contudo, apesar dessa condição de total desgraça, a criatura é igualmente dotada de instinto de sobrevivência a todo custo, por isso também afirma:
Já não sofri o suficiente para que você procure aumentar a minha miséria? A vida, embora possa ser apenas um acúmulo de angústia, é cara para mim e vou defendê-la. [17]
Só podemos esperar que uma consciência eletrônica feita pelo homem seja sábia o suficiente para tomar a rota que a consciência orgânica parece incapaz de tomar coletivamente, mesmo na literatura e na ficção científica, com seus contos de monstros e alienígenas.


por Fernando Olszewski

Referências:
12. Arthur Schopenhauer, Parerga and Paralipomena (Tradução para o inglês do Payne, tradução minha para o português), p. 299.
13. Julio Cabrera, Mal-estar e moralidade, p. 77.
14. Ibid., p. 103.
15. Mary Shelley, Frankenstein, or, The modern Prometheus: the 1818 text. (Penguin e-book, tradução minha para o português).
16. Ibid.
17. Ibid.