O Anjo da Morte
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Morte, por Janis Rozentals. |
Neste ano do nosso senhor de 2025, uma influencer com 50 milhões de seguidores foi criticada por usar a imagem das suas filhas pequenas, todas bebês, nas redes sociais. Acho que ela é casada com algum cantor sertanejo ou filho de cantor sertanejo, não sei. Uma dos aspectos recorrentes nas críticas a ela foi o uso do Estatuto da Criança e do Adolescente. Muitos disseram que o ECA deveria ser emendado para proteger crianças de serem usadas pelos pais nessa capacidade. Realmente, é uma crítica válida. Mas acho pouco. Um ECA que quisesse proteger de verdade crianças e jovens de todo o mal, seria um cuja principal norma diria para não gerarmos bebês em primeiro lugar.
Outro dia tive o azar de ver o registro de uma brutalidade cometida nos rincões do Brasil. Sujeito amarrado dentro de uma cova apertada teve cara e cabeça destruídas a golpes de picareta. Coisa de facção. Um horror que traria calafrios até em leitores de Clive Barker. Esse episódio me fez recordar do terrível caso do mangue 937, ocorrido em Fortaleza, anos atrás, onde, também por causa de facção, três jovens foram brutalmente mortas, uma delas inclusive foi esquartejada viva, morrendo em considerável dor e medo. Os registros de eventos bárbaros como esses abrem uma janela para uma realidade desalentadora. Somos mesmo sacos de carne e ossos, totalmente descartáveis. Somos como bois para o abate. E nossa dor não serve a nenhum grande propósito, igual a dos bois.
Mas um ECA verdadeiramente empenhado em impedir o sofrimento de crianças cortaria todo esse mal pela raiz. Aliás, nem raiz haveria em primeiro lugar para ser cortada, pois a possibilidade do mal ocorrer nem sequer existiria se a regra mais eficaz para se impedir o sofrimento de crianças estivesse em vigor e fosse seguida à risca. Ela também eliminaria todo tipo de sofrimento, não só aquele que afeta crianças e jovens. O anjo da morte não pode tocar aquilo que nunca nasceu, o que jamais existiu. Depois que as pessoas nascem, por mais que tentemos protegê-las, tudo de ruim pode acontecer, e muitas coisas de ruim certamente acontecerão, incluindo a morte.
Com isso não quero dizer que leis e estatutos que visam proteger a integridade das pessoas, sejam elas jovens ou velhas, não são importantes. Já que estamos aqui, que sigamos regras mínimas de convivência, claro. Mas depois de um certo ponto há uma futilidade em querer proteger dos males, porque a própria existência é atritada, como dizia Cabrera. Uma pedra não sente esse atrito, mas animais e pessoas sim. Só por termos nascido somos obrigados a encarar essa condição atritada, do primeiro instante que sentimos, até o último. Por isso rejeito completamente as lágrimas de pais que perdem seus filhos e dizem coisas como: “pais jamais deveriam enterrar um filho!” Essa é uma expressão revoltante. Por acaso não sabiam o tipo de universo em que vivem?
Se não têm coração para ver seus filhos sofrerem e morrerem, seja nas mãos de vilões, seja por acidente ou por doença, então não deveriam tê-los, porque essas possibilidades estão costuradas às nossas existências e é impossível nos desvencilharmos delas. No caso da morte, não é nem uma possibilidade, mas uma certeza. Ela vai acontecer um dia. Portanto, poupem-nos do espanto, que só pode ser falso. E na remota chance de haver pais que se espantam de verdade com a possibilidade de que seus filhos podem sofrer e morrer antes deles, fica o questionamento: que tipo de aprendizado tiveram em suas vidas para serem tão tapados?
Sendo bem sincero, não acredito nesse tipo de ignorância. Tem coisas que até um chimpanzé é capaz de entender. Enquanto que me compadeço da dor, não suporto o chororô dos genitores que se surpreendem com o sofrimento e o óbito de suas proles. Sofram, sim, e terão meu apoio, terão meu ombro para chorar, mas não finjam ignorância. Todos nós sabemos que dessa vida ninguém sai vivo, ninguém sai daqui sem um mínimo de machucados e cicatrizes. Se estou sendo ríspido, perdoem-me, é que a minha paciência para determinados jogos sociais se esgotou.
Quem vive, sofre e morre. É inevitável. Temos ainda a sorte de vivermos no século XXI, num mundo humano de alta tecnologia que consegue aliviar um bocado da dor, um mundo de faz-de-conta que consegue até dar muito prazer e alegria. Mas o que vivemos é um ponto fora da curva na história da vida animal, aquela vida que dói, que tem consciência, ainda que primitiva. Mesmo ao longo do século XX, com guerras, holocaustos e degradação ambiental causada pelo homem, a maior quantidade de mortandade e dor se deu no mundo natural, sem a necessidade da interferência humana. E animais existem há centenas de milhões de anos nessa luta grotesca por sobrevivência.
Nosso mundo confortável e tecnológico é uma bolha no tempo e, também, no espaço. Agora mesmo trilhões de criaturas estão sendo perseguidas, torturadas e devoradas por outras trilhões de criaturas, algo que dura há meio bilhão de anos, desde a era pré-cambriana. Mesmo assim, apesar de vivermos numa bolha, não se pode alegar ignorância, não podemos dizer, ao fabricarmos uma nova vida, que não sabíamos como o universo funciona para seres como nós. Somos comidas para vermes, que por sua vez são comidas para outros vermes e fungos e plantas. A vida se alimenta de si mesma sem dó, sem piedade.
O que falo não é um exagero. Qual é o nível aceitável de dor e sofrimento que estamos dispostos a infligir a um ser? Quantos males estamos dispostos a expor uma pessoa? Essas são perguntas que devemos fazer antes de gerar uma nova criatura como nós. Tudo bem parir um filho que potencialmente desenvolverá tumores horríveis e incuráveis, desde que pais influencers não possam expô-los? Essa é a sensação que deu quando vi comentários banais sobre a tal influencer. Aqueles que comentaram tais coisas certamente se sentiram heróis dispostos a defender os pobres indefesos. Mas não há como. Se quisessem defendê-los de verdade, teriam que voltar no tempo e convencer a influencer a não procriar.
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A fragilidade da vida humana (detalhe), por Salvator Rosa |
Queiramos ou não, somos forçados a assinar um contrato quando nascemos, e são nossos genitores que nos levam ao escritório da morte para assiná-lo. Em 1656, o artista italiano, Salvator Rosa, pintou um quadro chamado “A fragilidade da vida humana”. O quadro mostra o anjo da morte segurando um pedaço de papel diante de uma mãe que segura seu bebê. Nele, está escrito, em latim: “Conceptio Culpa, Nasci Pena, Labor Vita, Necesse Mori”. Traduzido, significa: “A concepção é um pecado, nascer é a pena, a vida é trabalho, a morte é uma necessidade”. Na imagem, a mão esquelética da morte guia a mão do bebê, que assina o papel.
Rosa pintou o quadro após a morte de seu filho, que morreu durante um surto de peste em Nápoles. Morreram, também, a irmã e irmão do pintor. Poucas obras de arte resumem bem a condição humana. A condição de parte considerável da vida animal é o sofrimento e a morte. Mas, no caso da vida humana, há um aspecto moral envolvido, algo que inexiste nos outros animais. Enquanto que a ordem do dia sempre foi a de que podemos reclamar e tentar mudar tudo, menos a condição de sermos obrigados a experimentar uma existência inevitavelmente atritada, eu digo que isso é uma babaquice, uma regra patética criada sabe-se lá por quem nos primórdios da nossa espécie e tida como inquestionável. Pelo contrário, é correto questionarmos a necessidade de estarmos vivos e perpetuarmos a vida.
Tem se falado muito no perigo da extinção humana, que devemos manter ou até aumentar os níveis de natalidade, seja lá por qual motivo. Até mesmo o motivo da sustentabilidade da previdência e estado do bem-estar social já foram jogados na discussão. Sim, se a população começar a cair drasticamente, haverá um inevitável colapso de tudo. Mas eu te pergunto: e daí? Nossa extinção virá, sabemos disso, queiramos ou não, um dia. Que venha o quanto antes, então, de forma voluntária e pacífica. Melhor do que esperarmos alguma catástrofe gerada por uma dúzia de tiranos com egos inflados e arsenais nucleares.
Não adianta muito querer proteger os filhos de uma pessoa rica de serem expostos ao público por ela, sendo que há coisas muito piores contra as quais ninguém pode ser protegido, coisas como: encefalopatia espongiforme esporádica, atrofia muscular espinhal, gliomas, meningite, assassinos em série, maníacos depravados, torturadores, acidentes diversos por conta de descaso ou do azar natural, entre tantos outros horrores que esperam os nossos pequenos. Esses horrores esperam nossos velhos, também. Esperam todos nós. Sinto ter que bater tanto nesta tecla, mas é demais para mim ter que ler e escutar manifestações de indignação proferidas por pessoas que certamente acreditam ser do bem. Vocês não são os grandes heróis que pensam que são por tentarem poupar os filhos de uma influencer de serem expostos por ela.
Manifestações como essas são quase tão patéticas quanto dizer que se está do lado certo da história, ou que a história condenará tal e tal coisa no futuro. Meu deus do céu. Uma mísera erupção solar ou uma rocha com poucos quilômetros de diâmetro podem fazer com que todo o nosso planeta evapore no espaço sideral e vocês estão discutindo sobre lado certo e errado de uma ficção humana recente? Não que não simpatize com esse ou aquele lado, mas não há um campo metafísico coletivo chamado história que guia os nossos passos rumo a algum lugar. Se houvesse, ele claramente seria uma espécie de divindade irônica, que vive de nos dar algumas benesses ao mesmo tempo que acrescenta novos problemas, numa sucessão interminável.
Sejamos sinceros, a vida é uma bela duma porcaria. Ela é viciante, sim. Mas não presta no final das contas. Porém, como Cabrera bem diz, parafraseando, não somos nós que odiamos a vida, é ela que nos odeia, é ela que nos massacra, mesmo quando fazemos de tudo para que as coisas fiquem bem. Você pode viver num povoado pacífico e idílico, isso não te salvará da marcha inexorável do tempo, dos atritos inerentes a existir. Você murchará. Terá que inventar ou absorver mitos que façam a sua dolorosa decadência algo necessário ou até mesmo bom, mitos como Deus, paraíso, visão beatífica, nirvana ou a simples visão materialista e poética de que a natureza é um ciclo e devemos nos adequar a ela.
Tenho uma pergunta a todos vocês: não cansaram de sofrer? Mesmo que acreditem em alguma dessas besteiras, por que fabricar novas cópias de vocês mesmos para sofrerem e morrerem? É porque Deus, o mais famoso dos amigos imaginários, ordenou que crescessem e se multiplicassem? Ou seria porque sabem que não há certo ou errado num sentido último e vocês não se importam com o sofrimento dos seus filhos? De qualquer forma, independentemente da resposta, há uma psicopatia travestida de teatralidade na atitude de continuar gerando novos atritados, novos coitados.
No diálogo platônico Górgias, Sócrates diz que o corpo é o túmulo da alma. Em outro diálogo de Platão, Fédon, Sócrates diz que o corpo é a prisão da alma. Dois mil e quinhentos anos depois estamos maravilhados de aprisionar cada vez mais gente nesta necrópole fétida e ilusória. O problema da influencer expor seus filhos não é tanto a exposição, mas o orgulho que ela e o marido têm do seu feito: produziram mais alguns condenados. Na mesma época em que Sócrates andava por Atenas perturbando as pessoas em busca da verdade, por volta de quinhentos antes de Cristo, Sidarta Gautama, o Buda, entendeu que nascer é sofrer e alcançou a iluminação na Índia. Não há luz em toda a vastidão do cosmos que segure o peso da escuridão.
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O velho e a morte, por Ladislav Mednyánszky |
Enquanto que viver significa sofrer muito e morrer, vamos agora focar não na dor, mas na morte — a nossa morte, não a dos outros, que para nós é motivo de sofrimento, ou de indiferença, ou até de celebração. Pense na sua própria morte. Para Epicuro, a morte não é nada, por isso não devemos temê-la. Quando ela é, nós não somos, e quando nós somos, ela não é. Esse argumento é usado para sustentar a noção de que a morte, a nossa morte, não é algo negativo. Para nós, ela não é absolutamente nada. Num sentido de algo que se experimenta, algo que se vivencia, é verdade que a nossa morte não é nada. Claro que excluo aqui o conceito de vida após a morte dos que têm amigos imaginários. Aí a morte pode ser qualquer coisa que a imaginação permitir.
A ideia de que a morte não é nada e só afeta negativamente os vivos que por acaso sentirão falta do morto é questionável. Benatar questiona o conceito epicurista de morte afirmando que, embora fosse melhor que todos nós nunca tivéssemos nascido, visto que isso preveniria todo e qualquer estado negativo, ele inclui no grupo de coisas negativas não apenas dor, mas também a morte. Isso porque quando passamos a existir, a maioria de nós desenvolve rapidamente um interesse inabalável em continuar existindo. Sim, o interesse em continuar existindo pode diminuir ou sumir graças à depressão ou à um estado de vida deplorável, como acontece com aqueles que possuem doenças crônicas ou terminais. Mas, no geral, pessoas vivas e razoavelmente saudáveis tem um interesse, mesmo que implícito, em continuarem existindo.
Dessa forma, pode-se dizer que a morte é sim algo negativo até mesmo para o morto, muito embora ele já não sinta mais nada, nem mesmo a sua vontade de continuar existindo. Não sei se compro esse argumento de Benatar totalmente, mas tendo a concordar. A razão pela qual tendo a concordar é a de que, quando paramos para ver, geralmente respeita-se os desejos dos mortos, desde que eles sejam razoáveis. Respeitamos se querem ser enterrados ou cremados, por exemplo. Tende-se a respeitar a distribuição de heranças de acordo com um testamento. Quando enterram alguém que deixou explícito que queria ter seu corpo cremado, tendemos a ver isso como uma falta de respeito ao morto, muito embora ele não exista mais.
Se não ligássemos a mínima, aliás, nunca nem teriam surgido leis sobre como devemos ou não lidar com os nossos mortos, jogaríamos todos no lixão mais próximo. Afinal, do ponto de vista do morto, tanto faz mesmo, ele não existe mais, não é verdade? Esse conceito, de que a morte pode sim ser vista como um mal apesar de nós não existirmos mais quando ela chega, quando aplicado à filosofia de que não ser é melhor do que ser, me faz lembrar de quando Cioran escreveu que nós não corremos em direção à morte, mas sim fugimos da catástrofe do nosso nascimento, o maior desastre de todos. Nunca nascer não é o mesmo que estar morto depois de viver uma vida exposta ao atrito inerente à existência sensível. Em ambos os casos não sentimos nada, porque nada somos, mas o interlúdio que ocorre entre os dois nadas gera lágrimas suficientes para uma eternidade.
por Fernando Olszewski