A Catástrofe do Nascimento

A queda na eternidade (detalhe), de Raymond Douillet

No dia 19 de abril de 2025, um homem americano chamado Shawn Ryan Grell faleceu aos 50 anos num presídio na cidade de Tucson, no estado do Arizona. A causa da morte não foi divulgada. Ele estava preso há 25 anos. Seu crime foi horrível. No dia 2 de dezembro de 1999, pouco depois das 19 horas, ele levou sua filha de 2 anos de idade para o deserto que cerca a cidade de Tucson, dizendo para ela que veriam lindas luzes de natal. Chegando num lugar ermo, ele a colocou no chão do deserto perto da estrada, derramou um galão de gasolina em cima da criança e ateou fogo. Ela ainda engatinhou por cerca de 3 metros antes de parar e morrer dolorosamente.

Seu corpo, em estado deplorável, foi descoberto no dia seguinte. Grell foi preso e confessou tudo abertamente. Não havia motivo para que ele fizesse aquilo, ele apenas sentiu vontade e fez. Simples. É dele que sabemos a mentira que disse a sua filha, a de que iriam ver luzes de natal. Ele foi condenado à morte na época, porém a Suprema Corte do Arizona julgou, em 2013, que Grell tinha um leve retardo mental e aplicar a pena de morte em pessoas que não possuem plenas capacidades cognitivas ia contra a lei federal. Sua pena então foi comutada para prisão perpétua sem a possibilidade de condicional. O nome de sua filha era Kristen Salem.

É a minha posição que nada que a humanidade fará ou experimentará de maravilhoso em toda a sua trajetória na Terra ou mesmo fora dela jamais justificará os poucos momentos de extrema dor, desespero e agonia vivenciados por Kristen Salem enquanto ela era encharcada de gasolina pelo imbecil de seu pai e queimada viva até morrer na beira de uma estrada num fim de mundo da América do Norte. Eu trocaria toda a existência para que isso e coisas similares jamais pudessem ter acontecido com ninguém. Eu estou com Ivan Karamazov quando ele diz para seu irmão, Aliócha, que ele devolveria respeitosamente o bilhete para Deus.

Num dos principais diálogos do romance de Dostoiévski, Ivan descreve algumas barbáries cometidas por soldados otomanos contra civis eslavos: crianças jogadas aos cães famintos para serem devoradas vivas, bebês sendo jogados ao alto e espetados em baionetas, tudo na frente de suas desesperadas mães. Ele diz a seu irmão, que é um noviço no monastério local e possui uma grande fé na providência divina, que nenhuma reconciliação futura no pós-vida é possível aos seus olhos quando Deus permite esses tipos de dores no mundo. Após Ivan dizer que devolveria o bilhete da existência para Deus, Aliócha então afirma que Ivan prega a rebeldia, tal qual o diabo, que um dia quis usurpar o trono de Deus.

Aliócha é o herói do romance de Dostoiévski. Ivan termina enlouquecendo, inclusive tendo sonhado com o diabo e percebendo, ao final de sua trajetória, que ele deveria aceitar a Deus, sem contudo conseguir fazê-lo. A mensagem final é contra o niilismo e a rejeição representados por Ivan ao longo da história. Apesar de tudo, é muito mais fácil se colocar na dúvida niilista e no inferno existencial gerado por ela do que na certeza sagrada. Foi mais fácil para Dostoiévski, inclusive. Em O mito de Sísifo, Albert Camus nota que Dostoiévski demorou três meses para escrever os capítulos afirmativos e anti-niilistas de Irmãos Karamazov, enquanto que os capítulos que favorecem o pensamento de Ivan levaram apenas três semanas.

Em O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer faz um comentário parecido, mas sobre A divina comédia, de Dante Alighieri. Ele escreve que, na hora de descrever o Inferno, Dante deve ter tido uma abundância de material para trabalhar, já que o nosso mundo é abarrotado de sofrimentos e torturas, porém, na hora de descrever o Céu e seus prazeres maravilhosos, faltou-lhe inspiração e pelo mesmo motivo. Não é difícil imaginar tal cenário: o poeta terminando linha após linha freneticamente quando sua tarefa era descrever o pior, enquanto que travava na hora de imaginar o Paraíso e a visão beatífica dos santos.

É mais fácil descrever a desgraça do que a benção, pois há abundância de uma em relação a outra. Há quem pense que não. Contudo, aqueles que pensam ser mais fácil enumerar estados positivos do que negativos são bastante iludidos. Há um limite na quantidade de banquetes e prazeres orgásticos que conseguimos ter. Há um limite na intensidade e diversidade deles, também. Mas o sofrimento quase não tem limites. Não é a toa que as torturas do inferno podem ser descritas de formas absurdamente diversas e criativas, enquanto que a visão beatífica supostamente alcançada no Céu é indescritível, como é indescritível ver a face de Deus nas escrituras judaico-cristãs. Só as interpretações mais chulas das religiões descrevem o Paraíso como uma amálgama de prazeres mundanos, regrado a vinho e orgias com virgens.

O nirvana no budismo também nunca é descrito de maneira afirmativa, mas negativa, como na teologia apofática comum ao cristianismo ortodoxo e oriental. Como descrever algo tão sublime e sem correlatos no mundo do devir? Como bem afirmou o rabino Maimônides no século XII, quando falamos de atributos do divino, estamos falando de algo que vai além da analogia: são meras aproximações grosseiras. Segundo Maimônides, a Bíblia fala para as pessoas comuns quando atribui uma característica a Deus. Para ele, os leigos são incapazes de entender que não podemos atribuir algo como “bondade” ao divino da mesma forma que o fazemos ao dizer que uma pessoa é boa. Para o Rambam, só os iniciados, aqueles que estudam a filosofia, podem entender mais profundamente a verdade que está por trás dos textos sagrados.

De certa forma, há duas verdades em todas essas tradições místicas, como há no budismo mahayana. Originalmente, o grande filósofo budista do século II, Nagarjuna, considerou que há duas verdades: uma verdade última e uma convencional, provisória. A convencional é aquela que experimentamos no mundo empírico, o mundo do devir. Já a verdade última é a compreensão total de que todos os fenômenos são vazios de uma existência independente. Uma mesa, vista pela verdade convencional, possui forma, cor, peso, etc, mas vista como verdade última, ela é vazia, já que é formada de partes que são elas próprias formadas de outras partes, e todas elas existem no tempo, sendo causadas por outras coisas, numa interdependência infinita. Em última instância, todos os fenômenos dependem de outros fenômenos, nada subsiste por si.

Outra interpretação da doutrina das duas verdades afirma que os fenômenos do mundo empírico que experimentamos são, de fato, vazios, suas verdades são convencionais no sentido de que elas se aplicam a uma existência interconectada que não subsiste por si. Porém a verdade última é o campo do incondicionado, da natureza do Buda, o nirvana. O nirvana subsiste por si e é eterno, estável. Segundo essa interpretação, as duas verdades não teriam apenas profunda diferença empírica, mas ontológica. É dessa maneira que as tradições místicas consideram o indiferenciado. Ele está além de tudo, de todas as dualidades, ele é, subsiste por si só, fora do tempo e do espaço, como o númeno está para o fenômeno na filosofia kantiana. Contudo, é possível termos uma ideia sobre ele, ao contrário do númeno de Kant.

Já a Vontade schopenhaueriana remove do indiferenciado toda a conotação divina ou sagrada, tratando-o como uma fonte infinita e cega de manifestação que produz infindáveis sofrimentos. Enquanto que os místicos apegados a dogmas sobre a existência de um Deus benevolente e racional não podem conceber esse indiferenciado como sendo a real fonte das dores e do mal no mundo, a filosofia schopenhaueriana o trata basicamente como Azathoth, o deus cego e idiota do mythos de Cthulhu de H.P. Lovecraft. No universo literário criado por Lovecraft e continuado por outros autores, toda a realidade é apenas um sonho de Azathoth. Caso um dia ele acorde, seríamos todos aniquilados na melhor das hipóteses, ou passaríamos por algo mil vezes pior do que passamos em seu sonho.

Volto aqui a Ivan Karamazov. Ele diz a Aliócha que devolveria respeitosamente o bilhete da existência para Deus, recusando o devir. Está mais do que certo, na minha opinião. Mas, em verdade, não teria a menor necessidade de devolver o bilhete a Deus, pois não há um Deus, nem nunca houve bilhete nenhum. Se há algo, há apenas uma base indiferenciada e cega da qual toda a realidade empírica brota como manifestação, como fenômeno ou como representação. Não há nada que possamos fazer, estamos presos dentro desse esquema eterno da Vontade ou o que quer que queira chamá-lo. Não é possível devolver o bilhete, nem em oração, pois a Vontade, o indiferenciado, não é Deus, não no sentido de uma divindade a qual podemos apelar. O indiferenciado é cego e surdo, é como um monstro que só visa se manifestar de inúmeras maneiras.

Os corpos dilacerados e queimados vivos não significam nada para o indiferenciado, que é manifestação pura. Ele não entende, não raciocina, não existe no tempo e no espaço, logo não pode mudar, não pode criar um mundo onde só existam estados positivos, ou um universo onde a senciência seja impossível. A ordem que vemos é incidental, ela não é planejada por um arquiteto divino. Se fosse, teríamos toda a razão em chamá-lo de demônio ou de demiurgo. Os mitos gnósticos servem apenas como aproximação folclórica da verdade, que é ainda mais triste: esta existência é tudo o que há. Quando morremos, nossa individualidade se dissolve completamente. O que resta, o que é imortal em nós, é a Vontade, o indiferenciado, que apenas nos usa como preservativos descartáveis na sua busca erótica por manifestação e individuação.

Que tristeza. Quanto horror! A pobre menina que nem viu a chegada do ano 2000 porque seu pai sentiu a vontade de destruí-la com fogo. Sua vontade individual e incipiente foi esmagada por outra! A vontade que Shawn Ryan Grell sentiu, uma vontade cega, bruta e desprovida de qualquer razão além do mero querer, brotou da mesma Vontade universal que, em outros, se manifesta como vontade-de-saber e permite que seus intelectos brilhantes desvendem as leis do mundo empírico, aquele passível de ser analisado, testado e utilizado por nós. Não há uma divisão ontológica radical entre essas vontades. Se houvesse, esses intelectos brilhantes não teriam sido capazes de produzir armas nucleares, químicas e biológicas horrendas ao mesmo passo que nos assombram com medições cada vez mais precisas da idade do universo e do seu destino final num futuro longínquo.

A vontade tosca do assassino brota da mesma Vontade que, em muitos de nós, manifesta-se na busca pelo belo, pelo sublime, através da criação e apreciação artística. Na existência em que estamos presos, não há o sublime sem a possibilidade de também haver o vil, o odioso, o grotesco. Pode-se dizer que o oposto também é verdade e que devemos valorizar os estados positivos, ignorando ou até mesmo aceitando e incorporando os estados negativos numa espécie de visão existencial corajosa. É verdade que essa posição é muito mais honesta do que as posições ingênuas da maioria das pessoas, que tratam a existência como um jardim das delícias terrenas abençoado por um Deus maravilhoso e bom. Contudo, apesar da honestidade, discordo no final das contas da visão corajosa.

Essa visão corajosa encontra em Nietzsche um de seus principais defensores. Como é que ele escreveu? Se um demônio nos visitasse durante a noite e nos dissesse que vivemos a mesma vida eternamente, do mesmo jeito, com as mesmas dores, caberia a nós não nos desesperarmos, mas abraçarmos o demônio e dizer para ele que estamos felizes, pois o correto é dizer sim para a vida, mesmo com todas as dores? Apesar da honestidade com relação à existência dos sofrimentos, fico do lado de Schopenhauer, para quem, se pudéssemos conversar com os mortos em suas tumbas e perguntar a eles se gostariam de viver novamente, a vasta maioria diria que não. Aliás, penso que mesmo Nietzsche aceitaria isso, visto que ele próprio admitia que não são todos os que têm coragem de dizer sim à vida. Entretanto, mesmo assim, discordo de Nietzsche. A falta de coragem aqui não é uma falha de caráter, mas manifestação de uma prudência básica.

E essa forma de pensar não é uma desistência covarde e odiosa contra a vida. Quem pensa assim não odeia a vida, nem corre em direção à morte, mas foge da catástrofe do nascimento, como descreveu Cioran. Ainda segundo ele, somos como náufragos presos num continente ardiloso e tentamos esquecer ao máximo a maior das catástrofes, aquela que nos trouxe ao mundo. Não odiamos a vida, pelo contrário, nós a amamos, Cabrera bem escreveu. Só que entendemos que, no final das contas, esse é um amor que não é retribuído, não realmente. A vida, ou melhor, a existência sensível tira tudo de nós, até não sobrar nada. Ao menos há a consolação de que ela acaba e não se estende num eterno definhar. Definhamos, sim, todos nós, até um limite no qual não aguentamos mais e sucumbimos.

Genocídios, ocupações militares e invasões imperiais são televisionados, ou melhor, passam pela nossa timeline nas redes sociais e imaginamos como chegamos até aqui e qual futuro pretendemos construir. A cacofonia produzida pelas inúmeras vozes dissonantes é enlouquecedora. Todos vendendo um amanhã maravilhoso, desde que os sigamos à risca. Idealistas de internet não percebem que a era das revoluções acabou. Só alguns desavisados barulhentos ainda acreditam na possibilidade de uma fraternidade universal dos homens imposta à base de tanques enviados por algum ditador bigodudo. Tão burros quanto, os saudosistas de um passado glorioso e estratificado não entendem que continuariam sendo, a vasta maioria deles, servos, mesmo se pudéssemos retornar ao seu querido medievo.

Mas nada que aconteça no futuro jamais justificará a morte de Kristen Salem, assim como nada, jamais justificará crianças e bebês serem queimados vivos na região do Levante — seja na antiguidade, seja agora. Eu me atrevo a dizer que nada justificará até mesmo as situações que levaram algumas pessoas ao longo de suas vidas a se tornarem monstros morais capazes de queimar crianças vivas, nem os acidentes que carbonizam centenas de pessoas em poucos instantes, como as pobres almas que estavam a bordo do voo da Air India que caiu pouco após a decolagem. Vítimas, algozes, acidentes, não importa a fonte da dor, nenhuma delas seria possível se os participantes não tivessem existido em primeiro lugar, se eles não tivessem passado pela catástrofe do nascimento. Portanto, eu respeitosamente, ou não tão respeitosamente assim, devolvo o bilhete metafórico a Deus, ou melhor dizendo, a Azathoth.

Bato nesta tecla frequentemente, e continuarei batendo, da mesma forma que outros batem em suas teclas utópicas ou distópicas. E, assim como eles fazem, também continuarei apelando aos autores que abriram os meus olhos. Meus olhos foram abertos para enxergar uma realidade aterrorizante, a realidade de que as dores do mundo nunca passarão, no sentido de que elas nunca deixarão de ter acontecido e terem sido horríveis. Nenhum milagre ou reconciliação no fim do mundo poderá tornar ok a carnificina que existe no nosso planeta há muito tempo. Nem Deus, nem o homem, conseguirão um dia limpar a mancha de sangue produzida por este campo de torturas e extermínio que flutua no espaço sideral em volta de uma estrela. É tolice acreditar que sim.

O ponto final do meu proselitismo sombrio é o seguinte: teria sido melhor se a Terra fosse incapaz de sustentar a vida, teria sido melhor se nenhuma criatura sensível tivesse existido. Nunca cansarei de afirmar esta boa nova. O globo terrestre é ele próprio um grande cemitério. Por isso digo que estou fora da corrida. Continuarei vivendo e tentando amar a vida, mesmo sabendo que ela não ama ninguém e nos suga até não haver mais nada para sugar. Também continuarei escrevendo sobre a filosofia da rejeição. Isso não é paradoxal. Ao contrário de descendentes de carne e osso, os textos não sofrem, mas, quem sabe, eles podem abrir os olhos de outros no futuro, assim como os textos de outros autores ajudaram a abrir os meus. Atingi a iluminação fajuta e falida possível de ser alcançada por um qualquer, oriundo de um país quente de terceiro mundo, que um dia teve a brilhante ideia de questionar a própria existência.

Uma passagem de A alquimia da felicidade, livro escrito no século XII pelo filósofo persa Abu Hamid al-Ghazali, me vem à mente:

Jesus (que a paz esteja sobre ele) viu o mundo revelado na forma de uma bruxa velha e feia. Ele perguntou a ela quantos maridos ela teve; ela respondeu que foram incontáveis. Ele perguntou se eles tinham morrido ou sido divorciados; ela disse que tinha matado todos. “Admira-me”, disse ele, “os tolos que viram o que você fez com os outros e ainda a desejam.”


por Fernando Olszewski