Tanatosfera
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A morte e o corvo, de Gustave Doré |
Embora não seja um termo técnico, é relativamente comum lermos e ouvirmos astrônomos e entusiastas da astronomia em geral se referirem a planetas desprovidos de vida como “planetas mortos”. É uma maneira informal de dizer que esses lugares não possuem as condições básicas para a existência do fenômeno da vida, apesar de que, em alguns casos, como em Marte por exemplo, as condições para vida talvez tenham existido há muitos milhões de anos atrás. Tirando o nosso planeta, todos os outros planetas e corpos celestes do nosso sistema solar e todos exoplanetas analisados até o momento não aparentam ser capazes de sustentar vida, nem mesmo microbiana.
Recentemente, um planeta a pouco mais de 124 anos-luz da Terra foi analisado por uma equipe multinacional através do telescópio espacial James Webb, e nele foram detectadas duas moléculas que só são produzidas por micróbios. Entretanto, os dados foram revistos depois por diversos outros cientistas e eles encontraram inconsistências na metodologia da equipe inicial, colocando em xeque a ideia de que as tais moléculas sequer estariam presentes na atmosfera daquele mundo. Aparentemente, o método utilizado acabou forçando a detecção desses compostos químicos mesmo que eles não estivessem presentes de verdade.
Mas ainda que a detecção tivesse ocorrido sem sombra de dúvida e isso confirmasse a existência de vida microbiana fora da Terra, ou até mesmo de vida multicelular complexa, a vida continuaria sendo um fenômeno bastante raro no universo. A vasta maioria dos corpos celestes continuarão não tendo a menor chance de produzirem ou sustentarem seres vivos em suas superfícies. Muitos planetas nem superfície têm, como no caso dos gigantes gasosos do nosso sistema solar, como Júpiter, Saturno e Netuno. Outros serão como Mercúrio, próximos demais de suas estrelas. Outros serão como Vênus ou Marte, planetas rochosos, porém inóspitos à vida por razões diversas. Outros, ainda, nem sequer orbitam estrelas, mas transitam a esmo no espaço interestelar, sendo frios demais.
O único lugar no universo que temos a certeza absoluta de haver vida é a Terra, o nosso planeta. É a única biosfera que conhecemos. É o único planeta que não é morto, segundo o linguajar comum. Porém, enquanto que os outros planetas podem ser todos mortos, no sentido de serem compostos de rochas, gases e química inorgânica em geral, é so na Terra que há, de fato, morte. Esses outros planetas nunca viveram em primeiro lugar. E se um dia viveram, como se pensa no caso de Marte, hoje já não vivem mais, logo não têm mais as condições de produzir o fenômeno da morte em si. Neles reina a paz, mesmo que estejam em estado de total e constante tempestade, como Júpiter. Não havendo seres sensíveis lá, a tempestade não tira a paz de ninguém.
A etimologia da palavra biosfera é simples. Ela junta duas palavras, bio, do grego bíos, que significa vida, e esfera. Biosfera, portanto, refere-se parte da esfera terrestre onde é possível existir vida. Muito acima da superfície e chegamos no espaço, onde não é possível haver vida. Mais abaixo e estamos no inferno de magma da crosta, onde a vida também não pode florescer. Gostaria de propor, então, um nome alternativo à biosfera para nos referirmos ao nosso planeta e outros corpos celestes que sejam capazes de sustentar a vida. O nome que proponho é tanatosfera: do grego thánatos, morte.
É somente na Terra que se morre o tempo todo, todos os dias. É somente na Terra que há centenas de trilhões de seres vivos prontos para o abate. É somente aqui que predadores perseguem e devoram dolorosamente suas presas confusas e apavoradas. Só aqui surgiram seres capazes de entrar em conflito uns com os outros, desde formigas batalhando com outras formigas e insetos, passando por grupos de chimpanzés disputando território, até humanos guerreando para assegurar a sua supremacia política e cultural. Leões que matam os filhotes de leoas solitárias como forma de assegurar que elas só perpetuarão o seu código genético. Somente aqui existe câncer e acidentes de trânsito. Desgraças só acontecem aqui e, talvez, em outras poucas tanatosferas universo afora.
Assim como todos os outros planetas do sistema solar e todos os exoplanetas do universo, a Terra nasceu do disco protoplanetário formado pela nebulosa solar que existia em volta de uma estrela durante a sua formação. Nesse caso, a estrela é o nosso Sol. Esse processo formou o planeta Terra há cerca de 4,54 bilhões de anos atrás. Pouco depois, ainda no sistema solar primitivo, um corpo celeste do tamanho de Marte colidiu com a Terra e dos detritos dessa colisão a Lua foi formada. Se houvesse vida incipiente antes da colisão, ela foi erradicada. Não se sabe ao certo quando e como ocorreu a abiogênese responsável pela cadeia temporal de seres vivos que desembocou em nós no presente, mas sabe-se que a vida existe aqui na Terra há pelo menos 4 bilhões de anos. Isso significa que a vida surgiu relativamente rápido depois da formação do planeta.
Ou seja: das primeiras moléculas orgânicas capazes de organização, consumo de energia e reprodução, até eu e você que lê ou escuta este texto, passaram-se 4 bilhões de anos. Durante a maior parte desse tempo a vida foi microbiana, unicelular. A vida multicelular, que permitiu a existência de animais sensíveis ao sofrimento e ao terror provocado pela dor e pela morte, talvez tenha surgido por volta de 1 bilhão de anos atrás. Já os animais existem há pelo menos 600 milhões de anos segundo os registros fósseis. É possível que tenham surgido algumas centenas de milhões de anos antes e deixado pouco ou nenhum registro de sua presença em rochas antigas. Mas praticamente todos os animais vivos hoje descendem daqueles que surgiram durante a chamada explosão cambriana, que ocorreu há cerca de 540 milhões de anos atrás.
Aqueles animais quase que certamente já tinham desenvolvido uma capacidade primitiva de sentir e de sofrer. Meras células podem até se afastar de estímulos nocivos, mas não há a sensação da dor, não há o pavor ou o desespero que antecede a morte. Já os animais complexos, dotados pela natureza de um sistema nervoso, sofrem. E quanto mais complexos são os animais, mais eles sofrem, numa sombria escala de dor e conhecimento que precede a morte. A tanatosfera é um gigantesco matadouro de seres que nascem para morrer. Sortudos são aqueles que não sentem isso com estímulos dolorosos, como no caso das plantas e fungos que, apesar de multicelulares e complexos, não foram amaldiçoados com um sistema nervoso.
Como escreve Cioran em Do inconveniente de ter nascido:
É preferível ser animal do que homem, inseto do que animal, planta do que inseto, e assim sucessivamente. A salvação? Tudo o que diminui o reino da consciência e lhe vem comprometer a supremacia.
Felizes são aqueles corpos celestes em que a vida foi capaz de gerar apenas vegetais. Mais felizes ainda são aqueles cujo o mineral prevalece sobre todo o resto. Esses talvez só percam para os corpos gasosos ou até mesmo para as estrelas, onde a vida é impossível. Todo antílope com a garganta cortada por um predador inconscientemente tem inveja da superfície do Sol, que queima a 5,5 mil graus celsius. Lá naquele inferno nada disso é possível. Também não são possíveis as alegrias e os prazeres da vida, é verdade. Mas, como Schopenhauer escreveu em seu Parerga e Paralipomena, parafraseando: sempre que nos questionarmos se os prazeres são maiores ou ao menos equivalentes às dores no mundo, imaginemos a sensação que uma presa tem ao ser devorada viva por um predador, e comparemos essa sensação com a do predador que a devora.
Na mesma obra, Schopenhauer expõe o sentimento daqueles que mais se sensibilizam ao ver toda essa carnificina:
Se imaginarmos, o mais amplamente possível, a soma total de miséria, dor e sofrimento de todos os tipos sobre os quais o Sol brilha em seu curso, admitiremos que teria sido muito melhor se tivesse sido tão impossível para o Sol produzir o fenômeno da vida na Terra quanto na Lua, e se a superfície da Terra, assim como a da Lua, ainda estivesse num estado cristalino.
Talvez a humanidade só acordasse caso um dia uma outra espécie tecnologicamente superior a nossa aterrizasse aqui, vinda de um mundo distante, e transformasse todos nós em gado para consumo. Seria tarde demais, sim, mas quem sabe ali entendêssemos finalmente o cruel e frio cálculo da natureza como expressão da vontade cega que permeia todo o cosmos. O que há é manifestação pura, sendo a razão humana uma entre várias expressões da vontade. Da mesma forma que hoje nos deliciamos com saborosos churrascos, amanhã podemos fazer parte da dieta de outra espécie à frente de nós na escala tecnológica. Já acontece, aqui ali, de sermos devorados por animais como tubarões, ursos e grandes felinos, mas consideramos isso como fatalidades pontuais, já que nos imaginamos no topo da cadeia alimentar, e essa dominância temporária nos dá uma falsa sensação de superioridade imbatível.
Para o indivíduo que é devorado por um tubarão numa praia ou em alto-mar, qualquer noção de superioridade humana é dissipada num único instante. Todos nós somos tão efêmeros quanto uma única joaninha que viveu há 50 milhões de anos atrás. Pior, nenhuma joaninha jamais teve o conhecimento que o mais imbecil dos humanos teve a respeito de sua própria dor e finitude. Portanto, não somos apenas efêmeros, mas efêmeros e profundamente conscientes da nossa situação. É daí que surge a necessidade de criarmos ilusões e de mudarmos o mundo através do trabalho e do desenvolvimento técnico. Quando paramos para pensar demais, ficamos à beira da loucura. Estamos, em outras palavras, ferrados. A escolha que nos resta é cair no abismo dançando e gerando novos desgraçados, ou cair no abismo tentando diminuir a miséria de nossos companheiros de dor, além da nossa própria, mesmo que só um pouco.
Para o indivíduo que é devorado por um tubarão numa praia ou em alto-mar, qualquer noção de superioridade humana é dissipada num único instante. Todos nós somos tão efêmeros quanto uma única joaninha que viveu há 50 milhões de anos atrás. Pior, nenhuma joaninha jamais teve o conhecimento que o mais imbecil dos humanos teve a respeito de sua própria dor e finitude. Portanto, não somos apenas efêmeros, mas efêmeros e profundamente conscientes da nossa situação. É daí que surge a necessidade de criarmos ilusões e de mudarmos o mundo através do trabalho e do desenvolvimento técnico. Quando paramos para pensar demais, ficamos à beira da loucura. Estamos, em outras palavras, ferrados. A escolha que nos resta é cair no abismo dançando e gerando novos desgraçados, ou cair no abismo tentando diminuir a miséria de nossos companheiros de dor, além da nossa própria, mesmo que só um pouco.
Causa uma certa repugnância a ideia de que não habitamos uma biosfera, mas uma tanatosfera. Entretanto, uma é o espelho da outra. Não há a biosfera sem também haver a tanatosfera. São dois lados de uma única moeda. Os ditos planetas mortos, mesmo que um dia tenham tido vida e morte, hoje não têm nada, logo não são nem biosfera, nem tanatosfera. Nossa mãe Gaia, contudo, é geradora e tomadora, ela dá à luz e executa, sem dó e sem piedade. E que se danem os seus sonhos. Os meus também. Mas nada disso é culpa de Gaia. Ela não existe. A Terra é apenas uma vítima das circunstâncias, como nós. Nossa mãe Terra é somente uma esfera rochosa gigantesca que tinha o tamanho certo, os compostos químicos certos e orbitava a uma distância mais ou menos certa de uma estrela de tamanho relativamente ideal para o surgimento e manutenção da vida.
O resto é história. E cá estamos. Flutuando no espaço em volta do Sol, enquanto todo o sistema solar flutua ao redor da Via Láctea, nossa galáxia. Olhamos para as estrelas sonhando em não sermos os únicos. Queremos partilhar do milagre que é ser consciente do universo, de sermos o universo olhando para si mesmo. Queremos muito não estarmos sozinhos aqui. Há um desespero nesse desejo de companhia. É quase como se quiséssemos ter com quem partilhar a dor. Não é possível, pensamos, que sejamos tão azarados e somos os únicos nesta pocilga estelar. Parece que precisamos de camaradas no infortúnio. Não basta haverem outros como nós, queremos outras consciências que surgiram em outras rochas espaciais flutuantes, outras tanatosferas. Queremos que esses outros azarados nos contem como foi dura a sua trajetória ao longa da história, assim como foi a do homem.
É também daí que surge o desejo em criar uma consciência artificial. Já estamos cansados da mesma e enfadonha companhia humana, mesmo quando ela é brilhante e partilha do nosso marasmo e desespero perante o vazio da existência e das dores que tornam a vida malignamente inútil. Precisamos descobrir alienígenas inteligentes ou então criar novas mentes. Ingenuamente acreditamos que esses outros seres inteligentes podem nos dar alguma resposta, uma perspectiva diferente sobre o problema que é nascer e cair no tempo. Novamente, não queremos definhar somente na companhia de outros como nós. Cansamos de sofrer apenas com outras pessoas que se parecem conosco, que compartilham da mesma árvore genealógica que remonta a 4 bilhões de anos atrás.
A dor e a morte precisam da vida para existir. Hoje, uma espécie de ser vivo é até mesmo capaz de catalogar milhões de asteroides que giram em torno do sistema solar com o objetivo explícito de detectar previamente possíveis impactos com o planeta e até mesmo desenvolver estratégias para defendê-lo. Em 2022, a missão DART (Double Asteroide Redirection Test) da NASA colidiu uma espaçonave com o asteroide Dimorfos. Isso alterou levemente a sua trajetória ao redor do Sol, o que provou que, dado tempo o suficiente, a humanidade é capaz de salvar a si mesma dessas ameaças estelares. O H. sapiens tem cerca de 300 mil anos de existência segundo os registros fósseis, e nesse tempo conseguimos fazer o que os dinossauros jamais foram capazes de fazer em 165 milhões de anos: salvar-se da extinção por conta de impacto catastrófico.
Porém, ao salvar a vida, salvamos também a dor e a morte. Dor e morte não apenas parasitam a vida, elas são suas irmãs. A ideia tola de filósofos contemporâneos como Nick Bostrom, de que a morte é como um dragão que um dia podemos derrotar através da tecnociência, é tão patética quanto é infantil. Isso porque mesmo se conseguíssemos fazer com que fôssemos incapazes de envelhecer, ainda continuaríamos expostos a outros atritos existenciais capazes de nos incapacitar ou matar. Guerras, acidentes e catástrofes continuariam existindo. A entropia continuaria aumentando no universo. Até se fosse possível transferir nossas consciências para o digital, atritos continuariam. O digital necessita de suporte físico em algum lugar e esse se degrada com o tempo.
Essas constatações não são as constatações de jovens imaturos que pretendem chocar, mas de pessoas sóbrias que entendem que tudo o que fazemos e construímos, todas as famílias, todos os amores, todas as cidades, todas as nações, todos os impérios, todas as religiões, tudo é efêmero e morrerá um dia, e sua morte não será indolor, mas traumática, deixando apenas silêncio para trás. O que é imaturo e pretende chocar é a atitude de que podemos e devemos continuar e perseverar para sempre, que fomos dotados por Deus ou pela natureza — o que dá no mesmo — de mentes brilhantes o suficiente para enganar o inevitável e doloroso fim.
por Fernando Olszewski