O Matadouro Chamado Brasil, parte II: The Purge

Estão matando pessoas por prazer no Espírito Santo. Esse é o resultado da greve da polícia militar naquele estado.1, 2, 3 Vive-se uma situação parecida com a do filme The Purge e suas continuações. A premissa do filme (sem spoilers) é a seguinte: durante uma noite do ano, todo e qualquer crime é tolerado. Ou seja, muitas pessoas escolhem essa noite para matar por prazer.

Mas não vamos tapar o sol com a peneira e fingir que matar por prazer é algo incomum na nossa terra. A verdade é que muitos assaltantes já matam suas vítimas por prazer—e para não serem reconhecidos. Não falo aqui das pessoas que reagem. Qualquer um, mesmo sem reagir, está sujeito a morrer em um assalto porque a vida no Brasil não vale nada. A razão da vida não valer nada aqui é porque nos preocupamos com problemas de primeiro mundo sem nunca termos sanado os de terceiro.

Um exemplo de vítima que morreu sem reagir aconteceu esta semana na Tijuca, aqui no Rio de Janeiro. Um motorista do Uber foi baleado ao ter seu carro roubado.4 Esse tipo de coisa virou rotina. O Rio de Janeiro e todos os estados que sobem a costa do Brasil até o nordeste e o norte estão putrefatos em violência extrema. Não acredita em mim? Veja os dados.5, 6 Se a PMERJ entrar em greve será ainda pior do que no ES.

Vou contar uma anedota sobre reação. Certa vez, durante uma aula inaugural, ouvi um professor falar que assaltantes profissionais—que, segundo ele, são geralmente ligados ao que chamou de "grupos sérios"—não matam suas vítimas, nem mesmo quando elas esboçam a reação de fugir. Ele, inclusive, disse que já fez isso durante um assalto à mão armada, enquanto dirigia seu carro. Bom, eu já fui assaltado à mão armada, a pé, de noite, numa viela, e não tive a sensação de que sairia ileso se tentasse correr. Também fui assaltado por três caras do meu tamanho que me agrediram fisicamente antes levar meu dinheiro. Infelizmente, no Rio, esse tipo de romantização de certos tipos de crimes e grupos é recorrente. Creio que seja a ideologia fritando a mente das pessoas.

Dizer que o Brasil é um país desigual, com pobreza, cultura de discriminação e marginalização social, e que todos esses fatores contribuem para levar algumas pessoas ao mundo do crime—um mundo que oferece algo a mais do que elas têm, como status e dinheiro—tudo bem. Até porque acredito que seja, pelo menos parcialmente, verdade. Mas romantizar? Idealizar? Não me faça rir.

Aqui no Brasil, aqueles que preparam o "futuro da nação", os professores de ensino fundamental, e aqueles que nos protegem, os policiais, são tratados como lixo. Ganham um salário médio patético se comparado à utilidade que proporcionam. A sociedade parece não entender que com uma remuneração ruim, esses profissionais—que são básicos para uma civilização—têm poucos incentivos para dar o melhor de si.

No meio desse caos, ideais divergentes ainda fazem o desfavor de colocarem uma categoria contra a outra. De um lado, uns demonizam os policiais e qualquer outra força coercitiva do estado de direito, necessárias em uma sociedade com regras, em uma demonstração suicida de anti-autoritarismo. Do outro, exaltam a figura da autoridade forte e truculenta, beirando o fascismo, enquanto zombam de professores que demandam melhores salários.

Policiais e professores do ensino fundamental deveriam ganhar muito mais do que ganham. Dizer isso é dizer o óbvio ululante. Mas já vi uma quantidade significativa de pessoas próximas falando "ninguém mandou estudar X pra dar aula pra criança", referindo-se ao salário baixo dos professores, como se fosse certo eles ganharam tão mal. Que piada. Vejam o salário médio dos professores nos países ricos que tanto admiramos e comparem com o nosso.7, 8

Por que comecei a falar dos professores, em especial os professores do nível fundamental, se o foco do texto era para ser a violência? É por pensar que se melhorarmos o salário deles (e a educação em geral) a violência diminuirá do dia para a noite? No longo prazo, talvez sim. Há uma boa chance. Mas falo aqui dos professores apenas para fazer um paralelo com os policiais. Apesar da natureza do seu trabalho não ser a mesma, há uma similar falta de reconhecimento para com as duas profissões neste maldito país—pode ter certeza que se deuses existem, somos amaldiçoados.

Noto que, geralmente, quando uma pessoa se preocupa demais com uma dessas classes, preocupa-se de menos com a outra. Todos nós sabemos os estereótipos: o esquerdista engajado, bacana e "prafrentex", vai apoiar os professores em tudo o que eles demandarem, mas cairá de pau na polícia, enquanto o conservador de direita, "temente à Deus", vai apoiar incondicionalmente qualquer tipo de truculência policial, mas criticará professores e os chamará de comunistas por demandarem melhores condições. De novo, a ideologização excessiva de tudo. Um saco. Além de ser burrice, porque ambas as classes estão no mesmo barco de furado de merda: prestam um serviço básico à civilização e são criminalmente mal remuneradas no Brasil (e olha que não estou contando com os salários atrasados...)

Segurança pública é função do Estado. Talvez a função mais básica, já que o direito à proteção coletiva é a base do contrato social. Isso é algo que, tirando alguns tresloucados, até os liberais, defensores do Estado mínimo entendem. Até eles percebem que uma força policial que ganha pouco e é mal equipada é receita para o desastre. Então, qual é a dificuldade de se resolver essa situação terrível?

Penso que a dificuldade está em coisas como, por exemplo, querer resolver a questão da pichação antes de criarmos um ambiente de reais oportunidades para as massas que se replicam na pobreza. Talvez se houvesse oportunidades para as pessoas saírem do ciclo de pobreza em que vivem, não houvesse razão, nem sequer tempo, para elas quererem pichar ou assaltar ou fazer o diabo a quatro. Novamente: a dificuldade é querermos resolver problemas de primeiro mundo antes de resolvermos os de terceiro.

Há quem fale que policiais militares em greve não têm honra. Esquecem que honra não põe comida na mesa, nem paga conta. Depois reclamam de desvios, corrupção e má qualidade. O quão abjeta é a mentalidade e o intelecto de uma pessoa que não vê a clara relação de causa e consequência que está acontecendo aqui? E digamos que a remuneração média de um policial de rua seja de bom tamanho: mesmo assim, em alguns estados, muitos policiais estão sem receber há meses. Isso é sacanagem.

Mas não haverá solução real. No máximo existirão soluções parciais, meia-boca. Quem é otimista, no Brasil, está completamente de brincadeira consigo mesmo. Além disso, como já falei, há a idealização política vinda de todos os lados, que coloca pessoas que deveriam se unir umas contra as outras. Enquanto nós brigamos para ver quem está certo, tem ex-governador preso com centenas de milhões na Suíça, estados da federação encontram-se falidos, um ex-presidente faz discurso político no funeral da esposa, e um ex-presidente do Banco Central diz que o Brasil não é mais um trem desgovernado.

O Brasil continua sim um trem desgovernado. Nunca deixou de ser. E ainda me pedem para ter esperança. Esperança? Mesmo se tudo estivesse indo bem ainda argumentaria não devemos tê-la, que é irrelevante. Só que nada vai bem, nem parece que irá melhorar. Hoje recebi uma brincadeira de amigos dizendo que a PMERJ não entrará em greve, portanto poderíamos ficar tranquilos, já que os assaltos continuariam no nível normal, já bastante elevado. Hilário. Tragicômico. Para se ter uma noção, repito o que escrevi na parte I: a média no Brasil é de 32 assassinatos por 100 mil habitantes.9 Isso sem greve de policiais. Em comparação, a média no Chile é de 4 assassinatos por 100 mil habitantes. No Canadá, são apenas 2. 10

Talvez a humanidade mostrasse sua verdadeira face no Brasil caso todas as polícias de todos os estados entrassem em greve. Seria The Purge tendendo ao infinito. O homem finalmente livre para fazer o que quisesse, mas da maneira que Hobbes nos ensinou:

Bellum omnium contra omnes.

Não será algo belo de se ver.