Precisamos falar sobre o antinatalismo

Pus-me, então, a considerar todas as opressões que se exercem debaixo do sol. Eis aqui as lágrimas dos oprimidos, sem ninguém para consolá-los. Seus opressores fazem-lhes violência e ninguém os consola. E julguei os mortos, que já faleceram, mais felizes que os vivos, que ainda estão em vida; porém, mais feliz que eles é aquele que não chegou a nascer, porque não viu o mal que se comete debaixo do sol.—Eclesiastes, 4:1-3
Pintura de Erik Thor Sandberg

INTRODUÇÃO
Antinatalismo é a posição filosófica que atribui um valor negativo ao nascimento. Mas essa definição minimalista é problemática, já que a partir dela qualquer um que acredite que nascer seja um malefício pode ser considerado um antinatalista — inclusive pessoas que desejam procriar apesar de considerarem a existência algo ruim, o que é no mínimo inconsistente da parte delas.

No geral, antinatalistas tendem a não procriar, nunca, e aqueles que têm filhos normalmente adotaram a posição após tê-los. Nascer, no contexto antinatalista, é sinônimo de passar a existir. Portanto, antinatalistas consideram passar a existir como sendo um evento negativo. Para o antinatalista, a procriação é um mal que deve ser evitado, um erro. Neste texto, tentarei expor da maneira mais simples possível alguns dos principais raciocínios que justificam o posicionamento.

Ao longo da história, alguns poetas e escritores — Abu ' Ala Al-Ma'arri (973-1057), Heinrich Heine (1797-1856), Machado de Assis (1839-1908), Samuel Beckett (1906-1989), Fernando Vallejo (1942), Thomas Ligotti (1953) —, filósofos — Arthur Schopenhauer (1788-1860), Peter Wessel Zapffe (1899-1990), Emil Cioran (1911-1995) — e movimentos religiosos — budismo (séc. V a.C.), marcionismo (séc. II d.C.), gnosticismo (séc. II d.C.), catarismo (séc. XI d.C.) — pregaram explicitamente a ideia de que a existência, pelo menos neste universo material decadente em que vivemos, não é uma bênção, mas sim o oposto, e que o melhor seria se nenhum de nós tivesse existido. Citei aqui alguns nomes famosos, mas tiveram outros.

No caso de alguns nomes e religiões que citei, há também a crença de que, assim como nós, os animais estariam melhores se nunca tivessem existido. Certamente era assim que Arthur Schopenhauer — patrono do pessimismo filosófico contemporâneo — pensava. Não foi à toa que escreveu:
Se imaginarmos, tanto quanto for possível, a soma total de angústia, dor e sofrimento de cada espécie que vive na face da Terra, teremos de admitir que teria sido muito melhor se o Sol tivesse sido capaz de produzir o fenômeno da vida na Terra em tão fraca quantidade como na Lua; e se, aqui como lá, a superfície fosse de uma calma cristalina.
PESSIMISMO NA RELIGIÃO
Mais de quatrocentos anos antes de Cristo, Sidarta Gautama, o Buda, teria ensinado a primeira nobre verdade: a existência do sofrimento.
Esta, bhikkus, é a nobre verdade do sofrimento: nascer é sofrimento, envelhecer é sofrimento, doença é sofrimento, morte é sofrimento; união com aquilo que não agrada é sofrimento; separação daquilo que é agradável é sofrimento; não conseguir aquilo que se quer é sofrimento.
A partir daí, o Buda desenvolve outras três nobres verdades e um caminho para a libertação. Este não é um texto sobre budismo e religião, mas, apesar disso, acho válido estressar que a visão do Buda era clara: este universo onde nós, seres sencientes (capazes de sentir prazer e dor), vivemos, é um lugar indesejável, chamado Samsara. Aqui ficamos em um eterno ciclo de morte e renascimento, sempre sofrendo. Por essa razão, devemos tentar escapar, atingindo o Nibbana, que é a cessação dos desejos que nos prendem a este universo.

Outras religiões e seitas como o marcionismo, variadas formas de gnosticismo e o catarismo, pregavam que fomos aprisionados no universo material por um deus mal ou ignorante, chamado de Demiurgo, e que para nos salvar deveríamos abraçar o deus maior, a fonte divina que sempre existiu — diferentemente do Demiurgo, que passou a existir por conta de algum distúrbio nos reinos celestes (as histórias, dependendo da seita ou do subgrupo, variam neste ponto). Em boa parte dos casos pregava-se a não reprodução, já que ter um filho era equivalente a aprisionar mais um alma neste mundo decadente.

O PANO DE FUNDO DE TODA A VIDA
Embora fosse ateu e averso à religiões, Schopenhauer admirava o budismo por razões óbvias: sua visão de mundo se encaixava com algumas noções pessimistas dessa antiga religião, mas sem o apelo ao sobrenatural. Para esse e outros filósofos pessimistas, há um problema estrutural na existência da vida. Não é uma mera questão de sofrimentos que podem ser resolvidos com o passar dos séculos, através do progresso humano. Não, para esses pensadores e escritores, a vida é problemática em si, desde os primeiros organismos que habitaram a Terra.

A existência de qualquer organismo não é nada mais do que o consumo de nutrientes—sendo que em boa parte esses nutrientes vêm do consumo de outras vidas — e reprodução. A sobrevivência só é necessária até o ponto da reprodução, ou até se ter garantia de que os descendentes conseguirão se virar por conta própria, como no caso de alguns animais — nós, por exemplo, cuidamos dos nossos filhos até eles conseguirem “andar com as próprias pernas”, como costuma se dizer.

É este o pano de fundo de toda a vida, desde as estrelas do mar, os tubarões, passando pelas gazelas, ursos polares, até chegar nos seres humanos: estamos presos na programação de termos que satisfazer necessidades para nos manter vivos, apenas com o objetivo de perpetuar nosso material genético. A força motora da vida são os seus aspectos negativos: a fome — a principal força motora, a que todos os seres vivos têm em comum de uma forma ou de outra —, o tédio, o desconforto e as vontades.

Se existissem apenas seres incapazes de sentir dor, como plantas, fungos e (talvez) alguns tipos de animais, talvez esse jogo sem vencedores — afinal, toda a vida um dia irá acabar, quer a gente queira ou não — não fosse tão ruim. Continuaria sendo ineficiente mas, quem sabe, não carregaria o mesmo peso. Mas a realidade não é essa. Nesse pano de fundo da vida, que por si só já é negativo, habitam seres sencientes, capazes de sentir prazer, mas também capazes de sentir dor, sofrimento e tristeza. No caso dos seres humanos, sentimos tudo isso e mais um pouco.

Alguém pode responder o seguinte: “Não tem problema algum! Basta tentarmos levar uma vida onde a soma das coisas boas, dos prazeres, é maior do que a soma das coisas ruins.”

Primeiro: o pano de fundo da nossa existência já é negativo por si só. Tente ficar sem comer. Depois, tente não fazer nada. Apenas existir não nos basta, temos a necessidade de nos alimentar e, depois, satisfazer inúmeras vontades. Quando o alimento já foi assegurado, no caso de alguns animais e de nós humanos, ainda há o tédio e o desconforto. E, no caso exclusivamente humano, temos o problema da completa falta de um significado maior para as nossas vidas.

A tese do filósofo Peter Wessel Zapffe é de que os seres humanos são animais que se tornaram inteligentes demais para o próprio bem. Acabamos, por conta disso, procurando um significado em algo que não existe: a nossa existência. Somos, por essa definição, seres trágicos. Segundo ele, temos quatro mecanismos para lidar com a falta de significado da existência: isolamento (afastar a mente de qualquer contemplação da nossa natureza trágica), ancoragem (fixar nossos pensamentos em algo: família, ideologia política, religião), distração (viver em busca de entretenimento) e sublimação (usar, por exemplo, a arte como forma de criar algo positivo neste universo cruel e sem sentido).
De acordo com a minha concepção da vida, decidi não trazer crianças ao mundo. Uma moeda é examinada, e só depois de cuidadosa deliberação é dada a um mendigo, enquanto que uma criança é jogada na brutalidade cósmica sem hesitação. —Peter Wessel Zapffe
Ao estudarmos Zapffe, podemos ver que nós temos a necessidade de inventar um propósito maior para evitarmos o confronto com a nossa natureza trágica e sem sentido. Ele pode ser religioso, ideológico, particular ou alguma outra coisa qualquer. Apenas existir, comer e saciar vontades básicas não nos basta.

Segundo: uma das críticas ao antinatalismo — e ao pessimismo filosófico em geral — é de que não é possível medir objetivamente todo o prazer e a dor do mundo para sabermos qual dos dois é maior. Quando dizem isso, fica subentendida a possibilidade de se ter um mundo onde há mais prazeres do que dores.

De fato, para alguns indivíduos, é possível se ter uma vida com mais prazer do que dor. Filhos de pais bilionários têm ao menos a possibilidade de viverem vidas mais prazerosas do que doloridas. Mas essa nem de longe é a realidade para a maioria. E mesmo que fosse, ainda há o problema de que o pano de fundo da existência é negativo por definição, antes de qualquer possibilidade de cálculo.

Existimos para saciar necessidades e vontades eternas. Os prazeres que temos são apenas a negação de alguma privação anterior. Negamos a fome comendo. Negamos o tédio nos entretendo. Negamos o sofrimento buscando ilusões. Mas a saciedade dura pouco tempo. No final das contas, nunca estamos plenamente satisfeitos e não há um sentido maior para tudo isso. Essas coisas independem da nossa condição social ou bem-estar material, e nenhuma tecnologia mágica futura será capaz de alterar essa definição da vida. Mesmo se um dia conseguirmos curar toda a dor física, ainda correremos atrás de um significado inexistente.

Antes de continuar, preciso falar brevemente sobre o uso das palavras ética e moral. “Moral” é apenas a tradução latina da palavra grega “ética”. Com o passar dos séculos algumas diferenças foram notadas e até inventadas, mas em filosofia, atualmente, os termos são usados indistintamente, pois não há um consenso sobre a existência de uma grande distinção entre eles. Por exemplo, diz-se que, na tradução da palavra grega “ética” para o latim “moral”, parte do significado foi perdido, ou então que outros significados foram adicionados.

Alguns falam que a ética significaria tanto a questão da ação interior, das intenções, quanto a ação correta perante o grupo, enquanto moral focaria apenas na questão do “agir correto perante o grupo”. Isso é engraçado, porque já vi pessoas sustentando que a palavra moral tem um significado oposto, como podemos observar naquele ditado corriqueiro: “ética é fazer a coisa certa quando os outros estão observando, moral é saber o certo quando ninguém está olhando”, o que implicaria que a moral seria uma sabedoria interior do que é certo e errado, ou seja, uma ideia universal de certo e errado.

No final, tanto faz. Ética (filosofia moral), é o estudo que sistematiza, defende e recomenda conceitos de certo e errado, do que é moral ou não. Se for para diferenciar, podemos dizer que ética seria o estudo das regras de certo e errado, enquanto a moral seria a sua prática. Mesmo assim, não me preocuparei em fazer uma distinção entre os termos aqui. Ela não é necessária.

SERIA MELHOR NÃO TER EXISTIDO?
Dentro do debate ético sobre se é certo ou não trazer novas pessoas à existência, o filósofo sul-africano, David Benatar desenvolveu um argumento chamado comumente de “assimetria de Benatar”. Ele é postulado da seguinte forma:
O argumento que vir à existência é sempre um mal pode ser resumido da seguinte maneira: tanto as coisas boas quanto as ruins acontecem apenas com aqueles que existem. Entretanto, há uma crucial assimetria entre as coisas boas e ruins. A ausência de coisas ruins, como a dor, é boa mesmo quando não há ninguém para aproveitar essa benesse, enquanto a ausência de coisas boas, como o prazer, só é uma mazela quando alguém é privado delas. A implicação disso é que evitar as mazelas por nunca ter existido é uma vantagem real sobre a existência, enquanto que a perda de algumas benesses por não existir não é uma real desvantagem sobre nunca ter existido. 
Há alguns problemas com essa argumentação que já foram notados por outros filósofos antinatalistas, em especial, o filósofo da Universidade de Brasília, Julio Cabrera.

Cabrera afirma que o argumento formal, que utiliza a valoração acima, não se sustenta, já que ela pode ser bastante questionada, principalmente a parte da “assimetria”. Afinal, se a pessoa X nunca existe, podemos perguntar: ausência de dor é boa para quem? e ausência de prazer é não ruim para quem? Também podemos argumentar que a ausência de prazer pode ser considerada ruim, desfazendo a assimetria. Enfim, há uma série de críticas ao argumento.

Contudo, Cabrera também diz que se utilizarmos o que ele chama de argumentos materiais, a assimetria é útil. A assimetria por si só não demonstra que não existir não causa mal (e que, pelo contrário, é um benefício), mas ao sustentarmos ela com evidências materiais, ela acaba se tornando menos sujeita a argumentos contrários.

Os argumentos materiais são: a vida humana é muito ruim porque estamos sempre perturbados com aborrecimentos, devorados por desejos insaciáveis e amedrontados pela falta de sentido da vida—ou seja, são bem próximos daquilo que chamei de “pano de fundo de toda a vida”. O argumento formal é aceitável somente quando percebermos essas coisas. Somente ao observarmos que até a menos dolorosa das vidas possui essas características podemos aceitar que é melhor não existir — o que significa não sentir nem dor, nem prazer.

O preço da não existência seria muito alto se o que chamamos de “dor” fosse apenas um dedão machucado, ou um cotovelo ralado. Mas ao observarmos o pano de fundo da vida, os argumentos materiais e outros, não existir deixa de ser um preço alto e torna-se a opção mais favorável. Da mesma forma, podemos dizer o seguinte: se precisamos existir nessas condições negativas para sentir os prazeres da vida, o preço é muito alto — seria melhor nunca ter nascido.

É importante estressar que o argumento trata de iniciar uma nova vida e não encerrar uma vida já existente. Antinatalismo não é uma filosofia que trata de suicídio. Benatar argumenta que algumas vidas certamente seriam beneficiadas com a morte (exemplo: casos de pacientes terminais com dores extremas), mas que a maioria das vidas devem ser continuadas até seu inevitável fim.

Contudo, alguém pode questionar a validade das evidências materiais, do que chamo de pano de fundo negativo da vida, e dizer que antinatalistas sofrem de um viés pessimista injustificado. Pessoas que pensam dessa forma tendem a achar que a maioria dos seres humanos são realistas, e apenas uma pequena parcela da população é pessimista, enquanto outra pequena parcela é otimista. Mas isso não é verdade.

Não podemos simplesmente perguntar para a maioria das pessoas o que elas pensam da vida e esperar um resultado correto. A observação do pano de fundo negativo da vida nos ensina que estamos sempre tentando saciar alguma vontade, desde a mais básica e necessária (comida), até a mais supérflua (viagens internacionais). Esse mecanismo, longe de ser algo que deixa a maioria das pessoas deprimidas, é viciante. Nós queremos correr atrás de algo, porque esse é o estado default da vida. Mesmo antinatalistas e pessimistas filosóficos experimentam esse vício — afinal, são seres vivos.

Portanto, perguntar diretamente para as pessoas “Viver é uma dádiva?” é equivalente a perguntar para uma pessoa intoxicada, em uma festa, se ela gosta do efeito do álcool. Na maioria dos casos a resposta será “sim”, mesmo se ela estiver triste, pois não considerará o álcool como culpado da sua tristeza, mas sim algum fato ruim pela qual ela passou, ou ainda passa. É no dia seguinte, durante a ressaca, que a pergunta deve ser feita.

Ainda há o problema de que a maioria das pessoas sofre de um viés otimista. Sim, a maioria de nós não é realista, mas otimista, porém não fazemos a menor ideia disso. Há estudos que demonstram que 80% da população possui uma visão rosada das coisas. Elas acham que tudo tende a dar certo, que terão boas carreiras, que não sofrerão de câncer e que são melhores motoristas do que a média—o que é matematicamente impossível. Somado a isso, existe a hipótese do realismo depressivo: indivíduos depressivos tendem a realizar inferências mais realistas sobre o mundo do que indivíduos sem depressão.

UMA QUESTÃO ANTIGA
Ao começar seus estudos, Friedrich Nietzsche era um discípulo de Schopenhauer. Ele, porém, tornou-se contrário ao “pessimismo da fraqueza” de Schopenhauer. Considerava o pessimismo filosófico deste último — um pessimismo que leva à negação da vontade de viver, compatível com o antinatalismo — como um luxo da sociedade moderna, confortável e decadente. Já escutei isso de algumas pessoas: “você só consegue pensar assim pois tem uma vida razoavelmente confortável.”

De fato, se observarmos os pensadores e questionadores de eras passadas, especialmente na Grécia antiga, eles só tinham tempo para ficar pensando em filosofia porque havia uma população de escravos trabalhando para prover seus confortos. Porém, Epiteto, famoso filósofo estoico, foi um escravo que sofreu torturas nas mãos de seu senhor — o estoicismo é uma filosofia que, de certa forma, tangencia o pessimismo, muito embora não abrace o antinatalismo. Abu ' Ala Al-Ma'arri, poeta sírio do século X d.C., era cego, vivia como um asceta, e defendeu uma visão extremamente pessimista.

Mesmo que o pessimismo e o antinatalismo fossem coisas que só um indivíduo de vida confortável pudesse pensar a respeito, é evidente que ambos os posicionamentos filosóficos foram pensados no mundo antigo — não é algo inventando na “decadente” sociedade moderna, cheia de confortos. A citação bíblica (Eclesiastes 4:3) com a qual iniciei este texto é um exemplo de pensamento pessimista e antinatalista no mundo antigo. A primeira nobre verdade do budismo é um posicionamento pessimista a respeito da realidade deste mundo, e foi expressa no século V a.C.. Da Grécia antiga, temos a Sabedoria de Sileno, que afirma, parafraseando e resumindo:
A melhor coisa para um homem é não nascer.
A ÉTICA DA PROCRIAÇÃO
Partindo do que foi falado até agora, procriar é errado. Isso será verdade independente da pessoa assumir uma ética naturalista — um tipo de realismo moral que diz que podemos derivar o certo e o errado a partir das observações que fazemos do mundo natural — ou dela adotar uma postura de ficcionalismo moral — um tipo de anti-realismo moral onde as noções de certo e errado são consideradas ficções humanas úteis para a vida. Dentro das premissas apresentadas aqui, a única maneira de se considerar a procriação como algo válido é adotando a postura do niilismo moral, onde certo e errado são apenas convenções humanas inúteis que podem ser completamente ignoradas.

Apenas um niilista moral não se sentiria responsável em colocar alguém em uma situação de risco. Quando se aceita que o pano de fundo da vida é negativo — vontades eternas insaciáveis, busca por um significado inexistente —, que o problema da nossa existência é estrutural e não apenas uma questão de sofrimentos que podem ser evitados — como quebrar o braço ou pegar um resfriado forte —, percebe-se que, quando criamos uma nova vida, estamos sujeitando alguém que não pediu para nascer à todas essas coisas. É uma imposição, muito embora o ser não existisse quando a decisão de criá-lo foi tomada. Segundo as éticas antinatalistas, ter um filho não é um ato de amor e doação, como muitos repetem sem pensar, mas de egoísmo — não necessariamente um egoísmo consciente e ativo, mas inconsciente e impulsionado por nossa biologia.

Não apenas isso, é também uma roleta russa:
Se você está tendo dificuldade em fazer a conexão entre os resultados do mundo real e o seu desejo de ter filhos, tente olhar para o mundo de uma nova maneira. Quando alguém do seu trabalho perde o emprego, imagine isso acontecendo com a criança que você tanto quer ter. O divórcio feio é o filho de alguém, ambos. O reporter noticiando o estupro, aquilo é o bebê de alguém, tanto o estuprador quanto a vítima. O acidente de carro que você acabou de passar na estrada, o limpador de banheiro que ganha salário mínimo, o homem morrendo de câncer no hospital, o caixão sendo colocado na cova. Se eu fosse prover uma lista exaustiva, ela iria encher o livro todo, mas prefiro que você faça sua própria lista — jogue esse jogo por uma semana e ele quebrará sua visão rosada das coisas. Não é algo feliz, mas é honesto. 
Uma crítica ao antinatalismo diz que ele não passa de uma forma de niilismo. Outra diz que, apesar de todas as dores e sofrimentos, temos a obrigação de continuar a espécie humana. Quanto à primeira, antinatalistas podem ser considerados “niilistas existenciais” por não acreditarem que há um sentido maior  para a existência — não há sentido algum e não temos como inventar um que nos satisfaça. Há apenas um sentido baixo para a vida: consumo, reprodução e morte, coisas que se repetem em um ciclo eterno, não interessando o sofrimento que isso possa causar aos seres vivos. Moralmente falando, entretanto, não são niilistas.

Quanto à segunda crítica: não temos nenhuma obrigação de continuar a espécie indefinidamente. O universo estava “bem” antes de existirmos e continuará no mesmo percurso depois de nossa extinção. Se há alguma obrigação ética, dado o fato de que a vida é sofrimento—algo que a maioria das pessoas infelizmente não percebe por causa do viés otimista —, ela é justamente o contrário: deveríamos parar de nos reproduzir.

por Fernando Olszewski

Referências:
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. ANSON, Binh. Samyutta Nikaya. Translated from the Pali by Bhikkhu Bodhi. Disponível em: https://www.budsas.org/ebud/ebsut001.htm.
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. BARNSTONE, Willis; MEYER, Marvin. The Gnostic Bible: gnostic texts of mystical wisdom from the ancient and medieval worlds. Boston & London: Shambhala, 2011.
. RUNCIMAN, Steven. The Medieval Manichee: a study of the christian dualist heresy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
. BENATAR, David. Better Never to Have Been: the harm of coming into existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.
. CABRERA, Julio. Quality of human life and non-existence. Revista Redbioética, S.l., v. 1, n. 3, p. 25-35, jan. 2011. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/15458/3/ARTIGO_QualityHumanLife.pdf.
. NIETZSCHE, Friedrich. Birth of Tragedy & Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
. SMITH, Martin. No Baby, No Cry: Christian Antinatalism. S.l.: Createspace Independent Publish Platform, 2013.