O Deus mau

Saturno devorando seu filho, pintura de Peter Paul Rubens

Começarei este texto citando um longo trecho retirado do livro Le mauvais demiurge (O malévolo demiurgo, em tradução livre), de Emil Cioran:

É difícil, é impossível acreditar que o Deus Bom — o Pai Nosso —, esteve envolvido no escândalo da Criação. Tudo indica que Ele não tomou parte nela, que ela é obra de um deus sem escrúpulos, um deus feculento. A bondade não cria, não possui imaginação; e a imaginação é necessária para criar um mundo, por mais malfeito que seja. No mínimo, é preciso ter uma mistura de bondade e maldade para se produzir uma ação ou um trabalho. Ou um universo. Se considerarmos o nosso, é muito mais fácil traçar suas origens até um deus suspeito do que a um deus honrado.
O Deus Bom certamente não foi equipado para criar: Ele possui tudo menos a onipotência. Grandioso por suas fraquezas (anemia e bondade andam de mãos dadas), Ele é o protótipo da ineficiência: Ele não consegue ajudar ninguém. . . . Ademais, nós nos agarramos a Ele apenas quando abandonamos nossa dimensão histórica; assim que retornamos à ela, Ele nos é estranho, incompreensível: Ele não tem nada que nos fascine, nada do monstro. É aí que nos voltamos para o criador, um deus inferior e ocupado, instigador de eventos. Para entender como ele foi capaz de criar, nós precisamos imagina-lo preso ao mal, que é a inovação, e ao bom, que é inércia. Esta luta foi desastrosa para o mal, pois ele foi obrigado a suportar a contaminação do bom — portanto, a criação pôde não ser inteiramente má.
Como o mal preside sobre tudo aquilo que é corruptível, quer dizer, sobre tudo aquilo que é vivo, é um absurdo tentar provar que ele compreende menos ser do que o bem, ou que a realidade não contem nenhum mal. Aqueles que identificam o mal com o nada supõem que estão, assim, salvando seu pobre Deus Bom. Ele é salvo apenas se nós tivermos a coragem de separar a Sua causa daquela do Demiurgo. Ao se recusar a fazê-lo, o cristianismo inveteradamente procurou impor a falta de evidência de um Criador misericordioso: um empreendimento que esgotou o cristianismo e comprometeu o Deus que procurava preservar.
Não podemos evitar de pensar que a Criação, caso permanecesse na forma de rascunho, não poderia ser terminada, nem deveria ser; a Criação é uma falha, e o famoso pecado do homem aparece, por sua vez, como uma versão menor de um pecado muito maior. Do que somos culpados exceto seguir mais ou menos servilmente o exemplo do Criador? É fácil reconhecermos em nós mesmos a fatalidade que era Dele: não foi para nada que saímos das mãos de um deus perverso e sucumbido, um deus amaldiçoado.
Alguns são predestinados a acreditar no Deus supremo, mas impotente; outros no Demiurgo; e outros, ainda, no Diabo; nós não escolhemos as nossas venerações, nem as nossas blasfêmias. [...]
Para escaparmos das dificuldades inerentes ao dualismo, nós podemos postular um único Deus cuja história se desenvolveria em duas fases: na primeira, discreto, anêmico, reservado, sem nenhum impulso de manifestação, um Deus dorminhoco, exausto com Sua própria eternidade; e, na segunda fase, ambicioso, frenético, um Deus cometendo erro após erro, participando de uma atividade supremamente culpável. Após refletirmos, essa hipótese parece ser menos clara e menos vantajosa do que a de dois deuses distintos. [...]
Ao impormos ao Deus oficial as funções de Pai, Criador e gerente geral, nós expomos Ele aos ataques pelos quais viria a sucumbir. Quão longa seria Sua longevidade se tivéssemos escutado Marcião, de todos os heresiarcas o que mais vigorosamente se opôs ao truque do mal, o que mais contribuiu à glória do Demiurgo pelo ódio que sentia por ele! Não há outro exemplo de religião que, desde o princípio, perdeu tantas oportunidades. Nós certamente seríamos muito diferentes hoje se o início da era cristã tivesse sido marcado pela execração do Criador, pois a permissão para insultá-lo teria ajudado a aliviar nosso fardo, além de fazer com que os últimos dois milênios fossem menos opressivos. Por recusar-se a incriminá-lo e adotar doutrinas que, sem hesitar, o fariam, a Igreja comprometeu-se com a astúcia e o engano. Pelo menos temos o conforto de observar que aquilo que é mais atraente na sua história foram os seus mais íntimos inimigos, todos aqueles que se opuseram e rejeitaram, todos aqueles que, para resguardar a honra de Deus, impugnaram — sob o risco de martírio — a Sua função de Criador. Fanáticos do nada divino, da ausência na qual o Bem Supremo se deleita, eles sabiam a alegria de odiar esse Deus Criador e de amar o outro sem restrições, sem segundas intenções. Tomados pela sua fé, eles não estavam na posição de discernir o toque de impostura que entra até mesmo os mais sinceros tormentos. A noção de pretexto ainda não havia nascido, nem aquela tentação moderna de esconder nossas agonias por de trás de acrobacias teológicas.

Hoje é natal, dia em que a tradição cristã celebra a data do nascimento de Jesus Cristo, a segunda pessoa da trindade divina, o Filho, o Logos, a Palavra (João 1:1-14). Para os cristãos, Deus tornou-se homem para tirar o pecado do mundo através de seu próprio sacrifício — um sacrifício que fez a Ele próprio, à primeira pessoa da trindade, Deus Pai. Este sacrifício foi necessário pois, de acordo com a tradição, o primeiro homem e a primeira mulher pecaram e foram expulsos do Éden, condenados a trabalhar, viver da labuta e morrer deixando descendentes — e estes descendentes eram, por sua vez, amaldiçoados com a mesma culpa de seus progenitores. A culpa de todas as desgraças do mundo, portanto, seria do primeiro casal: tanto a maldade humana quanto o sofrimento e a morte viriam dessa culpa, que precipitou a queda.

No princípio do cristianismo, porém, existiam diversas seitas concorrentes disputando seguidores. Nos dois primeiros séculos da era cristã, por exemplo, gnósticos e marcionistas acreditavam que o ser responsável pela criação deste mundo caído no qual vivemos, o mundo físico, não era o mesmo ser ao qual Jesus chamou de “Pai”. Apesar das interpretações diversas que os diferentes grupos dualistas tinham na época e na Idade Média, todos concordavam com uma coisa: um Deus Bom jamais seria responsável pelo nosso universo material. Este criador necessariamente teria que ser mau ou, no mínimo, ignorante. Só dessa forma era possível explicar, ou tentar explicar, a presença do mal no mundo. Cristo, de acordo com os dualistas, foi enviado pelo Deus Bom para nos salvar da divindade criadora, o malévolo demiurgo.

Essa pergunta não é moderna. Os primeiros cristãos já questionavam como um deus bom, onipotente e onisciente seria capaz de criar seres imperfeitos que trairiam sua confiança no Éden e sofreriam imensamente como consequência. O homem quebrou o mandamento divino, comeu o fruto proibido, e foi expulso do Jardim — algo que o Deus do Velho Testamento, dado o seu suposto atributo de onisciência, já sabia que iria acontecer. Fora do Éden, os homens foram condenados a sofrer toda sorte de desgraças. Uma divindade onipotente e onisciente que permite isso não é misteriosa, ela é má. Depois disso tudo, esse mesmo Deus enviou um dilúvio para matar a maior parte da humanidade que, aos seus olhos, havia se corrompido. Porém, mesmo isso não funcionou. Ele ainda precisou enviar a si mesmo — sua segunda pessoa, o que quer que isso signifique — à Terra na forma do Cristo para que, com seu sacrifício próprio, Ele salvasse as almas de parte da humanidade, mas não toda ela (Romanos 9:6-13, 1 Pedro 1:1-2).

Cioran estava correto ao afirmar que o cristianismo (isto é, a versão do cristianismo que venceu a disputa por fiéis nos primeiros séculos) cometeu um erro ao atribuir a um único deus a função de Pai, Criador e gerente do universo. É impossível justificar logicamente a presença do mal no mundo (seja aquele cometido pelo homem, sejam as desgraças naturais que ocorrem, ou até a própria natureza corruptível da vida) através de um único Criador Todo-Poderoso que, ao mesmo tempo, é benevolente e misericordioso. Se há uma divindade que criou a matéria, ela é funesta e não liga a mínima para nós.

É sempre bom dar exemplos.

Na semana passada, um ex-agente de segurança com esquizofrenia que ficou três anos internado num hospital psiquiátrico após tentar matar uma pessoa surtou no aeroporto Santos Dumont, na cidade do Rio de Janeiro. Levado até uma delegacia para prestar esclarecimento, ele surtou novamente, pegou a arma de um policial e disparou contra várias pessoas, matando um senhor de idade que acabara de chegar para reportar a perda dos seus documentos. Depois dos disparos, o homem tentou fugir, mas foi alvejado na cabeça por policiais. Uma situação trágica. No momento em que disparava a arma, sua mãe estava na missa celebrando o lançamento de um livro no qual conta as dificuldades que teve para criá-lo. O título do livro é A Vitória Pela Fé. (leia aqui a reportagem sobre a tragédia)

Caso exista um deus bom, espero que ele traga conforto a todos os que foram marcados por essa tragédia. Que ele também tenha confortado todas as criaturas que já sofreram no passado e conforte aquelas que sofrem no presente e as que ainda sofrerão no futuro, porque a dor é algo que existirá enquanto houver vida. Não há como escapar do sofrimento, não importa o que charlatões tentem nos vender, sejam terrenos no Céu ou a Utopia na Terra. Mas não devemos esperar nada do que quer que tenha causado a existência do nosso universo físico, independentemente se ele foi criado por um malévolo demiurgo ou foi o resultado de algum fenômeno natural cego.

Feliz natal.

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. (João 1:14)


por Fernando Olszewski

(Atualizado e corrigido em setembro de 2024 e em dezembro de 2024.)