Estado do bem-estar bancário

Burros que não entendem nada de economia afirmam que a parte macroeconômica é exatamente igual a parte microeconômica. Não é, nunca foi, e durante a maior parte do século XX o trunfo da economia como ciência séria foi justamente ter entendido esse fato. Mas, como a economia ainda é uma ciência humana, o discurso ideológico infestou uma grande parcela dela ao longo das décadas. O importante deixou de ser um estudo técnico de como os recursos escassos são produzidos e gerados em uma sociedade e tornou-se uma batalha em nome de um ideal. Tudo bem, mas venceu a ideologia mais tosca, a que justamente fará a maioria das pessoas se ferrarem.

Charge do cartunista Kap

O que quero dizer é que a visão individualista e simplista de mercado tem vencido o discurso. Hoje, no Brasil, temos um Ministério da Fazenda comandado por uma equipe de pessoas que juram de pés juntos que o Estado brasileiro é muito generoso e, por conta disso, acaba sendo demasiadamente grande e ineficiente ao ponto de desidratar o vigor econômico do país. Eles acreditam que geramos menos riquezas para todos, inclusive para os pobres, por culpa do Estado ser grande e generoso demais.


Segundo esse discurso, o certo seria diminuir o tamanho do Estado, principalmente através de uma diminuição de todo o aparato de seguridade social. Isso quer dizer: alterar ou cortar as regras de aposentadorias e todos os outros programas sociais que nossa constituição garante, isso sem falar nos programas extras—estes, no entanto, serão mantidos com a clara intenção de se tornarem ainda mais moeda de campanha populista, vide o anúncio do "décimo terceiro do Bolsa Família" pelo presidente Bolsonaro.

A ideia é até simples de entender: ao diminuir o tamanho do Estado cortando gastos sociais obrigatórios, aposentadorias (trabalhadores agora teriam que ser bem mais responsáveis em fazer o seu próprio "pé-de-meia", sem contar com o auxílio do Estado como é agora no regime de repartição) e cortando também leis trabalhistas (o que já foi feito no governo passado), as distorções estatais impostas ao mercado deixariam de existir. Sem essas distorções impostas pelo Estado ao mercado, o setor produtivo (industriais, empresários) seria incentivado pelo lucro mais fácil à contratar mais pessoas e pagar salários gradativamente mais altos—isso geraria um ciclo virtuoso de crescimento econômico, já que as pessoas, agora empregadas e ganhando gradativamente mais, passariam a consumir mais, fazendo os donos dos meios de produção gerarem mais lucro, e assim por diante. Essa é a fórmula liberal para recuperação econômica.

Mas essa fórmula liberal para o sucesso econômico é falsa. É um "MITOOOOOO!". A economia real não funciona assim.

Na economia real, temos uma produtividade marginal do trabalho baixa, graças à um sistema educacional e de formação técnica muito fraco. Nunca foi prioridade para nenhum governo brasileiro ter uma massa de trabalhadores altamente escolarizados e com alta capacitação técnica, além de cultural. Na economia real, os industriais e grandes empresários brasileiros já estão pouco se lixando para suas próprias indústrias e empresas—eles não as administram há tempos, elas são tocadas por executivos. Eles ganham mais dinheiro apostando nas bolsas de valores brasileiras e internacionais do que com seus próprios negócios. E não: os ganhos deles no setor financeiro não tem absolutamente nada a ver com o quão bem ou mal vão os seus negócios, uma coisa não reflete na outra. Além da bolsa, eles investem em títulos da dívida pública, que no Brasil têm um excelente histórico, dado as nossas taxas de juros.

Então, não: cortar direitos trabalhistas, aposentadorias e privatizar o Estado inteiro não fará com que a maioria dos ricos no Brasil reinvistam em massa nas suas empresas, porque eles ganham mais dinheiro aplicando em títulos da dívida pública e jogando na bolsa de valores—não comprando ações de empresas que produzem e por isso geram riqueza, mas empresas que vêem seus papéis valorizados por essa ou aquela notícia que faz com que fundos de investimento comprem ou vendam mais ou menos em um curto espaço de tempo. Os liberais estão errados e, ao se recusarem a enxergar isso, estão assinando o atestado de burros.

Como podem os bancos terem lucros tão altos no Brasil, mais altos do que em vários países de primeiro mundo? As taxas de juros. E por que elas permanecem altas, mesmo após algumas quedas da taxa básica de juros realizadas pelo Copom nos últimos anos? Porque eles também fazem política monetária junto ao Banco Central e ao Copom. Representantes dos bancos sentam nas reuniões e nelas fica acordado o seguinte: os bancos manterão taxas de juros altas, evitando o empréstimo, para que menos dinheiro circule e a inflação do país ao ano fique dentro de uma meta estabelecida pelo Banco Central. Até aí, tudo bem. Mas o fantasma da inflação não tem como única causa o aumento de dinheiro em circulação—existem outros fatores que influenciam a alta ou a baixa nos preços de uma economia.

Isso é só metade da história: os bancos, ao manterem a taxa de juros altas e não emprestarem, perdem receita. Para compensar isso, o Estado brasileiro, através do Banco Central, troca o dinheiro em caixa dos bancos por títulos da dívida pública—aqueles mesmos títulos com os quais os industriais e empresários lucram muito mais do que com suas indústrias e empresas, por conta das taxas de juros pagas pelo Estado serem altas. O sistema econômico vigente no Brasil hoje é hoje a definição de um estado do bem-estar bancário. O que mais dá dinheiro de maneira segura no Brasil é alocar recursos em títulos da dívida e mercado financeiro em geral—fundos multimercado, imobiliário, etc.

Portanto, anotem aí o que estou escrevendo: salvo a introdução de algum outro fator, o fim ou a diminuição da previdência por regime de repartição no Brasil não vai incentivar o setor privado o para haver crescimento econômico suficiente. Vai acontecer a mesma coisa que aconteceu quando cortaram direitos trabalhistas, nada. Aliás, aconteceu pior do que nada, o desemprego aumentou. O que precisa ser feito é uma compreensão do complexo momento que estamos vivendo, tanto internamente na economia brasileira, quanto externamente. É idiotice fingir que o papel do Estado deve ser mínimo e isso, por si só, fará a economia de mercado funcionar magicamente bem. Nunca aconteceu na história de nenhum país—Inglaterra e Estados Unidos não se tornaram potências econômicas através de Estado mínimo e liberalismo.

Enquanto uma compreensão melhor do que está acontecendo não for feita, continuaremos carminando para o abismo: seremos um país com uma população que ainda está em crescimento (apesar do ritmo ter desacelerado), sem crescimento econômico e sem um Estado do bem-estar social que pode ajudar os pobres—uma parcela enorme da nossa população—a não entrarem em situação de total desespero. É algo que vai além da má política, é uma escolha anti-ética que estamos fazendo como civilização.