Tiros, chuva, desabamentos e morte

Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um e outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara—doença, perseguição, ruína, mutilação, cegueira, loucura, etc. (SCHOPENHAUER, Parerga & Paralipomena)

Pandora, de Lawrence Alma-Tadema

O resumo dos últimos dias no Rio de Janeiro pode ser descrito com uma palavra: desgraças. Eu poderia gastar um bom tempo tratando sobre a polêmica da culpa—aquela que faz uns acusarem o prefeito do Rio e a população que joga lixo nas ruas pela destruição das chuvas, enquanto outros dizem que é um fenômeno natural e que ninguém tem culpa. Poderia fazer o mesmo com os oitenta tiros do exército que mataram um músico na zona oeste do Rio. Não vou, porque para mim é óbvia a responsabilidade em ambos os casos.

No caso da chuva, a responsabilidade maior recai sobre a prefeitura, que não utilizou todos recursos que tinha para realizar ações preventivas. Claro que, mesmo se a prefeitura tivesse usado todo o dinheiro disponível, ainda poderiam ter havido tragédias. Por isso, parte da culpa recai sobre a natureza. Mas vale lembrar que o clima está sendo alterado graças à ação do homem: atividade industrial produzindo gases responsáveis pelo efeito estufa, desmatamento, uso contínuo de agentes poluentes, etc. Então, parte da culpa recai sobre a ação humana.

No caso dos tiros disparados contra o músico e sua família, a culpa é de um exército fracassado e inflado pelo discurso boçal de pessoas como o atual presidente da república. É o que faz o pacote de Sérgio Moro ser rejeitado pela maioria da população. O foco do pacote é a noção de que o policial deve ter o direito de atirar primeiro e perguntar depois. Mas a maioria da população, que é preta, parda e pobre, vive em áreas onde a atuação da polícia sempre foi justamente essa, portanto é lógico que a maioria da população vai rejeitar um pacote que agora dá respaldo legal a esse tipo de barbarismo.

Tendo dito isso, vou falar do sofrimento como sendo o pano de fundo da vida. Vida é sofrimento que se estende ao longo de um tempo, recheado aqui e acolá por coisas boas, porém fugazes. Coloco o tédio junto da dor nessa definição de sofrimento, mas mesmo se não colocasse o resultado seria basicamente o mesmo. A vida é tédio, somado a dores físicas e mentais, recheado aqui e acolá por coisas boas, porém fugazes. Isso é a regra até para as pessoas que vivem nos países mais felizes do mundo, as social-democracias nórdicas.

Mas eles são a exceção. Aliás, até se pegarmos todos os países de primeiro mundo, do mais funcional—a Noruega—ao menos—Estados Unidos—, todos eles representam uma exceção. A maioria das pessoas não habita os países de primeiro mundo, muito menos os melhores dessa categoria. Para o resto do mundo, a vida é pobre, dura, cheia de falsas esperanças e, em alguns lugares específicos—como a América Latina, Oriente Médio e alguns países africanos—, extremamente violenta.

Podemos ter uma vida relativamente boa e ainda assim a desgraça nos atingir. A desgraça pode vir na forma de uma pedra enorme que esmaga o táxi no qual estamos durante um forte temporal. Ela pode vir na forma de oitenta tiros disparados pelo exército do seu próprio país. Pode vir quando seu prédio desaba em decorrência dos danos causado pela chuva. Sofrimento, dor, morte, desgraça. A vida continua? Continua não. Quem diz que continua mente ou habita um certo nível de boçalidade reflexiva que os torna incapaz de perceberem o que de fato é a vida. Ela não é "bonita, é bonita e é bonita".

Para aqueles que louvam a Deus, percebam: o som do desespero dos solitários, dos deprimidos, dos doentes, das vítimas de catástrofes e também das vítimas da violência humana devem ser como melodia para os Seus ouvidos. Afinal, o som da dor e da morte é o que Ele mais escuta. Os gritos de pavor daqueles soterrados pela chuva e feridos pelas balas fazem com que Deus fique excitado. Ele se alimenta das nossas lágrimas.

Para os que não creem Nele, percebam: a vida é um fenômeno natural que se canibaliza para sobreviver. Não há nada de admirável na natureza. Ela é trágica. Para ser possível a sobrevivência de incontáveis formas de vida animal dotadas da capacidade de sentir dor, faz-se necessário um show de horrores e matança. Sofrimento e morte eram a regra da vida muito antes do homo sapiens surgir, os animais só não tinham como articular isso, dado suas limitações.

Sobre o mito de Pandora escrito por Hesíodo, ainda existe o debate a respeito do que ficou dentro do jarro de males. A palavra grega élpis é geralmente traduzida por "esperança". Porém, desde a antiguidade, alguns afirmam que élpis, em Hesíodo, significaria o conhecimento daquilo que ainda irá acontecer, a antevisão. A antevisão faria com que os homens fossem capazes de viver sabendo de todas as desgraças que os acometeriam, inclusive quando e como eles iriam morrer. Isso faria a vida dos homens ainda mais desgraçada. A esperança, portanto, seria o produto desse último mal não ter sido libertado do jarro quando Pandora o abriu.

Por não vermos o futuro, por sermos ignorantes do mal que virá amanhã, temos esperança.