A bondade do suicídio (e alguns aforismos sobre o trabalho)

"Poderia a existência ser o nosso exílio e o nada a nossa casa?"
—Emil Cioran, Lágrimas e Santos 

O tabu que temos com relação ao suicídio veio com a expansão das religiões abraâmicas. A morte pelas próprias mãos era tratada de maneira menos histérica na antiguidade clássica. Ao ser condenado à morte em Atenas, Sócrates teve a opção de fugir para o exílio, mas preferiu beber a cicuta. Após sua condenação pelo imperador romano Nero, Sêneca, seu preceptor, também suicidou-se calmamente, cortando suas próprias veias.

O suicida, pintura de Édouard Manet
Pode-se argumentar que tais mortes foram ordenadas. No entanto, nenhum mártir do cristianismo suicidou-se a mando de um perseguidor. Tirar a própria vida em qualquer circunstância teria sido um pecado. Por essa razão, todos foram mortos pelas mãos dos outros. A verdade é que o misticismo praticado por algumas seitas sangrou suas imbecilidades em cima da vida comum de povos que possuíam algum tipo de reflexão, fossem eles ocidentais, como os gregos, ou orientais, como os persas. Por sorte, tal azar nunca chegou ao extremo Oriente, onde o suicídio continua sendo bem visto em certas ocasiões.


Senti a necessidade de escrever uma pequena ode ao suicídio após ver pela enésima vez comentários supostamente esclarecidos sobre o suicídio de alguma pessoa. A gota d'água foi um comentário que dizia mais ou menos o seguinte: "não, depressão não é frescura, também não é falta de Deus, é doença, deve ser levada a sério, a pessoa sente um vazio imenso e não podemos levar isso na base do achismo, pois ela pode acabar preferindo a morte". Um comentário como esse dá a entender que o normal, o certo, é tratar a vida como algo maravilhoso, uma dádiva pela qual devemos lutar sempre, o que é uma completa bobagem. A vida consegue ser muito pior do que se pensa normalmente — pode ser tão ruim que a opção de abandoná-la acaba sendo a menos pior das opções.

Não estou tratando do suicídio pela honra, nem do suicídio como arma de guerra (e.g. kamikazes e jihadistas). Também não pretendo defender o suicídio apenas da maneira como os antigos praticavam ou justificar o suicídio daqueles que se matam por futilidades da vaidade humana, tais como o sofrimento por amor. O suicídio que pretendo defender é aquele que é realizado pelo fato da vida possuir um desvalor estrutural impossível de ser remediado: aquele que a pessoa leiga comete por ter dentro de si o tal "vazio imenso". Idealmente, porém, o sujeito reflete que sua vida não tem significado algum, que todo o sofrimento é em vão, que seu nascimento foi um infortúnio e, por isso, decide se abrir para a possibilidade de matar-se em algum momento conveniente — o leigo não faz a reflexão profunda, mas a sensação de vazio que habita dentro dele é tão válida quanto a reflexão daquele que pensa.

Onde está o erro nisso? O sujeito suicida está certo na sua reflexão. Psicologismos e filosofias afirmativas da vida não passam de formulações mais bem elaboradas do pensamento mágico para justificar uma coisa que é injustificável: forçar este sujeito a abdicar do direito de tirar sua própria vida depois que ele percebeu no que se meteu ao nascer — o nascimento sendo um evento que, diga-se de passagem, o sujeito jamais poderia ter consentido em primeiro lugar.

A defesa impensada e exagerada do suposto valor supremo da vida (humana) faz com que a nossa civilização não se importe com milhões de pessoas que subsistem em condições miseráveis, geração após geração. Afinal, ao defendermos a vida, o que realmente estamos defendendo é o nascimento — depois disso é cada um por si. Ao imaginar um bebê nascendo, quase ninguém cogita as desgraças pelas quais aquele ser irá, sem dúvida alguma, passar — mendicância, crime, doença, injustiça, dor, tortura, etc. E ai do sujeito que queira abrir mão desse "lindo" presente antes da "sua hora". Principalmente se a razão for não valorizar a vida. Nisso, até mesmo o Oriente e a antiguidade clássica pecam: para eles, matar-se em nome da honra ou de uma causa, tudo bem, mas matar-se por percebermos a desvalia estrutural do ser? Nunca.

Posso citar os dados que apontam para o enorme viés otimista que temos e a tese de que pessoas deprimidas têm, na média, uma melhor noção da realidade do que o resto, mas não acho que preciso elaborar muito sobre essas coisas. Servem apenas de auxílio empírico para o que estou dizendo. Quem foi a grande autoridade suprema e inquestionável que baixou o decreto moral que condena o suicídio? Desconheço a autoridade de qualquer um que encha seus pulmões para bostejar platitudes afirmativas sobre o valor da vida, sem que me apontem uma razão decente para criticar a noção de que somos livres para nos desfazer desse presente de Grego na hora que bem entendermos.



A crença contemporânea de que o estudo é simplesmente um meio para subir na vida, no sentido puramente material, é porca. Serve apenas ao interesse de se ter uma massa de robôs biológicos produtivos que nem sequer ficam com a maior parte do valor gerado pelo seu trabalho. Um mar de técnicos — capazes de cálculos complexos — que não aprenderam a pensar.


Certa vez, em uma mesa de bar, amigos meus que chegaram tarde em suas vidas na conversa ideológica começaram a passar julgamentos morais a respeito de como o trabalho é a única medida do valor de um homem. Conversadores de classe média, disseram que socialistas querem viver do dinheiro dos outros sem trabalhar e que os capitalistas são verdadeiros heróis dos quais a sociedade não deveria cobrar altos impostos. "Mas e os herdeiros?" perguntei, apenas para escutar uma balbuciação sobre "depende de como o pai ficou rico" e outras coisas. No final, percebi que eles eram cheios de raiva dos pobres e inveja dos ricos. Apesar de toda sua indignação moral, não passavam de idiotas irracionais emotivos que levariam vantagem na primeira oportunidade que tivessem. Claro, se fossem de outro jeito, não seriam conservadores.


O trabalho danifica o homem.


A vida na Terra existe há quase 4 bilhões de anos, pelo menos. A vida multicelular, há 1,5 bilhão de anos. Os dinossauros dominaram a Terra por cerca de 170 milhões de anos, sendo extintos há 65 milhões de anos, após o impacto de um asteroide que dizimou a maioria das espécies do planeta. Isso permitiu com que os mamíferos, antes prejudicados, pudessem se desenvolver e, após sucessivas alterações, chegarem até o mundo que temos hoje, com roedores, felinos, antílopes, leões marinhos, baleias, macacos, humanos, etc. A maioria da humanidade que labuta quase que toda sua vida para nem sequer ficar com a maior parte do que produz deve sua condição a um asteroide.


    Os antigos e os medievais tinham uma visão menos nobre do trabalho. Era tido como uma espécie de maldição. Foi só na modernidade que ele tornou-se o que é hoje, um orgulho. A mudança que se deu é compreensível. O Antigo Regime — e todos os regimes que se assemelhavam a ele ao redor do mundo — era fundamentado na ideia de que a nobreza e o clero podiam viver às custas do trabalho do povo, que era composto pela burguesia dona dos meios de produção e pelos trabalhadores. Havia uma hierarquia clara, baseada na hereditariedade. Corretamente, o povo decapitou os nobres e, com razão, aqueles que eram vistos como sangue-sugas não produtivos (nobreza e clero) passaram a ser execrados.
    Mas, tanto os burgueses quanto os trabalhadores consideravam-se trabalhadores: é por isso que surgiu a divisão de ideários entre os donos dos meios de produção e o proletariado; o primeiro grupo a favor do direito de explorar a mão de obra, o segundo lutando por direitos trabalhistas. Ambos, contudo, desenvolveram filosofias afirmativas do valor do trabalho — cada um à sua maneira, claro. Ambos cometeram um erro grave ao romantizar a nobreza de uma atividade que mostra claramente porque o homem deveria parar de se reproduzir e abandonar o mundo aos animais que já nascem prontos para sobreviver.