O Estrago

Na Apologia de Sócrates, de Platão, há um determinado momento durante o julgamento de Sócrates em que ele, defendendo-se de seus acusadores, afirma que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Vinte e dois séculos depois, ao observar toda a vida, Schopenhauer concluiu que, por de trás dela, animando-a, há uma força metafísica irracional e caótica que tem como único objetivo propagar-se. À esta força ele deu o nome de Vontade. Olhando então para as dores e sofrimentos aos quais boa parte dos seres vivos — incluindo nós — esteve submetido ao longo das eras, Schopenhauer escreveu, no segundo volume de Parerga e Paralipomena, que teria sido melhor se a Terra, assim como a Lua, fosse incapaz de produzir e sustentar a vida.

Dois seguidores de Cadmo devorados por um dragão, pintura de Cornelis van Haarlem

Se tomarmos por base esses dois pensadores, podemos concluir o seguinte: a vida do único animal capaz de examiná-la profundamente, o ser humano, só vale a pena quando ela é colocada sob a lupa da investigação racional; contudo, ao analisarmos o fenômeno da vida, concluímos que ela não vale a pena. Seria então a ignorância uma bênção? Parece que nunca nos livraremos disso. Mas a ignorância seria abençoada em que sentido? Talvez porque ela nos aproxime mais dos outros animais, que vivem no presente eterno, ou algo muito próximo disso. Contudo, ela não seria abençoada num sentido schopenhauriano. Neste sentido, quando somos ignorantes, nós apenas não sabemos o quão desgraçados somos de termos nascido. Isso não é uma benção verdadeira. Ser alheio e viver sorrindo quando se está caindo no abismo não faz de ninguém abençoado.

Pelo fato de sermos uma nação majoritariamente pobre, há um ditame corriqueiro muito falado — uma de suas diversas variantes já até virou samba — no Brasil: é feio que se reclame de barriga cheia. Certamente o ditado existe em outras culturas ao redor do mundo. Sua história é antiga. Quando tratamos da vida inteira a partir de perspectivas materiais, um miserável — que ainda tenha forças para pensar em meio à fome e pobreza abjeta — tem toda razão em achar grotescas as reclamações dos abastados. A grande maioria delas são mesmo. Aliás, no planeta Terra do século XXI, onde o consumo desnecessário é regra, quase que a totalidade de todas as reclamações dos abastados são grotescas.

Existem, no entanto, diferentes tipos de coisas a respeito das quais um humano pode reclamar. Nem todas elas se resumem às condições materiais de sustento e mantimento da vida. Sim, que isso tenha que ser resolvido, não há dúvidas, mas não é disso que me proponho a escrever agora. O fato é que mesmo em lugares e épocas nos quais esse problema — o problema da disparidade absurda entre os poucos que têm muito e os muitos que não têm quase nada — foi abordado com mais afinco, há algo que não se resolve, nem nunca se resolverá, dentro de uma perspectiva mais sombria da vida. No dia em que todos nós estivermos bem alimentados, que todos nós tivermos as mesmas oportunidades e que todos tenhamos acesso às mesmas possibilidades culturais, dentro da perspectiva sombria da qual falo, continuaremos dentro do mecanismo ao qual Schopenhauer chamou de Vontade.

Não que isso deva servir para nos desencorajar de mudar o mundo humano contemporâneo para melhor. Mas o fato é que, dentro de uma determinada perspectiva filosófica, têm coisas que nunca serão resolvidas. O passado já era. E mesmo o futuro, ainda que melhorado pela engenhosidade humana, não trará uma resolução satisfatória. Estamos presos dentro de uma realidade que só poderia ser verdadeiramente alterada se fôssemos capazes de tornarmo-nos deuses. Talvez nem assim, visto que, por mais que sejam imortais e tenham incontáveis recursos à sua disposição, os deuses do Olimpo vivem se digladiando e conspirando. Suas existências são eternas buscas de coisas que lhes faltam. Eles continuam imbuídos da Vontade, mesmo não estando sujeitos à corrupção e sofrimento da carne.

Em se tratando da Vontade e da nossa completa incapacidade em alterá-la, quando observamos a nossa total impotência em mudar aquilo que está — ou estaria — por trás da realidade, o estrago é que viemos ao mundo. O estrago é que passamos a existir. O estrago já foi feito. Primariamente em virtude do meu nascimento, tenho uma vida confortável. Se reclamasse de não poder comprar um iate, enquadraria-me dentro do ditado popular, e teriam toda a razão, seria feio, acredito. Mas ao ver sofrerem aqueles que estão ao meu redor, não tenho como não simpatizar e, sim, reclamar. E por sofrimento, não me refiro apenas ao sofrimento material — falo também de outras formas, que me afetam mais pessoalmente.

Muitas vezes, as formas e tipos diferentes de sofrimentos se entrelaçam. Os problemas materiais ligados à política, que creio poderem ser solucionados, têm raiz na péssima configuração da nossa coletividade. Mas eles possuem interseção com outros tipos. O vício em drogas é um exemplo desses problemas. Ele deveria ser tratado como uma epidemia pela coletividade — tanto suas consequências quanto suas causas deveriam ser vistas sob um ponto de vista racional. Viciados deveriam ser vistos como doentes e submetidos à tratamentos médicos, enquanto que as causas comuns que levam as pessoas aos diversos tipos de vício deveriam ser estudadas e, se possível, remediadas pela coletividade.

A questão material, e portanto política, do problema, pode ser vista (simplificadamente) da seguinte forma: nada justifica que uma pessoa abastada possa se tratar de um vício enquanto que uma pessoa pobre seja tratada como marginal por conta do mesmo vício. Isso está ligado ao tratamento das consequências. Já as causas do vício podem, em grande parte, estar ligadas à péssima configuração da coletividade, que garante que milhões vivam na pobreza enquanto vendem seu trabalho para os donos dos meios de produção — outro problema político a ser sanado. Aliás, esse último é um problema político ainda maior do que o problema do mau tratamento paliativo dos viciados. Mas, talvez o fato de que o mundo no século XXI seja uma porcaria que obriga todos, pobres ou não, a serem altamente produtivos (até no lazer e no gozo) não explique inteiramente as causas do problema das drogas, que utilizo aqui como exemplo de um tipo de sofrimento.

Poderia ter dado outros exemplos. Apenas abordei a questão do vício em drogas porque, infelizmente, esse é um problema que tem afetado vidas muito próximas à minha. Para piorar ainda mais a situação, porém, talvez o problema das drogas ainda possua uma interseção com aquele outro problema impossível de ser resolvido aos olhos da filosofia schopenhaueriana: a Vontade. Um dos mecanismos através da qual a Vontade utiliza para perpetuar-se nos seres vivos é o prazer. Schopenhauer teorizou que a humanidade já teria sido extinta caso nossa reprodução dependesse apenas da ponderação e não do prazer. E sabemos que diversos tipos de drogas recreativas — inclusive as mais destrutivas delas — produzem reações químicas extremamente prazerosas dentro dos nossos cérebros.


É compreensível, portanto, que pessoas que passam por necessidades materiais dentro de nossa péssima configuração coletiva — pessoas pobres, marginalizadas, que precisam pegar várias conduções para ir e voltar do trabalho, atravessando grandes distâncias para ganhar um salário medíocre, sofrendo pressões e humilhações — acabem sendo tentadas à buscar uma válvula de escape barata. O mesmo acontece com os abastados? Talvez, já que, por mais que estejam bem de vida materialmente falando, é possível que pressões sociais similares — pressões para que sejam mais produtivos, para crescerem ainda mais, para gozarem ainda mais — atuem sobre os abastados e os façam buscarem as mesmas válvulas de escape. Portanto, mudar o mundo, alterando a configuração da nossa coletividade, ajudaria todos eles.

A Vontade, porém, permanecerá, ainda que consigamos resolver os outros problemas e ainda que consigamos mudar o mundo humano para melhor. É verdade que as questões materiais agravam ainda mais o sofrimento basal da vida do animal humano. Elas tornam ainda mais desesperadora uma situação que por si só já não é boa, mesmo em sociedades mais avançadas. Mas esses não são os únicos dilemas do homo sapiens. Ainda que tenha a barriga cheia, ele se encontra de frente com uma total falta significado satisfatório para sua vida. Daí as religiões. Daí as filosofias de vida. Daí as drogas, também. A pobreza — alimentada por aquilo que venho chamando de "péssima configuração coletiva" — amplifica tudo isso. Nela proliferam igrejas e cracolândias. Mas a pobreza e as pressões do mundo contemporâneo apenas agravam algo que já está dentro de nós e é impossível de ser removido sem que nossas vidas sejam removidas junto (i.e. a Vontade).