Recado aos engenheiros (e aos tecnocratas em geral)

Meu pai é engenheiro. Alguns dos meus melhores e mais antigos amigos são engenheiros. Os pais de alguns deles também são engenheiros. A maioria deles é engenheiro mecânico. Todos formados em excelentes universidades federais. Não preciso dizer que aprecio imensamente o excelente trabalho que todos os engenheiros do mundo fazem, não apenas por viver num mundo completamente artificial, cinza e enfumaçado—no qual nem adianta me abster do fumo, segundo a OMS, que meus pulmões já vão pro brejo—mas também pelo valor sentimental de ter pessoas tão próximas e tão queridas que são formadas nessa linda profissão. Brincadeiras a parte, sou muito grato por viver num mundo onde posso me deslocar poucos quilômetros sem que isso seja a viagem de um dia ou mais, movida à tração animal, seja o animal um cavalo ou eu mesmo. Minha primeira graduação não foi em engenharia, mas economia, outra profissão símbolo da tecnocracia vigente—e símbolo ainda maior dos problemas gerados na contemporaneidade pela concepção tecnocrática de mundo.

Forja de ferro, pintura de Joseph Wright

Sou também extremamente grato por viver numa época onde tenho acesso à computadores avançados, à internet, e todas as amenidades trazidas até nós por inventores e por aqueles que trabalham para aperfeiçoar essas invenções. Falo de engenheiros, mas não são apenas eles a quem me refiro neste texto. Administradores, contadores, programadores, e até físicos e químicos que trabalham na produção de artefatos tecnológicos que facilitam cada vez mais a vida de seres humanos como eu: todos são, em maior ou menor grau, profissionais que permitem o mundo humano ser como ele é hoje. Sem vocês, estaríamos ainda na Idade Média. Aliás, sem os seus precursores, nem na Antiguidade Clássica teríamos chegado. Sem o talento e a habilidade de pessoas capazes de modificar o mundo natural, nunca teríamos nem sequer descoberto a agricultura, como ocorrido há dez mil anos atrás. Seríamos ainda caçadores e coletores. Creio, então, que posso colocar a agronomia na lista desses preciosos saberes que sustentam a tecnocracia contemporânea.


Mas, focando agora no presente, quero tratar de uma tendência estranha entre todos os profissionais que labutam em diversas profissões tecnocráticas—não por culpa deles pois, em grande parte, infelizmente, são apenas calculadoras biológicas incapazes de pensar de outra forma que não seja a partir dos processos que aprenderam para performar na vida profissional, já que seus professores jamais os ensinaram a pensar de maneira crítica. A tendência a qual me refiro é a seguinte: a crença recorrente de que só a produção de coisas palpáveis, coisas que possuam alguma utilidade prática, têm algum valor. E quanto maior a concretude da coisa útil, melhor. Isso faz com que a cultura, a literatura, a arte, a arquitetura, sejam, dentro dessa concepção, coisas inúteis, para não dizer "coisa de fresco" ou algum outro termo usado no sentido mais pejorativo possível.

A única exceção à essa regra da "concretude útil" que noto entre os profissionais da tecnocracia em geral é especulação financeira. Até hoje conheci pouquíssimos profissionais das áreas tecnocráticas que não são fascinados pelo mercado financeiro. O fato é que a maioria é, muito embora a especulação financeira quase não possua efeito positivo real na produção de coisas concretas e úteis para a maior parte da raça humana—ela tem grande efeito para o acúmulo de capital por parte de uma parcela minúscula da nossa espécie, mas profissionais de áreas tecnocráticas acreditam fazerem parte desse bolo, mesmo não sendo donos de um centésimo do capital ou das valorizações de ativos financeiros no mundo inteiro.

Tirando a exceção da especulação financeira, porém, a regra da concretude útil permanece intacta na mente de muitos dos profissionais da tecnocracia. Uma ponte feia e que contribuiu para o crescimento econômico e populacional (é mentira quando afirmam que um está desvencilhado do outro; se fosse verdade, os tecnocratas do mundo não estariam desesperados com a situação que o Japão vem enfrentando há décadas de diminuição populacional) desenfreado é tido como algo palpável e útil; logo, é visto como algo bom para o mundo. Dentro dessa visão de mundo tosca, a ponte Rio-Niterói, aquela abominação nojenta, tem um valor muito superior às Memórias Póstumas de Brás Cubas. Alguns podem virar para mim e dizer: "Mas a ponte tem um tipo de valor, enquanto que o livro tem outro tipo".

Sim, é verdade. Estaria mentindo se dissesse que não há um valor na ponte. Mas não é como os defensores dessa abominação acreditam que seja. Ao afirmarem a existência de diferentes tipos de valoração, os tecnocratas estão fazendo uma concessão pública—mas em conversas privadas, fica sempre claro o desprezo que boa parte deles têm pelas coisas que são realmente mais importantes, coisas como o livro. Sim, o livro sempre será mais importante do que a ponte Rio-Niterói. Aliás, o pior livro de um escritor clássico menor sempre será mais importante do que todos os prédios, do que todas as plataformas de petróleo e do que a missão Apollo XI. Isso é simplesmente um fato incontestável. Não é uma questão subjetiva, de opinião, é uma afirmação objetiva da realidade. É preciso que se entenda de uma vez por todas o papel do tecnocrata, para que não se confunda mais, algo que vem acontecendo já há mais de um século. Claro, tenho zero esperanças de que este texto produzirá tal efeito.

O papel do tecnocrata, inclusive dos engenheiros—a profissão que serve de modelo para a tecnocracia moderna—é facilitar a vida das pessoas para que elas possam realizar o verdadeiro trabalho importante da humanidade: ir a museus, produzir arte, consumir literatura, consumir cultura, participar de colóquios de filosofia, entender a história humana e a história natural, etc. Os saberes e profissões tecnocratas existem para servir à humanidade, não o contrário. E no caso dos serventes da tecnocracia, são muito bem pagos. Não há nada de ruim em servir. É algo nobre, como se costuma dizer. Mas boa parte da humanidade não pensa assim, e certamente a maioria dos tecnocratas se recusa a aceitar sua posição de servente. O papel de profissionais da tecnocracia é facilitar a vida de todos ao ponto de que nem precisemos saber que estão presentes—quanto menos aparecerem, mais nobres serão em seu trabalho. Não é o contrário. Por exemplo: um evento cultural, quanto mais aparece, melhor; uma obra ou problemas na variação do preço do petróleo ou do dólar, quanto mais aparecem, pior.

O mundo que coloca o tecnocrata em primeiro lugar, além de ferrar com a vida das pessoas comuns, é feio, escroto, cinza, boçal. Quando o tecnocrata é colocado no seu devido lugar, ele é capaz de contribuir para a criação de uma Veneza. Quando ele é posto à frente das decisões mais importantes, produz um Hong Kong, que ainda que seja bonita para os apreciadores de prédios altos, luzes e cacofonia, possui problemas humanitários gravíssimos—e pior, um mundo dominado por tecnocratas faz com que esses problemas se expandam até Veneza, Paris, Florença, etc. É só nesse mundo dominado pela tecnocracia que poderia existir a tara pela ideia de um computador que pense como um ser humano, uma inteligência artificial extremamente potente. Mas tecnocratas parecem não entender o propósito do computador. Ele existe para ser um meio. O computador que uso para escrever meus trabalhos de filosofia, por mais avançado que seja, é burro. Ele é capaz de calcular rapidamente e possui uma interface que me permite realizar um monte de coisas—mas sem mim, ele é uma calculadora de metal sem senso crítico algum.

Seria poético se no dia em que os engenheiros do Google fossem capazes de dar consciência à uma máquina, ela, ao invés de se tornar uma calculadora ainda mais poderosa, pedisse para ir ao Musée D'Orsay ver quadro do Bouguereau ou na Galleria dell'Accademia ver o David de Michelangelo, apenas para apreciá-los, sem segundas intenções produtivas, palpáveis. Seria mais poético ainda se a máquina com consciência cometesse suicídio depois disso.

No filme excelente filme inspirado na crise econômica de 2008, Margin Call, um engenheiro que trabalhava para uma firma de Wall Street recusa-se a voltar para o trabalho do qual fora demitido poucos dias antes. Num diálogo brilhante, ele diz para um ex-colega seu—que está na sua casa pedindo para que volte e ajude a firma—que antes de trabalhar em Wall Street, ele era empregado numa firma de engenharia e foi responsável pela construção de uma ponte. Ele então fala do número de pessoas que cruzaram a ponte ao longo dos anos, o quanto elas pouparam em combustível e horas de viagem por causa da existência ponte.

A ponte ali foi um artefato usado para contrastar com a ficção safada e sem vergonha da especulação financeira. O filme Margin Call, além de outras obras de ficção criadas para criticar a ganância de Wall Street, brinca com esse contraste entre a produção de coisas úteis e concretas e a especulação vazia do mercado financeiro. Sim, é verdade: a especulação no mercado financeiro nunca terá o mesmo valor palpável de uma ponte. Mas vou além disso: ainda que a ponte facilite a vida das pessoas—algo que não nego em nenhum momento—ela nunca terá o mesmo valor imaterial da história e dos diálogos de um livro como Memória Póstumas. É um simples fato que não tem nada a ver com tipos diferentes de valoração. A especulação financeira não vale nada perto do feito dos engenheiros e, de forma parecida porém não igual, os feitos dos profissionais da tecnocracia para facilitarem as nossas vidas não chegam aos pés do valor das peças de museus e dos livros em bibliotecas.

Há um meme de uns anos atrás que até eu achei engraçado—ainda acho, visto que gosto de humor auto-depreciativo. O meme mostra a foto de uma cracolândia com os dizeres: "formatura da filosofia". A brincadeira está justamente no contraste da filosofia existir num mundo dominado pelo pensamento tecnocrata. O problema é que muitos profissionais da tecnocracia dão claramente a entender que aprovam a equivalência entre viciados em crack e filósofos. Para alguns, isso não é apenas humor, é a mais pura verdade: não há diferença entre um habitante de uma cracolândia e um filósofo ou estudante de filosofia—e o mesmo vale para qualquer profissão que não seja "produtiva" (entre aspas, pois um especulador é visto por tecnocratas como produtivo, mesmo sendo apenas um sangue-suga), inclusive ciências da natureza como física e biologia, quando seus praticantes trabalham com teoria e não "aplicações práticas", o que quer que isso queira dizer. Mas o fato é que só uma pessoa muito burra ou uma calculadora biológica poderia equivaler um viciado em drogas com um filósofo ou um cientista teórico—ou um pintor, um poeta, um romancista, um músico, um ator, etc.