Bolsonaro, Alvim e Goebbels

Há alguns anos atrás, quando o presidente americano foi eleito, escrevi em uma rede social que grande parte de seu eleitorado era sim simpatizante da supremacia branca e do nazismo. O que quis dizer com "grande parte" ali foi o seguinte: uma parcela significativa de seus eleitores, porém não todos, claro, acreditam que brancos europeus são biologicamente superiores, especialmente se forem europeus do norte. Na época, um conhecido meu, que é brasileiro, branco e de direita, retrucou. Disse que eu estava cometendo o argumentum ad Hitlerum, um termo jocoso que se refere a atitude falaciosa de equivaler o argumento contrário ao nazismo.


É verdade que tal atitude existe e é verdade que, ao acusarmos todos aqueles que nos opomos de serem fascistas, nazistas ou o que quer que seja sem reflexão alguma, empobrecemos o debate político e trivializamos o que realmente foi o fascismo e o nazismo na história humana. O mesmo ocorre quando direitistas acusam qualquer esquerdista, mesmo um social-democrata, de ser apoiador de ditadores brutais de esquerda, cometendo o reductio ad Stalinum. Porém, ao afirmar que boa parte dos eleitores do presidente americano eram simpatizantes de algum tipo de supremacismo branco ou nazistas declarados, não estava cometendo o argumentum ad Hitlerum. Pelo contrário, estava apenas verbalizando uma realidade.


Não tirei aquela afirmação de 2016 do éter, nem muito menos a baseei em um suposto pânico ou histeria ideológica de esquerda. Tal afirmação foi baseada na minha vivência nos Estados Unidos e nas palavras de americanos que conheço intimamente desde a adolescência. Além disso, baseei-me em análises profissionais e acadêmicas. Algum leitor pode pensar que convivi com esquerdistas virulentos lá, mas esse não é o caso. Pelo contrário, a maioria nunca tinha votado uma única vez em candidatos democratas ao longo da vida. Até mesmo eles, eleitores republicanos, perceberam o que acontecera naquela eleição. Mas há brasileiros, seguidores de Olavo de Carvalho—pessoas que nunca nem sequer saíram da região onde moram para visitar outras partes do seu próprio paísque pensam saberem mais do que os próprios americanos, do que eu, e do que uma parcela significativa dos acadêmicos e observadores políticos experientes.

São exatamente esses brasileiros, e pessoas influenciadas por eles, que fizeram pouco caso do que eu e tantos outros escreveram em 2016 de boa parte da base eleitoral do presidente americano. E são exatamente esses brasileiros e pessoas influenciadas por eles que compuseram a espinha dorsal dos eleitores de Jair Bolsonaro em 2018. É verdade que muitos deles não perceberam que estavam e estão alimentando as chamas de um movimento neonazista mundial. Acreditaram e ainda acreditam na balela de que tudo isso não tem nada a ver com questões raciais, que estão apenas lutando uma guerra cultural contra esquerdistas que supostamente querem destruir as fundações judaico-cristãs do Ocidente.

Acontece que essas pobres almas são ignorantes (ou burras mesmo) do que realmente ocorre: os líderes dessa patota que se consideram brancos o suficiente—pessoas como o agora exonerado Roberto Alvimapenas fingem acreditar na óbvia mentira da "guerra cultural". Eles fingem que consideram nazismo de esquerda. No seu íntimo, eles não apenas não acham que o nazismo não foi de esquerda, como sabem que foi a epítome de tudo o que a direita simboliza: a hierarquização absoluta dos homens; a ideia de pureza racial europeia; a defesa da nobreza, dos grandes proprietários e herdeiros; a escravização e extermínio de grupos considerados inferiores. Eles amam o nazismo e se lamentam que a Alemanha tenha perdido a Segunda Guerra Mundial. Sonham com uma história alternativa. Negam o holocausto ao mesmo tempo em que desejam realizá-lo—continuá-lo, na verdade, embora finjam que acreditam que não houve extermínio de judeus.

Hoje sabemos que Bolsonaro não iria demitir Alvim após seu vídeo patético, boçal e nazista em defesa de uma nova arte "heroica" e "nacional". Ele só o fez depois que percebeu que a coisa iria feder muito para o lado dele. A estética nazista e o discurso tirado claramente de Goebbels foram as razões pelas quais Alvim caiu. O conteúdo, porém, está mantido, mesmo com Regina Duarte agora ocupando a posição de secretária da cultura. O projeto de arte do governo Bolsonaro continua defendendo temas "heroicos" e "nacionais", o que quer que essas coisas queiram dizer. Regina Duarte agora está se proclamando contra o bicho-papão do "marxismo cultural".

O antigo secretário da cultura expressou suas convicções publicamente porque seu tesão pelo Terceiro Reich era tanto que ele não aguentou esconder. Os outros membros do governo e boa parte do eleitorado do Jair são menos burros do que ele, sabem que é melhor não copiar discursos de Goebbels palavra por palavra. Mas todos eles—ou pelo menos aqueles que se consideram "europeus" o suficiente—esperam o dia em que poderão sair de suas casinhas e proclamar suas crenças abertamente, de preferência colocando opositores políticos e todos aqueles que consideram inferiores em campos de extermínio.

Duvida que esses tipos existem? Basta ver o sujeito que foi a um bar em Minas Gerais com uma faixa no braço igual a utilizada pelos membros do partido nazista, com suástica e tudo. Antes de descartá-lo como "apenas um lunático", é bom entender que ele é apenas um dos casos mais visíveis. A grande maioria não tem apego a símbolos, mas suas atitudes e crenças são exatamente as mesmas. Nem tudo precisa ser exatamente igual ao que foi no passado para ser considerado como uma continuidade.

Referências:
1. No, it’s not the economy, stupid. Trump supporters fear a black and brown America. (Miami Herald)
2. Top Democrats Are Wrong: Trump Supporters Were More Motivated by Racism Than Economic Issues (The Intercept)
3. Polls show many — even most — Trump supporters really are deeply hostile to Muslims and nonwhites (Vox)
4. Secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim faz discurso sobre artes semelhante ao de ministro da Propaganda de Hitler (G1)
5. Políticos, entidades e artistas criticam discurso em que secretário da Cultura usa frases semelhantes às de nazista (G1)
6. Bolsonaro não queria demitir Alvim, mas foi convencido após ligação de Alcolumbre (Huffington Post Brasil)
7. Regina Duarte posta vídeo contra 'marxismo cultural' e retoma 'guerra' de Alvim (Folha de São Paulo)
8. Homem usa faixa com suástica no braço em bar de MG e polícia é acionada (G1)
9. MPMG denuncia homem flagrado usando suástica em bar de Unaí (G1)
10. Homem é indiciado após pendurar camiseta com suástica em janela de apartamento em SC (G1)