A vida é muito ruim e nunca vale a pena (ser iniciada)

Considere a capacidade do corpo humano para o prazer. Às vezes é prazeroso comer, beber, olhar, tocar, cheirar, ouvir, fazer amor. A boca. Os olhos. As pontas dos dedos. O nariz. As genitais. Nossas capacidades voluptuosas (me perdoe minha cunhagem) não são apenas concentradas aqui. O corpo inteiro é suscetível ao prazer, mas há poços, em algumas partes, que o trazem em maior quantidade. Mas ele não é inesgotável. Quanto tempo é possível conhecer o prazer? Romanos ricos comiam até a saciedade e depois vomitavam suas barrigas cheias para comer novamente. Mas eles não conseguiam comer para sempre. Uma rosa é doce, mas o nariz se habitua ao seu cheiro. E quanto aos prazeres mais intensos, os êxtases do sexo que aniquilam nossa personalidade? [...] Mesmo que eu fosse uma mulher e pudesse ter um orgasmo atrás do outro como pérolas num colar, com o tempo me cansaria deles. [...] Agora considere. Considere a dor. Dê-me um centímetro cúbico de sua pele e eu poderia te proporcionar dores que o engoliriam como o oceano engole um grão de sal. E você sempre estaria disposto para ela, desde antes do seu nascimento até o momento da sua morte. Estamos sempre em temporada para o abraço da dor. Para experimentar a dor, não é preciso inteligência, maturidade, sabedoria, não é necessário que o trabalho lento dos hormônios deixe nossas partes íntimas molhadas. Estamos sempre prontos para ela. Toda a vida está pronta para ela. Sempre. [...] Considere as maneiras através das quais obtemos prazer. [...] Considere as maneiras pelas quais nós sentimos dores. Uma está para a outra como a Lua está para o Sol. (ALDAPUERTA, 1995)
O julgamento de Cambises, pintura de Gerard David

Citei o fragmento acima da maneira como Ray Brassier (2007) o apresenta em seu livro, Nihil Unbound. Porém, a citação não é completa. O texto completo de onde essa citação saiu se encontra no livro (título em inglês, me perdoem) The Eyes: Emetic Fables from the Andalusian de Sade. A tradução foi feita por mim, do inglês. 

Pareceu-me apropriado colocar isso no início deste pequeno texto, porque as palavras me lembram Schopenhauer (2015), Cioran (1989), Zapffe (1933) e Ligotti (2010). É deles e da minha própria vida que tiro a inspiração para escrever hoje. E também a observação que faço de outras vidas. Falo aqui das vidas humanas. Se falasse das vidas animais, a conclusão seria ainda pior. 

Mais de uma vez, ao longo dos últimos anos, amigos me perguntaram se as coisas boas não justificariam a vida, ainda que existam em menor quantidade e até intensidade do que as coisas ruins. Eu argumentaria que elas não justificam a vida. "E se houvesse mais prazer do que dor? E se os estados positivos fossem mais intensos do que os negativos?" Também não e não. Aliás, ainda que fôssemos como os deuses, ainda que nascêssemos imortais e sem a capacidade de sentir dor física, mas apenas prazeres e estados positivos, continuaria argumentando que não valeria a pena vir ao mundo. Junto aqui duas perspectivas: a de David Benatar e a de Julio Cabrera. 

Para Benatar (2006), se fôssemos como os deuses, seria indiferente nascermos ou não, já que, ao não sermos criados para experimentar essa imortalidade e ausência de dor, nunca teríamos existido, logo não haveria ninguém para experimentá-las. Para ele, a ausência de um ser que nunca existiu e não pode experimentar estados positivos não deve ser lamentada; mas a ausência de um ser que nunca existiu e não passou pelas dores da vida pode sim ser celebrada (é positivo mesmo que não haja ninguém para celebrar; um exemplo que podemos dar é que, intuitivamente, ninguém lamenta a inexistência de marcianos que guerreiam e exploram uns aos outros como nós, humanos existentes, fazemos na Terra). Já para Cabrera (2018), ainda que fôssemos imortais e não sentíssemos dor, não valeria a pena existir, porque dores físicas, apesar da sua predominância e importância, nem sequer formam a totalidade dos estados negativos pelos quais os seres sencientes passam — e eu adiciono aqui: para seres dotados de inteligência e capacidade reflexiva, principalmente, dores físicas são apenas um aspecto negativo da vida dentre inúmeros outros aspectos negativos. 

A coisa muda de figura para Benatar caso o ser passasse por uma única dor, como topar o dedão do pé. Neste caso, não deveríamos ser indiferentes, mas totalmente contrários a criação desse novo ser. Ou seja: ele advoga que cessemos nossa reprodução, visto que todos nós, mesmo aqueles mais privilegiados, sentem dores ao longo da vida muito maiores do que a produzida quando batemos o dedão do pé numa quina — claro, quem o lê de fato (ao invés de ler reportagens bobas que reduzem sua filosofia à tuites e postagens de Facebook) sabe que Benatar não espera em nenhum momento que as pessoas façam isso, nem sequer advoga que forcemos os outros a não procriar; Cabrera também não. Aliás, Cabrera e Benatar, apesar das diferenças, concordam em muita coisa, especialmente se levarmos em conta a vida real e não divagações hipotéticas e fantasiosas como "imortalidade" e "capacidade de não sentir dor". 

A pergunta sobre o suicídio acaba aparecendo nesse momento: "você acha então que devemos nos matar?". Tanto Benatar quanto Cabrera não são (a princípio) a favor do suicídio, por razões não muito diferentes. Posso e vou resumi-las da seguinte forma: enquanto suas filosofias chegam à conclusão de que é melhor não vir ao mundo — através de argumentos um pouco diferentes, mas que não são incompatíveis —, quando chegamos ao mundo, temos um interesse em continuar existindo, tanto para nós mesmos, quanto para os outros. Pode parecer incrível para quem considera esse tipo de ética um absurdo, mas ambos os filósofos acreditam que um suicida, além de pensar nas suas próprias considerações, deveria fatorar também as pessoas próximas e o quanto ele as faria sofrer caso se matasse. 

Tendo dito isso, pelo menos no caso de Benatar, há a aprovação da eutanásia, em casos que o mal da morte não seja maior do que sofrimentos absurdos. A morte, para ele, é um dos grandes males da vida, o mal final. Em nenhuma hipótese Benatar considera morrer o mesmo que não ter nascido, pelo simples fato de experimentarmos toda esta porcaria — Cabrera argumenta de forma similar. No caso de Benatar, há também uma aprovação do aborto, desde que realizado antes do momento em que o consenso científico aponta para a capacidade do feto de sentir dor, advinda da aquisição de uma consciência, ainda que em estágios iniciais. Não vejo porque não concordar com a eutanásia e o aborto da forma explicada. Aliás, concordo também com uma outra posição dele: antes do feto adquirir consciência e ser capaz de sentir dor, o certo seria abortar. Infelizmente, no Brasil, este é um direito negado às mulheres pelas razões mais obscurantistas possíveis. 

Por outro lado menos contemporâneo e mais especulativo, mas ainda filosófico, temos Schopenhauer e Cioran. Para Schopenhauer, a toda a existência é permeada por uma força metafísica que ele denomina como "vontade". Essa força é irracional, errática e visa apenas a sua perpetuação, independentemente das dores que causa. Schopenhauer também foi contra o suicídio, mas assim como Benatar e Cabrera, não por razões religiosas ou emotivas. Aliás, ele afirma que não devemos nunca julgar um suicida como pecador ou covarde, primeiro porque pecado não existe, segundo porque todos nós já tivemos pesadelos dos quais a única alternativa foi tentar acordar — e, para muitos, a vida é um grande pesadelo do qual "acordamos" apenas através da morte. 

O problema do suicídio, para Schopenhauer, é que ele mata apenas o indivíduo, e não a vontade. O correto, segundo ele, é tentarmos esfomear a vontade dentro de nós, negando-a. 

Cioran, por outro lado, não possui uma filosofia sistemática e é extremamente cético quanto questões metafísicas, sejam elas transcendentes ou imanentes. Que a existência é caótica e irracional, ele concorda, mas não vê a necessidade de se formular sistemas e especular sobre forças que existam por de trás dos panos da realidade. Ainda que existissem, nunca saberíamos ao certo. O que sabemos é que a vida é sofrimento. Tanto Cioran quanto Schopenhauer (mais ainda Schopenhauer, pois atribui isso à uma artimanha da vontade) argumentam que, apesar da vida ser um vasto oceano de misérias, ela nos proporciona momentos sublimes, seja através do prazer ou através de algum tipo de estado positivo, apenas para nos enganar. Basicamente, a vida nos dá migalhas o suficiente para que acreditemos que ela vale a pena ser perpetuada indefinidamente. Cioran condena o suicídio menos ainda do que Schopenhauer e Benatar, mas ainda assim escreve que não precisamos apelar para ele, pelo menos não hoje. Um dia, quem sabe: ele é a favor de mantermos a ideia de suicídio em reserva. Esta ideia, por si só, já nos serve como um tipo de alívio.

Neste ponto é possível que o leitor questione o título, já que não apresentei tantas evidências de que a vida é muito ruim — apesar de ter apresentado, de forma extremamente resumida e incompleta, um argumento de que ela nunca vale a pena, na parte em que falo sobre a dor de bater o dedão do pé numa quina. Aliás, não apresentei nenhuma evidência da vida ser muito ruim ao longo do texto. O leitor estará certo em questionar essa ausência, mas pelas razões erradas. Que a vida é muito ruim deveria ser algo auto evidente à esta altura da história: ela é um emaranhado de dores e situações negativas (se incluirmos o tédio, estas aumentam exponencialmente) pontuada por alguns momentos maravilhosos, difíceis de obter e fugazes. Mesmo as melhores vidas são tão ruins, que sobram poucas dúvidas de que o fenômeno da vida em geral seja um equívoco. As melhores vidas só parecem boas para nós porque não as temos; a inveja sendo, infelizmente, um dos sentimentos mais primordiais da humanidade. Deixo vocês com um aforismo de Confissões e Anátemas:
Em todas as idades da nossa vida, nós descobrimos que a vida é um erro. Apenas aos quinze é que essa revelação combina um estremecer de medo e um toque de encantamento. Com o tempo, essa revelação, degenerando-se, torna-se um truísmo, e então nós acabamos nos arrependendo do período em que ela era fonte do inesperado. (CIORAN, 2012)

Por Fernando Olszewski

Referências:
. ALDAPUERTA, Jesús Ignacio. The Eyes: Emetic Fables from the Andalusian de Sade. London: Headpress, 1995. Translated by Lucia Teodora.
. BENATAR, David. Better Never to Have Been: the harm of coming into existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.
. BRASSIER, Ray. Nihil Unbound: Enlightenment and Extinction. New York: Palgrave Macmillian, 2007.
. CABRERA, Julio. Mal-estar e moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: Editora Unb, 2018.
. CIORAN, Emil. Anathemas and Admirations. New York: Arcade, 2012. Translated by Richard Howard.. CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Translated by José Thomaz Brum.
. LIGOTTI, Thomas. The Conspiracy Against the Human Race. New York: Hippocampus Press, 2010.
. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora Unesp, 2015. Tradução de: Jair Barboza.. ZAPFFE, Peter Wessel. The Last Messiah. S.L: S.N., 1933. Translated by Gisle R. Tangenes. Available at: https://philosophynow.org/issues/45/The_Last_Messiah.