De onde vem a sua moral?

Ano passado, durante uma conversa casual com um velho e querido conhecido meu, fui questionado sobre como seria possível sabermos o que é certo e errado sem a existência de um pós-vida regulado por uma divindade que distribui justiça universal para todos. Mais recentemente, amigos meus que são descrentes foram questionados por colegas de trabalho sobre a origem da moral. Seus colegas queriam saber de onde viria a moral se não do decreto divino.

Moisés segurando os dez mandamentos, de Rembrandt

Essas e outras questões similares são muito antigas. No diálogo platônico Eutífron, Sócrates pergunta para Eutífron o seguinte: "Então, a piedade é amada pelos deuses porque é piedade, ou é piedade porque é amada pelos deuses?" Em outra tradução, a pergunta é escrita da seguinte maneira: "o piedoso é amado pelos deuses porque é piedoso ou porque é amado pelos deuses que é piedoso?" Essa pergunta tornou-se famosa ao longo da história da filosofia e, também, da teologia. Adaptada ao contexto monoteísta cristão, ela pode ser formulada da seguinte forma, escrita por Leibniz:
É geralmente aceito que a vontade de Deus é boa e justa. Mas permanece a questão sobre se ela é boa e justa porque Deus deseja que seja ou se Deus a deseja porque ela é boa e justa: em outras palavras, a justiça e a bondade são arbitrárias ou elas são parte de verdades necessárias e eternas sobre a natureza das coisas, como são os números e as proporções. 
Colocando ainda de outra forma: uma norma é moral porque Deus decreta que seja (e portanto ele poderia alterar o que é moral e imoral a seu bel prazer) ou Deus nos dá a lei moral porque ela é universal e necessária (e portanto nem mesmo Deus poderia alterá-la)?

Infelizmente, graças a pobreza educacional de boa parte da humanidade, algo que é regra no nosso país, aqueles que ainda conseguem levantar a questão sobre a origem da moral ou da ética não costumam enxergar os graves problemas que advém quando jogamos a origem da moral nas costas de uma divindade. Quando uma pessoa diz que "o certo e errado vêm de Deus" ou então afirma que "sem um legislador eterno tudo é permitido", ela não explica absolutamente nada. O triste é que, na maioria das ocasiões, ela não vai nem sequer saber que nada foi elucidado.

Essa discussão é milenar. Há problemas nos dois lados do dilema, comumente chamado de "dilema de Eutífron". No lado que afirma que a moral existe por si e que Deus não poderia ensiná-la aos homens de outro jeito, nos deparamos com os seguintes problemas: a divindade, então, jamais poderia nos passar uma moral diferente, ela está presa à definições eternas e necessárias de bondade, justiça, piedade. Dessa forma, portanto, não poderíamos afirmar que Deus é onipotente, visto que ele não teria o poder de mudar a lei moral. Outra questão que aparece nesse lado do dilema é que uma divindade (talvez) não fosse necessária para o entendimento da moral, visto que a bondade, a justiça e a piedade seriam aspectos da realidade independentes da soberania divina.

Tradicionalmente, diz-se que esse lado do dilema foi defendido, de maneiras diferentes, por Tomás de Aquino, Averroes, Leibniz e outros pensadores, muito embora vários deles não tenham mencionado o dilema explicitamente. A moral, neste caso, poderia ser considerada como algo anterior à vontade divina. Da mesma forma que uma divindade não poderia decretar um triângulo de quatro lados, pois isso iria contra verdades geométricas universais e necessárias, ela também não poderia decretar que o homicídio é bom, justo, necessário ou correto.

Do outro lado, temos a afirmação de que a moral é decretada por Deus. Neste campo, temos pessoas como Lutero, Calvino, Descartes, grande parte dos doutrinadores protestantes e muçulmanos, etc. Aqui também vemos alguns problemas. Se a moral advém exclusivamente do decreto divino, então ela é totalmente arbitrária e depende somente do humor da divindade — ela depende completamente dos deuses ou de Deus e pode ser alterada a hora que a divindade bem entender. Deus, sendo onipotente, poderia amanhã decretar os mais grotescos vícios como sendo virtudes, e vice-e-versa. Além disso, partindo do princípio que só um Deus (ou deuses) pode ser capaz de nos prover uma lei moral, caso não exista alguma divindade legisladora, corremos o risco de não podermos nunca afirmar que o mais repugnante ato seja, de fato, ruim ou errado.

Esse lado do dilema também enfrenta outro problema, problema esse que é baseado em uma argumentação originalmente articulada por David Hume no seu Tratado da Natureza Humana e depois formulada diferentemente por G.E. Moore, no começo do século XX, através da chamada "falácia naturalista". Aqui desviarei um pouco do tópico principal do texto, mas retornarei logo em seguida para concluí-lo.

Hume, em determinado momento do Tratado, critica os diversos sistemas morais existentes até então, pois percebe que seus formuladores passam de uma descrição do mundo como ele é e, então, sem explicar direito, eles afirmam como as coisas deveriam ser. Por exemplo: da afirmação factual "o homem sente dor", os formuladores da maioria dos sistemas morais concluíam (segundo Hume) que "causar dor nos outros é mau ou errado". Isso seria um salto de raciocínio, porque premissas factuais não são capazes de nos dar conclusões normativas. Moore afirmou algo parecido. Para ele, muitos filósofos tentariam reduzir sentenças morais à propriedades naturais ou metafísicas do mundo. Apesar disso, nenhum dos dois era niilista moral. Hume enxergava a moral como um produto válido não da nossa razão, mas das nossas emoções, ao passo que Moore era um proponente do realismo não-naturalista — para ele, conceitos morais são reais, mas não podemos reduzi-los a propriedades naturais, como "sensações boas" ou "prazer", por exemplo, nem a conceitos metafísicos ou sobrenaturais.

A partir dos questionamentos apresentados por Hume e depois por Moore, chegamos a outro problema com relação ao lado do dilema que afirma a moral como sendo decretada por Deus. Se levarmos em conta a falácia naturalista, percebemos que não temos como deduzir uma moral a partir do comando divino. Afinal, a divindade pode ordenar x, mas dessa ordem não podemos concluir que x é bom, nem mesmo se a divindade afirmar que x é bom — ela teria que explicar as razões pelas quais x é bom sem apelar à sua autoridade e sem dar saltos de raciocínio, da mesma maneira que qualquer um de nós.

Mas é preciso dizer que, em si mesma, a questão da falácia naturalista — seja ela a formulada por Hume ou por Moore — é um debate gigantesco e interminável dentro da ética e da meta-ética. Um filósofo que cito bastante neste blog é Julio Cabrera, professor aposentado da Universidade de Brasília. Ele é um dos que criticam o apelo da falácia naturalista e defendem que a questão ética não deve ser vista como uma simples dedução lógica entre um (ou mais) "é" factual e um "dever ser" normativo. Cabrera aceita que não podemos deduzir friamente a conclusão normativa "devemos evitar de causar dor nos outros" a partir de premissas empíricas como "todos sentimos dor" e "pessoas com dor sofrem" — ele, portanto, concorda com Hume neste ponto. Porém, para Cabrera e outros que rebatem a falácia naturalista, a ética não lida com questões estritamente do âmbito da lógica formal, há um componente de tomada de decisão por parte de alguém que se relaciona com outros pacientes morais.

Cabrera concorda que tentar deduzir imperativos morais de fatos sobre o mundo é algo problemático. Contudo, para ele, a moral pode sim ser argumentada considerando os fatos sobre o mundo, desde que não se pretenda que argumentar que o imperativo moral seja fruto de uma conclusão estritamente lógica e desde que se entenda o aspecto crucial da tomada de decisão. Podemos, portanto, formular imperativos morais a partir daquilo que "é", desde que tenhamos em mente que eles não chegam até nós através de uma ligação ininterrupta entre premissas e conclusões, como num silogismo. A formulação de um imperativo ético, para Cabrera, vem da análise sobre fatos do mundo: depois de observados os fatos do mundo e formulados imperativos que levam em conta esses fatos (mas que não são deduzidos logicamente deles), há a etapa da decisão dos agentes morais. Essa decisão leva em conta tanto as emoções quanto também a razão, embora não a razão da lógica formal e silogística.

Esse tipo de contra-argumento forma apenas uma linha de respostas à falácia naturalista. Contudo, apesar dos furos que a falácia naturalista possua ou não, ela continua sendo um dos problemas enfrentados por um dos lados do dilema de Eutífron, a lembrar: a afirmação de que aquilo que a divindade decreta é moral pelo simples fato da divindade tê-lo decretado.

Voltando agora à questão principal: podemos afirmar que boa parte das pessoas que atribuem valores de bondade, justiça, piedade, certo e errado a uma fonte divina, realiza essa manobra sem entender que ela, por si, não explica absolutamente nada sobre os valores morais. Ambos os lados do dilema não explicam por que os valores morais seriam corretos em primeiro lugar: se a divindade nos ensina o que é moral, mas não é ela quem decreta a moral, então de onde vêm os valores morais, de algum lugar acima da divindade? Por outro lado, se a divindade decreta o que é moral, então poderia ela decretar valores morais totalmente opostos? Nada é explicado.

Existem respostas a diversos dos problemas levantados pelo dilema, inclusive pelos pensadores citados anteriormente (Aquino, Leibniz, Descartes), além de outros não mencionados (Agostinho, Anselmo). Boa parte delas argumenta que o dilema não é real, mas sim uma espécie de falso problema. Mesmo Aquino, que muitos identificam como defensor de um dos lados do dilema — o lado que afirma que Deus se conforma à moral e seria incapaz de decretar uma moral diferente — é visto por outros estudiosos como parte daqueles que enxergam a proposta do dilema como falsa. Escrevi "proposta do dilema" porque Aquino e muitos outros pensadores aparentemente nunca o citaram explicitamente, embora todos tenham tratado de suas ramificações.

Aquino, por exemplo, apesar de rejeitar a possibilidade de Deus ser capaz de decretar leis morais diferentes daquelas que sua tradição religiosa católica defendia, também rejeitava a ideia de que bondade existe como algo real em si, algo ao qual Deus simplesmente se conforma. Dessa forma, ambos os lados seriam rejeitados por ele. A ideia de que o dilema é falso vem, muito resumidamente, da equivalência que alguns pensadores fizeram entre divindade e a propriedade moral. Portanto, Deus não seria bom por se conformar com a bondade, nem seria o legislador que decreta arbitrariamente o que é bom para a humanidade, mas a própria essência da bondade. O que Deus decreta é bom por que Deus em si é identificado com bondade.

Essa e outras respostas, entretanto, passam anos-luz das atuais pregações incessantes que martelam no cotidiano uma visão simplista e — eu argumento — perigosa da moral. A verdade é que, mesmo havendo respostas possíveis ao questionamento que coloca em xeque a ideia corrente de que a moral vem de Deus, acaba sendo muito fácil respondermos àqueles religiosos que nos indagam sobre a suposta impossibilidade de discernirmos uma moral sem Deus. Podemos, como exemplo, tomar por base Cabrera e outros pensadores e argumentar que, embora não possamos deduzir friamente a norma "devemos nos abster de machucar os outros" através das premissas empíricas "pessoas machucadas sentem dor" e "sentir dor é sofrer", nós podemos defender, através de argumentos não dedutivos, que tal decisão é moral e que decisões contrárias (decisões que contemplam causar dor aos outros) são imorais ou anti-éticas.

É certamente muito mais fácil argumentar dessa forma, inclusive apelando às mais diversas teorias morais que não necessitam da presença divina — ética da virtude, utilitarismo em suas diferentes versões, deontologia, emotivismo, ética negativa, etc — do que defender a tese de que tudo é permitido na ausência de um legislador cósmico, inclusive matar por prazer. Isso porque o defensor do legislador cósmico ainda terá que explicar, de maneira convincente, como exatamente a moral se relaciona com a divindade, além dos diversos outros problemas que surgem com relação à existência da divindade e qual denominação religiosa tem acesso à verdadeira versão do divino.

Observação:
Na filosofia, geralmente, os termos "ética" e "moral" podem ser usados como sinônimos sem problema algum. Ética é uma palavra que vem de um termo grego usado para designar um conjunto de normas, regras e formas de agir de um grupo. Moral significa a mesma coisa, mas vem do latim. Aliás, a palavra latina que deu origem à nossa palavra "moral" é uma tradução romana do termo grego que deu origem a nossa palavra "ética". Com o passar do tempo, ética tornou-se o estudo filosófico da moral. Assim como ontologia é a filosofia do ser, ética é a filosofia da moral. Então, simplificando bastante, se quisermos diferenciar entre ética e moral, podemos fazê-lo da seguinte forma: a moral é o conjunto de normas, regras, valores e formas de agir de um determinado grupo, enquanto que a ética é o estudo filosófico desse conjunto de normas, regras, valores e formas de agir.