Guedes e seus fãs: um desabafo

Há alguns dias, Paulo Guedes disse que o dólar alto era bom para economia brasileira. Além de ter usado a ocasião para ofender empregadas domésticas (depois tentou explicar, dizendo que não era ofensa, mas um exemplo didático, coisa que ele costumava fazer quando dava aula... Quê?), ele passou aquele migué de que o dólar alto é excelente, pois beneficia as nossas exportações. A verdade é bem mais complexa do que essa, mas liberais defensores de Guedes parecem não entender ou ignoram isso completamente em favor de wishful thinking e torcida irracional.

Charge do Latuff

Desde o governo Temer, e depois do início do governo Bolsonaro, foram prometidas (e cumpridas) reformas liberais na economia brasileira. No governo Temer, fizeram a reforma trabalhista, flexibilizando os direitos dos trabalhadores com o objetivo de desonerar o empregador. Agora, no governo Bolsonaro, saiu a reforma da previdência. Em todo esse tempo, prometeram um aumento substancial do emprego, ainda que não imediato—quanto tempo devemos esperar, só Deus sabe, claro. Principalmente, foi prometida a entrada de investimento estrangeiro no Brasil, o que impulsionaria a geração de empregos. Os estrangeiros supostamente perderiam o medo de enfiar centenas de bilhões de dólares no nosso país para realizar empreendimentos (e não por mera especulação financeira, como fazem quando nossos juros estão altos) quando vissem nossas reformas liberais. Isso supostamente geraria crescimento, emprego, renda e desenvolvimento.

Se você acreditou nisso, parabéns, você foi enganado. "Mas eu sou formado em X e tenho carreira em Y." Sei que é duro de engolir, mas você foi sim enganado mesmo assim. Acorde, ou o próximo passo é acreditar em Terra Plana e ser contra as vacinas.

Entendam uma coisa de uma vez por todas: a maioria dos estrangeiros só vai tirar dinheiro dos seus países ricos e estáveis e colocá-lo numa zona como o Brasil, ainda mais com um teocrata desvairado na presidência (e com ministros, tanto civis quanto militares, com baixíssima capacidade cognitiva), por uma única razão: juros altos pagos pelo governo. Eles investirão aqui apenas se os juros de nossos títulos estiverem altos o suficiente ao ponto de isso os convencer a não investir tudo o que têm—ou boa parte—em títulos do tesouro americano e outros investimentos—também seguros—ao redor do mundo. A maioria dos investidores estrangeiros confia que o governo brasileiro continuará pagando a dívida, eles confiam que nós não daremos calote, coisa que há tempos o governo brasileiro não faz. Mas a maioria deles NÃO confia o suficiente para investir centenas de bilhões de dólares aqui com o objetivo de realizarem empreendimentos particulares que podem ou não dar certo.

Alguns vão confiar? Claro. Mas não em número suficiente. Fãs de Guedes precisam esquecer isso e acordar para a realidade, ou serão enganados a vida inteira. "E os nossos industriais brasileiros? Agora que os juros estão baixos, por mais que isso afaste os estrangeiros, isso necessariamente incentivará a indústria nacional, certo?" Errado. Uma parcela significativa dos donos de indústria no Brasil há tempos não contam com suas próprias indústrias como fonte principal de renda. Mesmo aqueles que não se desfizeram completamente de suas empresas têm nos papéis financeiros—desde títulos, até ações—sua principal fonte de renda. Mas foquemos na questão do dólar alto e do investimento estrangeiro no país, pois os liberais, incluindo Guedes, afirmaram que choveriam dólares no país após as reformas.

Defensores de Guedes fingem que gostam de números, enquanto criticam qualquer oposição ao liberalismo dele como "socialismo burro" ou "emotivismo sem fundamentos sólidos". Tudo bem. Aqui vão alguns números: quando o famigerado PT assumiu a presidência em 2003, o país tinha US$ 15 bilhões em reservas cambiais, mais US$ 35 bilhões emprestados do FMI. No início de 2016, último ano do PT no poder, o país contava com uma reserva de mais de US$ 370 bilhões. Curiosidade, o PIB do Brasil em 2016 era de US$ 1,794 trilhões.

Pois bem. Só no ano passado, primeiro ano de reinado de Guedes na economia, o país queimou US$ 44,768 bilhões das reservas. O mundo não está crescendo tanto quanto na primeira década dos anos 2000, é verdade, mas não está em recessão, pelo contrário. Não há uma crise mundial, como vejo bolsonaristas comentarem em matérias de jornal online. Não houve nada de bizarro entre 2016 e dia 1 de janeiro de 2020. Apesar de não ser o melhor cenário, não tem sido um cenário ruim. Mas, ainda assim, conseguimos queimar quase 44,8 bilhões de nossas reservas cambiais. Isso quer dizer que investidores retiraram US$ 62,244 bilhões da economia brasileira, enquanto que injetaram só US$ 17,475 bilhões, apenas no ano de 2019. Não se via uma fuga de dólares assim do Brasil há 38 anos. A segunda maior fuga, antes da atual, fora a de 1999, quando o FHC abandonou a política de paridade e saíram US$ 16,18 bilhões do país do dia para a noite. Agora, a fuga de 1999 é a terceira maior da história do Brasil e esta de 2019 é a maior.

"Mas como você pode defender o PT? Foi a corrupção do PT que quebrou o país!" Não estou defendendo o PT, mas uma postura econômica que foi feita. E não, corrupção nenhuma, mesmo de alguns bilhões, é capaz de quebrar uma economia integrada ao mercado global e com um PIB de 1,8 trilhões de dólares. Se você acredita que o desvio de alguns bilhões (por mais imoral e criminoso que seja, e foi) tenha o poder de quebrar uma economia de 1,8 trilhão de dólares, você acredita em qualquer coisa. A maior desgraça econômica feita entre 2003 e 2016, durante a era PT, não foi a corrupção—embora ela não tenha ajudado—mas o total desperdício de uma excelente oportunidade: o rompimento com a crescente desindustrialização do país, algo que não chegou nem perto de ser realizado. Esta política desgraçada—que não se preocupa em tornar o Brasil num país industrial de ponta, achando que uma economia avançada brotará milagrosamente do chão, mesmo tendo uma educação péssima que faz com que nós brasileiros tenhamos baixíssima produtividade—continua agora no governo Bolsonaro e não tem data de vencimento.

"Mas muitos países ricos passaram a ter no setor de serviços a maior fatia de sua renda!" Sim, países que eram altamente industrializados antes e continuam hoje, através de suas indústrias, produzindo uma quantidade absurda de bens, de alto valor agregado, que o mundo inteiro consome. O Brasil, por mais que tenha tido (e ainda tenha algumas) indústrias, nunca chegou perto de ser uma economia industrial no nível desses países. Se assim fosse, não escutaríamos há quatro décadas a maldita propaganda que vivem martelando em nossas cabeças—aquele besteirol de dizer que o agronegócio, o minério e o petróleo são nossas maiores riquezas. Entendam uma coisa: se o Brasil e seus recursos naturais sumissem do planeta, EUA, China e Europa seriam capazes de alimentar a si próprios (e uns aos outros, junto com o resto do comércio mundial) sem problema algum. Poderia haver um ou outro problema na questão de minérios, mas nada que não pudesse ser resolvido. E na questão do petróleo e gás, idem.

Enquanto o brasileiro acreditar que dá para um país se desenvolver com uma educação precária, sem investimentos fortes em indústrias de ponta, estaremos ferrados. Seremos um país de capiau, no sentido mais escroto do termo "capiau". O Brasil começou a se desindustrializar antes mesmo de conseguir se tornar um país industrial de ponta. Uma coisa são os EUA, a França ou a Alemanha diminuírem a participação de suas indústrias na geração da renda total e ver o seu setor de serviços aumentar. As indústrias que permanecem nesses lugares produzem bens de alto valor agregado e os exportam para o resto do mundo, inclusive para o Brasil, trazendo uma quantidade enorme de riquezas para eles. Nós não temos esse luxo, nunca tivemos.

E não são apenas produtos finais. Até insumos de alto valor, que hoje são indispensáveis para a produção de bens industriais, são produzidos por esses países. Não acredita? Pois bem: na média, 40% das peças de um carro produzido no Brasil vêm do exterior. São compradas com DÓLARES, dólares estes que agora estão quebrando recordes de valorização no mercado cambial, por conta de uma verdadeira fuga de investidores estrangeiros do Brasil. Mas, e quanto a afirmação de Guedes que o dólar alto ajuda? Bom, primeiro que se fosse assim mesmo, o Banco Central não teria tentado por diversas vezes esse ano estancar a sangria. Pelo contrário, tentaríamos colocar o dólar a dez reais, coisa que ninguém quer.

Segundo que dólar alto não nos beneficia muito para além da exportação de commodities (visto que boa parte de nossa produção industrial tem uma quantidade significativa de insumos importados e negociados em dólar, o que afeta o preço final), e commodities veem sua demanda variar de tempos em tempos. Nos anos 2000, o Brasil lucrou com o alto preço das commodities. Na última década, não. Um país que depende demais—ou quase que inteiramente—delas precisa contar muito mais com a sorte do que um país que produz iPhones (China)—ou o país onde funcione a sede e o cérebro das fábricas de iPhone (EUA), só para citar um exemplo de bem industrial de ponta.

E por quê há uma fuga de dólares do país? Há sete anos atrás, quando o dólar subia, a culpa era da ameaça comunista-bolivariana que o PT representava—pelo menos era o que todos os jornais e comentaristas "sérios" diziam e assinavam embaixo. Mas, e agora?

Talvez ter um boçal na presidência que tenha amigos próximos no crime organizado de uma maneira que nunca teria sido tolerada antes com os presidentes de esquerda contribua para espantar investidores estrangeiros—aliás, tenta-se inventar acusações extras contra os antigos presidentes de esquerda, acusações que estão mais para teorias conspiratórias do que qualquer coisa, como no caso Celso Daniel, mas se existissem conexões tão fortes quanto as que existem agora entre o presidente e seus familiares com assassinos, milicianos, etc, já teriam alterado a constituição para permitir a pena de morte (apenas para executar os presidentes do PT, por supostamente terem matado Celso Daniel, acusação sem fundamento algum).

Outros fatores tão ou mais importantes para investidores ficarem apreensivos com o Brasil são os seguintes: o presidente colocar completos energúmenos em cargos ministeriais de destaque, energúmenos que promovem e impõem políticas teocratas cristãs nojentas à sociedade; além dele dar ministérios a energúmenos que se aliam à grileiros e fazendeiros que matam indígenas e estupram recursos naturais de áreas protegidas, num momento em que muitos investidores estrangeiros começam a se preocupar com o fato inquestionável de que precisamos parar de triturar o planeta (aliás, no caso de um desses ministros, já houve condenação por crimes ambientais e, também, depois de tornar-se membro do governo, esse mesmo ministro foi entrevistado em canal de Youtube de um infame neonazista canadense). Essas coisas, acreditem ou não, afetam a percepção que as pessoas lá de fora têm do país. É muito ruim.

Sejamos sinceros com nós mesmos. Após a reforma trabalhista de 2016, o desemprego não caiu. Pelo contrário. Os números começaram a melhorar apenas recentemente, timidamente, e puxados desproporcionalmente por trabalhos considerados informais. Os números aumentaram graças aos seus Ubers e graças aos seus entregadores de iFood/Uber Eats, além de opções ainda piores. Essas coisas não são empregos, são subempregos. É verdade que, ao menos dirigindo Uber dez ou doze horas por dia, todos os dias, a pessoa consegue tirar um "bom" dinheiro, acima da média do trabalhador brasileiro? Sim, é verdade. Mas compare a renda desse motorista de Uber que trabalha dez horas por dia no Brasil com a renda das pessoas comuns em países desenvolvidos, inclusive aqueles que se desenvolveram recentemente, como a Coreia do Sul, mesmo com todos os seus problemas e contradições, mostrados no excelente filme Parasita. Você verá que somos miseráveis.

Está TUDO errado. Chegou o momento de assumir que esperar um milagre econômico liberal de Paulo Guedes e todos os que pensam igual ou pior do que ele (pessoas ainda mais liberais) é passar atestado de crente. Esse tipo de gente não tem nenhuma solução para os problemas que estão nos acometendo. Estão presos a dogmas que nem mesmo os acadêmicos da área ensinam—busque saber o que diversos economistas, inclusive da Universidade de Chicago, pensam hoje sobre o fundamentalismo de mercado de Guedes, que se formou lá na década de 1970. O nosso mercado, por si só, não irá prover uma educação que aumente absurdamente nossa produtividade tão cedo (aliás, nunca fará isso), tampouco fará com que deixemos de exportar primariamente matérias primas e commodities e passemos a ser uma economia desenvolvida que primariamente exporta bens de alto valor agregado.

Isso não ocorrerá agora, nem em cem anos, porque não foi assim que as economias mais desenvolvidas se desenvolveram em primeiro lugar. Esse mito liberal já está batido faz tempo, mas parece que continuamos acreditando nele. Todos as nações desenvolvidas são economias de mercado? Sim, são. Mas em todas elas o Estado teve papel crucial, se não sempre, pelo menos em momentos importantes de seu desenvolvimento. E as nações que possuem o maior padrão de vida, além de expectativa de vida, são justamente as que mantém um Estado presente—menciono expectativa de vida porque um dos países mais admirados pelos liberais, os EUA, viu sua expectativa de vida decrescer entre 2014 e 2018, ano em que ela estagnou; dos países desenvolvidos e ricos, os EUA são um dos que possuem a economia mais "liberal"—lá existe estado do bem-estar social robusto e generoso para com a indústria armamentista, por exemplo, mas muitos americanos não admitem educação superior e saúde públicas ou, ao menos, financiada na maior parte pelo Estado, pois isso seria abraçar o "comunismo" ou "socialismo".

A farsa precisa acabar. Se isso não for feito, abracem logo o terraplanismo e continuem aplaudindo as falas de Guedes sobre as empregadas. Continuem passando pano para ele e para o resto do governo, dizendo que suas falas foram distorcidas, quando elas claramente não foram. Quem sabe, depois de um tempo, não apoiem também a volta da escravidão de determinados grupos? Afinal, quem acredita que um país fica rico com uma multidão de motoristas sem direitos e entregadores de comida via apps de telefone celular (entregadores que pedalam horas a fim para ganhar menos de um salário mínimo por mês), acredita em qualquer coisa.

Referências:
. Juro menor não será suficiente para que indústria retome investimento - O Globo (02/08/2019)
Década perdida: por que, mesmo com juro baixo e dólar alto, a indústria brasileira continua em recessão? - G1, BBC News (21/02/2020)
. “Queda de juros ajuda, mas não faz mágica”, diz economista - G1 (31/10/2019)
. Dólar alto deveria ajudar exportações, mas está atrapalhando, diz associação - UOL Economia (30/11/2019)
. 'Não tem o que fazer, o dólar vai ser repassado' diz executivo da GM - UOL Economia (08/02/2020)
. Saída de dólares do país soma US$ 44,7 bilhões em 2019, a maior em 38 anos - G1 (08/01/2020)
. De quem são as reservas internacionais? - G1 (16/03/2016)
. Produtividade do brasileiro é a mesma há 30 anos - Jornal da USP (21/02/2020)
. O avanço das commodities - Ipea (27/07/2011)
. Exportação focada em commodities cria problemas, diz Ipea - G1 (22/02/2011)
. List of countries by GDP sector composition - Wiki
. Puxada pela informalidade, taxa de desemprego cai para 11% - IG, Brasil Econômico (31/01/2020)
. Taxa de desemprego cai em 16 estados, revela IBGE - Agência Brasil EBC (14/02/2020)
. A Escola de Chicago que Guedes adota nem Chicago mais defende - Folha de São Paulo (07/11/2019)
. American Life Expectancy Rises for First Time in Four Years - The New York Times (30/01/2020)
. CDC Data Show U.S. Life Expectancy Continues to Decline - AAFP (10/12/2018)