A mais fácil introdução à Ética do mundo

No último texto, tratei do questionamento que alguns fazem sobre a origem da moral. Especificamente, abordei o questionamento vindo daqueles que acreditam que seria impossível discernir uma moral válida sem a existência de um árbitro divino capaz de nos julgar após a morte. Levantei o dilema platônico exposto no diálogo de Eutífron: “a piedade é amada pelos deuses porque é piedade, ou é piedade porque é amada pelos deuses?

O dilema eterno da humanidade: a escolha entre a virtude e o vício (detalhe), pintura de Frans Francken, o Jovem

Na sua forma adaptada ao monoteísmo e à questão específica da ética, temos o seguinte dilema: a lei moral nos é dada por Deus porque é moral, ou é moral porque nos é dada por Deus? No primeiro caso, a moral não é inventada por Deus e ele não pode alterá-la, no segundo caso ela é arbitrária e Deus poderia muito bem decretar outra lei moral (“matarás” ao invés de “não matarás”, por exemplo).

Contudo, apesar de mencionar determinadas teorias morais indiretamente, não tratei de nenhuma delas naquele texto. Farei isso a seguir, com base nos materiais de aula que tive na UNIRIO e fontes como a Stanford Encyclopedia of Philosophy, a Internet Encyclopedia of Philosophy, o site Philosophy Basics e alguns livros escritos por acadêmicos da área.

Em seus Textos Básicos de Ética, Danilo Marcondes escreve:
[...] a palavra “ética” origina-se do termo grego ethos, que significa o conjunto de costumes, hábitos e valores de uma determinada sociedade ou cultura. Os romanos o traduziram para o termo latino mos, moris (que mantém o significado de ethos), dos quais provém moralis, que deu origem à palavra moral em português.
A problemática da ética, portanto, em um sentido amplo, diz respeito à determinação do que é certo ou errado, bom ou mau, permitido ou proibido, de acordo com um conjunto de normas ou valores adotados historicamente por uma sociedade. Esta definição é importante porque o ser humano deve agir de acordo com tais valores para que sua ação possa ser considerada ética. Desta forma se introduz uma das noções mais fundamentais da ética: a do dever. Os seres humanos são livres. Em princípio, podem agir como bem entenderem, dando vazão a seus instintos, impulsos e desejos; porém, o dever restringe essa liberdade, fazendo com que seja limitada por normas que têm por base os valores éticos. O ser humano pode agir de diferentes maneiras, mas deve agir eticamente. Assim, do ponto de vista da ética, a reflexão filosófica visa fazer com que, diante da necessidade de decidir sobre como proceder em determinadas circunstâncias, a pessoa aja de modo correto; bem como servir de parâmetro para avaliar um determinado ato realizado por outro indivíduo como sendo ou não eticamente correto.
A introdução do artigo sobre Ética do Philosophy Basics diz o seguinte: “Ética (ou Filosofia Moral) lida com questões sobre como as pessoas devem agir, e com a procura por uma definição de conduta certa [...]” A Internet Encyclopedia of Philosophy define ética como os campos da filosofia que “envolvem a sistematização, defesa, e recomendação de conceitos de comportamento certo e errado.”

Existem diversas formas de se separar o estudo da ética atualmente. Algumas das principais esferas são: ética descritiva, ética normativa, metaética e ética aplicada. A ética descritiva tem como objetivo observar e descrever o conjunto de hábitos, comportamentos, normas e regras de um determinado grupo de maneira imparcial. A ética normativa é aquela cujos teóricos prescrevem normas de conduta a serem adotadas a partir de uma determinada argumentação. Teorias normativas estão preocupadas em como as coisas devem ser, o que é bom e ruim, o que é certo e errado.

A metaética é, segundo Marcondes: “uma reflexão sobre a ética, seus fundamentos e pressupostos, diferente da formulação de uma ética determinada.” É na metaética que perguntamos coisas como: “o que 'bom' e 'certo' significam? De onde vêm esses conceitos?” E, finalmente, a ética aplicada trata de analisar temas específicos de utilidade concreta, como a ética na medicina, no direito, nos negócios, etc. Uma grande parte das discussões que observo no dia-a-dia se dão ao redor de temas relacionados à ética normativa e à metaética, portanto escolhi focar o resto do texto nelas.

A ética normativa pode ser dividida em três grandes grupos: ética da virtude, éticas deontológicas e consequencialistas. A ética da virtude é toda aquela que salienta o papel dos hábitos e comportamentos para que o paciente moral alcance a “boa vida” (eudemonia), dando menos ênfase às consequências de ações específicas. Aristóteles é o maior expoente desse tipo de ética. Os epicuristas e estoicos também acreditavam que o objetivo de toda a conduta deveria ser a eudemonia. Neste sentido, há aqui um determinado fim, um télos, para a conduta humana.

As éticas deontológicas são pautadas no dever (deon). Elas enfatizam a retidão e a injustiça das ações nelas mesmas em oposição às consequências que essas ações possam vir a ter. Kant (1724-1804) foi um dos mais importantes filósofos a trabalhar com esta teoria: segundo ele, devemos agir sempre de tal forma que nossa conduta pudesse se tornar uma lei universal. Para Kant, através da razão, somos capazes de discernir leis morais invioláveis, os imperativos (deveres) categóricos. Um outro tipo de deontologia são as teorias do comando divino: obrigações morais surgem a partir dos decretos de Deus.

As éticas consequencialistas afirmam que a moralidade de nossas ações depende dos resultados que elas obtêm. Os diversos tipos de utilitarismo se encaixam neste grupo: o objetivo de uma ética utilitarista pode ser maximizar o bem-estar ou minimizar o mal-estar através de nossas ações. O hedonismo é outro tipo de ética que foca nas consequências, na qual o paciente moral busca a maximização do prazer próprio.

A metaética, definida pela Stanford Encyclopedia of Philosophy como “a tentativa de entender as pressuposições e compromissos  metafísicos, epistemológicos, semânticos e psicológicos dos pensamentos, falas e práticas morais”, pode ser dividida em dois grandes campos: realismo moral e antirrealismo moral. O realismo moral afirma a existência de valores morais objetivos, independentes dos nossos sentimentos, crenças e atitudes. Por encarar sentenças éticas como proposições válidas, capazes de produzir um valor de verdade (ou falsidade), o realismo moral é uma visão cognitivista.

Há duas grandes divisões dentro do realismo moral: o naturalismo ético e a ética não-naturalista. O naturalismo ético afirma que existem propriedades morais objetivas das quais temos conhecimento empírico, mas que essas propriedades são reduzíveis à propriedades não-éticas (como uma propriedade que conduz à maior felicidade, por exemplo, o prazer ou o bem-estar material e psicológico). No livro Contemporary Metaethics, do filósofo Alexander Miller, ele escreve: “de acordo com o naturalista, um julgamento moral é tornado verdadeiro ou falso por um estado de coisas naturais”. Miller cita G.E. Moore (1873-1958): “Por natureza, então, eu quero dizer e tenho dito que é tudo aquilo que é assunto das ciências naturais, e também da psicologia.”

O não-naturalismo ético é a posição daqueles que, segundo Miller: “pensam que as propriedades morais não são idênticas ou reduzíveis a propriedades naturais.” Essa é a posição de G.E. Moore, para quem “bondade”, por exemplo, não pode ser definida a partir de outros termos. Ou seja, “bom” não pode ser definido como “agradável” ou “prazeroso” segundo essa corrente. Ainda assim, o não-naturalismo ético ainda é uma ética realista: nessa teoria, sentenças éticas continuam expressando proposições capazes de serem julgadas verdadeiras ou falsas, e os valores morais continuam vistos como sendo independentes daquilo que acreditamos (como Moore e outros realistas não-naturalistas argumentam isso é mais complicado e não será tratado aqui).

Dentro da perspectiva cognitivista (i.e., sentenças morais são proposições e portanto podem ser julgadas verdadeiras ou falsas), John Mackie argumentou que elas são sempre falsas, dando origem à error-theory, em português, teoria do erro. A teoria moral de Mackie encaixa-se dentro do escopo do cognitivismo, contudo, ela é antirrealista.

O antirrealismo moral é o segundo grande agrupamento teórico na metaética contemporânea. Alguns se referem a ele como “relativismo”, embora isso não seja correto e represente um reducionismo problemático. Encontram-se aqui posicionamentos como o subjetivismo individual e o relativismo moral cultural, sim, mas essas são posições minoritárias e pouco sustentáveis. Outras teorias que se encaixam dentro do antirrealismo são todas aquelas que adotam o não-cognitivismo, que nada mais é do que a posição filosófica de que sentenças morais não expressam proposições de fato, logo não podem ser julgadas verdadeiras ou falsas como as proposições da lógica e das ciências naturais.

Exemplos de teorias morais tidas como não-cognitivistas por alguns são:  o emotivismo (sentenças morais expressam nossas emoções), prescritivismo (sentenças morais são como imperativos, o Philosophy Basics dá o exemplo: “matar é errado” significa, na verdade, “não mate!”), expressivismo (sentenças morais não são proposições que visam buscar propriedades reais do mundo, mas sim expressões avaliativas direcionadas a um objeto), quase-realismo de Simon Blackburn (sentenças morais se comportam linguisticamente como afirmações factuais, podemos julgar seu valor de verdade muito embora não existam fatos éticos na realidade extra-humana), projetivismo (qualidades podem ser atribuídas a algo como se elas pertencessem a ele realmente; exemplo: “dor é ruim”).

***
Adendo 24.02.2021:

Dentro do antirrealismo moral, além da teoria do erro de Mackie e além dos variados tipos de não-cognitivismo, há também o não-objetivismo. Diferentemente da teoria do erro e do não-cognitivismo, o não-objetivismo aceita que existem propriedades morais, mas que elas não são independentes da mente humana — isto é, elas não existem no mundo para serem descobertas de forma pura. Não-objetivistas também podem ser vistos como idealistas ou construtivistas, embora isso dependerá do filósofo em questão. 

Também acho importante incluir aqui o conceito de construtivismo metaético. Antes de falar um pouco sobre, é importante frisar que, na metaética, o termo “construtivismo” nada tem a ver com o construtivismo filosófico europeu desenvolvido ao longo do século XX. Construtivismo metaético é a posição metaética que afirma que verdades normativas não são baseadas em fatos normativos (i.e. verdades morais fora da mente humana) independentes do que agentes racionais concordam dentro de determinadas circunstâncias específicas.

Para o construtivista metaético, a verdade ou exatidão de um julgamento moral não é descoberta através da teoria ou observação da natureza, mas sim uma construção da nossa razão prática. Assim como no debate do realismo vs. antirrealismo, há vários tipos de construtivismos metaéticos — e existe também o debate sobre o construtivismo metaético ser um tipo de realismo ou antirrealismo, com filósofos diferentes argumentando posições diferentes, incluindo os próprios construtivistas. Alguns tipos de construtivismos são: o kantiano, o humeano, o hobbeseano e o aristotélico. 

Muitos construtivistas rejeitam o não-cognitivismo e teoria do erro, portanto podem ser considerados como “realistas mínimos” — isto é, eles aceitam que existem propriedades morais, mas discordam que elas sejam independentes da mente —, o que os coloca no campo não-objetivista, mas não no campo do não-cognitivismo e da teoria do erro. Contudo, o construtivismo não partilha do realismo moral robusto, pois apesar de ser uma postura naturalista — apesar de adotar o realismo naturalista — o construtivismo aceita que propriedades morais dependem de agentes sensíveis e racionais, logo elas dependem de seres pensantes.

A questão do realismo robusto em contraposição ao realismo minimalista torna o debate metaético ainda mais confuso, já que esta questão pode pôr abaixo toda a cadeia de definições das quais dependem determinados posicionamentos metaéticos. Um filósofo pode ser construtivista e se considerar realista, enquanto outro não, e tudo dependerá do fato deles aceitarem ou não definições minimalistas ou robustas do realismo.

Fim do adendo. 
*** 

A exploração específica de temas metaéticos é recente, enquanto que a ética normativa existe desde o princípio do estudo filosófico das questões morais. Um autor clássico de grande importância para o que viria se tornar o campo da metaética no século XX foi David Hume (1711-1776). Hume foi quem primeiro expôs o famoso problema do “é” e do “deve ser”, no seu livro, Tratado da Natureza Humana. Em uma passagem breve daquela obra, ele argumentou que não podemos chegar a uma prescrição moral a partir de observações empíricas do mundo. Por exemplo, a observação empírica de que dores causam desconforto naqueles que as sentem não produz, por si só, a conclusão de que não devemos causar dor aos outros. No século XX, Moore ressuscita esse argumento através da falácia naturalista: para ele, cometemos a falácia ao tentar reduzir afirmações morais à propriedades não-morais e naturais (não podemos reduzir “bom” à “prazer” ou “bem estar físico”)

Hume era empirista e cético. Para ele, todo conhecimento advém da experiência e devemos ser céticos com relação a tudo o que a experiência não nos mostra. É uma postura epistemológica anti-racionalista, nos sentido de que Hume só considera válido aquilo que conhecemos pela experiência, descartando o racionalismo sem amarras que, correndo solto, acaba dando as mãos à imaginação sem critério, produzindo sistemas metafísicos complexos, muitas vezes baseados na leitura dogmática de textos religiosos. Esse tipo de postura o fez formular uma ética normativa que não é pautada simplesmente na razão, mas nos sentimentos.

A crítica humeana e outras derivadas dela serviram de base à posicionamentos céticos e niilistas com relação a possibilidade de uma moral objetiva, independente das mentes humanas. É importante notar que o próprio Hume não considera impossível derivarmos ou deduzirmos uma ética (o que deve ser) de uma realidade empírica (do que é), mas apenas esclarece que, para formularmos uma lei moral, precisamos combinar fatos do mundo com algum princípio ético avaliativo.

Para encerrar essa introdução, darei dois exemplos muito resumidos de autores que gosto de trabalhar e de estudar: Schopenhauer e Cioran. A ética de Schopenhauer está pautada na metafísica imanente da Vontade. A Vontade, para Schopenhauer, é uma força cega e estúpida que permeia toda a realidade e se manifesta principalmente na luta incessante dos seres vivos pela sobrevivência. Não há um propósito maior ou uma finalidade a ser alcançada, apenas uma sucessão de brutalidades em nome da sobrevivência. Há apenas doses pequenas de bem-estar e prazer, mas essas só são alcançadas através do esforço e logo se desfazem. É como se as coisas boas fossem apenas uma enganação para perpetuarmos o ciclo da vida. A partir disso, Schopenhauer propõe que neguemos a Vontade em nós através de uma espécie de ascetismo não-religioso e percebamos, também, a Vontade que habita em todos os outros seres (tanto humanos quanto animais), tendo assim compaixão por eles por estarem no mesmo barco que nós.

A ética de Cioran lembra, em diversos aspectos, a ética schopenhaueriana, mas não é exatamente a mesma coisa. Cioran utiliza-se da linguagem metafísica apenas como analogia, ele vê a vida como produto de forças naturais cegas. Longe de ser entusiasmado com a liberdade que isso possa nos trazer, como Nietzsche (e, mais recentemente, autores ligados ao neoateísmo), Cioran argumenta que esse niilismo cósmico torna os nossos inúmeros sofrimentos ainda piores, já que não há sentido algum para eles e nenhum sentido que inventamos é satisfatório, nunca estaremos satisfeitos. Qualquer coisa que façamos, até as melhores, produz efeitos adversos. Sua ética, portanto, é minimalista. Quanto menos fizermos, menos agirmos, melhor. Ele também busca inspiração no ascetismo, assim como Schopenhauer, e enxerga no nascimento a raiz de todos os nossos males.


por Fernando Olszewski


Referências: