A escravidão e o coronavírus: uma reflexão sobre as injustiças históricas no Brasil, parte I

Joaquim Nabuco é o autor da frase menos levada a sério pela elite da nossa civilização nos últimos 130 anos: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil." Eu nasci menos de 100 anos depois do fim da escravidão no Brasil, que ocorreu no ano de 1888. Tendo nascido branco e na classe média, custei a entender as profundas marcas deixadas pelos séculos de tráfico de pessoas e escravização de seres humanos baseados na sua raça. Como reações a políticas reparativas e de cotas para negros e indígenas, ao longo da vida, não foram poucas as vezes que escutei frases como: "não podemos ser responsabilizados por crimes ocorridos lá atrás." Esse tipo de asserção é completamente falsa, a começar que as políticas reparativas e de cotas para negros e indígenas não responsabilizam os brancos de hoje em nenhum momento, elas apenas visam, de forma muito tímida, alterar uma trajetória temporal desgraçada herdada por milhões de seres humanos.

Comércio de Escravos, pintura de Auguste François Biard

O que quero dizer quando escrevo que os negros e indígenas no Brasil são herdeiros de uma trajetória temporal desgraçada? Já expliquei isso num texto de 2018, escrito antes das eleições, mas repetirei aqui quantas vezes for necessário.

Pense numa monarquia europeia qualquer do século XXI e nos seus súditos. Pode ser a monarquia inglesa, mas não precisa, já que estou fazendo uma história geral simplificada de como surgiram as monarquias e nobrezas daquele continente. Como ela surgiu? Simplificando muito, mas sem perder a essência dos acontecimentos, ela surgiu porque, séculos atrás, seus ancestrais remotos conquistaram um território na base da força. Mesmo os acordos feitos eram quase sempre firmados a partir da possibilidade de se ver invadido por grupos mais fortes. Portanto, de maneira bem simplificada, uma rainha ou rei europeu de hoje descende de pessoas que, muitos séculos atrás, conquistaram o poder através da força e impuseram seu domínio sobre uma população. Tal conquista não precisava vir de fora, muito embora isso também tenha ocorrido. Um grupo pequeno, mas forte, era capaz de alcançar o poder dentro de um próprio povo. Já os súditos herdaram seu papel de súditos, pois são os descendentes daqueles que se submeteram, séculos atrás. Os monarcas europeus de hoje são os herdeiros de uma trajetória temporal que lhes permitem levar uma vida de luxo e poder, ainda que agora esse poder seja moderado por parlamentos e firmado sobre constituições liberais.

Pensemos agora nos negros do continente americano. Pensemos especificamente no caso dos descendentes de escravos brasileiros. Qual trajetória temporal eles herdaram? Depois de mais de 3 séculos de escravidão, com geração após geração sofrendo o pão que o diabo amassou, essa instituição grotesca chegou ao fim, no sentido jurídico, com a Lei Áurea. Contudo, os escravos libertos não tiveram nenhum apoio, nenhum tipo de incentivo ou auxílio do Estado ou do resto da sociedade da qual eles passaram a fazer parte. Foram libertos, mas com uma mão na frente e outra trás, como é costumeiro dizer dos destituídos. Pior: viram-se alvos de rancor por parte dos brancos. Um processo de herança macabra similar ocorreu com os índios brasileiros, mas no caso deles, foram dizimados num enorme genocídio. Os poucos que sobraram, sofreram com a total desumanização e são maltratados até hoje. É normal ouvirmos críticas aos indígenas como: "Índio que usa bermuda, tênis e anda de carro não é índio". Quem faz esse tipo de comentário racista se esquece que culturas e etnias não se definem apenas pelo modo de vida totalmente fiel às suas ancestralidades. Se assim fosse, os indígenas norte-americanos não seriam considerados índios pelos brancos dos Estados Unidos, já que dirigem carros e frequentam universidades. Se assim fosse, um judeu só seria verdadeiramente judeu se vivesse exatamente como os antigos judeus da época do Segundo Templo. Culturas mudam, se adaptam e, em muitos casos, morrem. O que se tenta fazer no Brasil é assassinar de vez o pouco que resta da cultura indígena e africana. Ofendemos as manifestações culturais dos índios e dos afrodescendentes, dizendo que são irrelevantes e que eles deviam se adaptar à cultura majoritária do resto dos brasileiros, ao mesmo tempo em que adoramos a Oktoberfest em Blumenau.

Para piorar a situação, ao final do século XIX e início do XX, novas ondas migratórias ocorreram no Brasil. Europeus de outras regiões diferentes de Portugal vieram para cá buscando uma vida melhor. Italianos em sua maioria, alguns alemães, poloneses, etc. Esses novos imigrantes tornaram-se a mão de obra preferencial dos donos dos meios de produção, tanto no campo quanto na cidade. Foram explorados até não poder mais, ao ponto de alguns dizerem que eram escravos brancos. Mas eles não se identificaram com os recém libertos escravos negros, pelo contrário, identificaram-se com os seus algozes, seus patrões, com a classe rica e branca, e esta os favoreceu. Além disso, uma parcela menor dos imigrantes dessa nova onda veio com capital para montar negócios. Esses novos imigrantes endinheirados empregava sempre os seus, nunca os escravos libertos e seus descendentes. Então, ao invés de juntarem forças com os menos favorecidos, os negros livres, os indígenas, os mestiços e os brancos pobres que já habitavam o país, os novos imigrantes europeus preferiram bajular os poderosos. O reflexo disso pode ser visto até hoje. Seus descendentes e aqueles influenciados por eles formam a massa de pessoas considerada o núcleo mais duro do atual "Bolsolavismo". Dizer que essa parcela da população quer uma espécie de aiatolá cristão é pouco, a verdade é que essas pessoas se doem para que Bolsonaro torne-se um führer. São como o ex-secretário da cultura, Roberto Alvim, que foi demitido depois da péssima repercussão de seu discurso imitando Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler. Depois soube-se que Bolsonaro inicialmente não quis demiti-lo e só o fez por causa da pressão de aliados próximos.

O Brasil é um país que nunca investiu direito em educação, seja ela de base, média ou superior. Mesmo as épocas de "vacas gordas" foram pífias perto do investimento constante de outros países. Falo aqui de investimento público, mas poderia falar também do privado. Nossa elite econômica é majoritariamente burra e herdeira de privilégios antepassados. Mal sabe falar português. Ela não doa para pesquisa, não doa para museus, não promove nada do que a elite de outros países capitalistas promove. Quando nossos ricos viajam para a Europa, a maioria deles não sabe apreciar os museus e a cultura que lá existe. Eles nunca se preocuparam em fomentar a cultura nacional. Desdenham da cultura dos afro-descendentes e dos indígenas, como se a cultura europeia fosse a única que presta, mas nem sequer sabem da cultura europeia que tanto glorificam. Não leem livros. Quando fingem que leem, é alguma porcaria como "O Monge e o Executivo" ou pior, algum dos livros desconexos do Olavo de Carvalho. Fazem graça do Estado de bem-estar social europeu e acham que o Estado brasileiro ajuda demais os pobres. Fingem não entender que com um salário médio de R$ 2300 e um custo de vida cada vez mais alto é impossível que milhões de brasileiros saiam da pobreza. Pensam que trabalhadores já têm muitos direitos e que o salário mínimo é alto demais, sendo que há uma massa de dezenas de milhões de pessoas que trabalha para ganhar menos de um salário mínimo por mês, literalmente trabalhando de manhã para comprar a janta da noite.

O primeiro mundo que a maioria dos nossos ricos tanto bajulam — exceto nas coisas boas, claro, pois nunca implantarão no Brasil o generoso bem-estar social que vários países europeus têm e nunca deixarão a maior parte de suas fortunas para universidades ou museus como fazem americanos ricos e sofisticados — vê com horror o que fazemos aqui, principalmente agora com o Bolsonaro ocupando a presidência. Daqui a pouco, um membro típico dessa elite sem noção, alguém de Mogi, talvez, viajará para a Europa com seu passaporte europeu e, chegando lá, exclamará: "Oh! Me abracem, irmãos europeus!" Mas, ao invés de ser bem recebido, escutará: "Lá vem o deplorável". Ficará sem entender. Sairá magoado de lá, voltará para Mogi, dirá que foi mal tratado na sua viagem, dirá que a Europa não é mais a mesma dos tempos dos seus avós (que saíram de lá porque era uma bosta, mas ele ignora isso). Propagará ideias grotescas de que a Europa do século XXI foi "infectada por não-europeus", numa manobra "orquestrada pela conspiração globalista-sorista-judaica". Enfim, o membro típico de nossa elite não mudará. Não entenderá que ele é que é o babaca, o burro, a pessoa que não lê um livro por década e, quando finge que lê, é sempre uma porcaria do Olavo ou "O Monge e o Executivo". Não, ao invés disso, ele dobrará a aposta no protonazismo, continuará falando que a escravidão foi boa para os negros e outras barbaridades típicas de uma mentalidade boçal que, infelizmente, começou a ser abraçada até por algumas de suas vítimas, vide o caso do Sérgio Camargo, atual presidente da Fundação Palmares.

Faz um mês desde a primeira morte por coronavírus no Brasil. Apesar dos casos serem subnotificados, inclusive os óbitos, já beiramos os 2 mil mortos em números oficiais. Hoje, Bolsonaro finalmente demitiu o ministro da saúde que estava tentando fazer o mínimo necessário. Mandetta não é herói. Ele não é um santo. Ele escolheu rolar na lama com os porcos ao aceitar fazer parte dessa cáfila bandida e imbecil. Porém, é inegável que ele tenha apoiado as medidas de isolamento mínimas propostas pelo consenso médico e científico mundial. Mas Bolsonaro, um homem completamente ignorante e de pensamento mágico, um homem que é auxiliado por incompetentes como Paulo Guedes, enxergou no isolamento uma conspiração para fazer a economia desandar e prejudicar seu governo. Ele e Guedes se esquecem — na verdade fingem, pois sabem bem — que a economia não estava decolando antes da pandemia de covid-19. As reformas liberais, a trabalhista feita no governo Temer em 2016 e a previdenciária feita em 2019 no governo Bolsonaro, não deram o impulso esperado imaginado pelos fundamentalistas do livre mercado. Eles acreditam cegamente no credo que lhes diz que as grandes potências econômicas se tornaram o que são sem a presença ativa do Estado, algo que qualquer historiador da economia sabe ser falso. Agora, com a crise gerada pela pandemia do coronavírus, até as instituições criadas para dar estabilidade e impor agendas econômicas liberais aos países na esfera de influência americana no pós-guerra, instituições como o FMI e o Banco Mundial, propõem vertiginosos aumentos de gastos públicos, mesmo que para isso seja necessário expandir a dívida pública. Mas nosso governo de lunáticos genocidas diz que o Estado brasileiro não pode fazer isso, embora nossa dívida seja muito menor do que a americana, a britânica, a sueca e a japonesa.

Portanto, vejam bem: o governo Bolsonaro, auxiliado por Guedes, tenta fazer uma política fiscal conservadora num momento em que até governos de direita e instituições internacionais que defendem o liberalismo econômico dizem que é hora de gastar na ajuda à população e às empresas. Em tempos normais, a desigualdade econômica no Brasil já é gritante. Não é uma questão de pobreza absoluta e desigualdade relativa, como alguns tolos adoram promover do alto de suas sabedorias de araque. O problema do Brasil é a desigualdade, é o fato de que a maioria pobre é forçada a trabalhar por um salário de subsistência, ou pouco acima disso, sem perspectiva de melhora nem para si, nem para seus filhos, visto que a educação que eles recebem é mal financiada. Agora, com a crise gerada pela pandemia, a coisa será pior ainda. O SUS, apesar de sucateado ao longo dos anos, ajudará um pouco, mas não fará milagre. Até mesmo a classe média chegará aos hospitais particulares e não terá vaga disponível, imaginem as dezenas de milhões que não possuem plano de saúde privado. Nos Estados Unidos, único país de primeiro mundo que não possui sistema público de saúde, a epidemia de covid-19 já está matando muito mais pobres e negros do que pessoas abastadas e brancas.

No Brasil podemos esperar o mesmo. No estado do Rio, uma das primeiras vítimas foi uma empregada doméstica idosa que trabalhava para uma senhora, também idosa, que tinha voltado de viagem da Europa e contraído o vírus. A patroa não morreu, mas a empregada sim. Isso não quer dizer que a patroa é má, mas é preciso que saibamos que essa é a imagem que se pintará numa tragédia generalizada. Os patrões, em sua maioria, terão mais chances de sobreviver, mesmo com um sistema de saúde particular lotado. Os que estão na classe média alta e na classe rica terão a oportunidade de passar mais tempo isolados, sem trabalhar, fazendo home office para suas empresas. Serão capazes de tolerar cortes no seu salário ou perda no lucro de suas empresas, enquanto que dezenas de milhões de pobres serão forçados a trabalhar para conseguir comprar a comida do dia seguinte. Era hora do Estado brasileiro ajudar. Porém, infelizmente, manteremos a tradição inaugurada em 1888 e nosso Estado não ajudará quem mais precisa. Dará, no máximo, um auxílio emergencial único de R$ 600 aos menos favorecidos. Nossa elite patética dirá que qualquer auxílio do governo federal terá sido suficiente e que os pobres drenam recursos públicos ao invés de trabalharem. Enquanto isso, o Banco Central do Brasil deu mais de 1,2 trilhão de reais aos bancos para enfrentar a crise do coronavírus, sendo que a soma da ajuda aos pobres é de apenas R$ 98 bilhões.


Por Fernando Olszewski

Referências: