Esperança tóxica

Embora nem sempre tenha sido assim, já fazem alguns anos que tenho um apreço enorme por filósofos e escritores que enxergam o mundo como um lugar terrível e ardiloso. Terrível, porque ele é repleto de dores e sofrimentos inimagináveis. Ardiloso, porque ele faz com que os seres capazes de sentir dores e sofrimentos inimagináveis lutem com todas as suas forças pelas suas vidas, inclusive através da perpetuação da espécie. Por conta desse meu apreço, a pandemia e todos os seus desdobramentos não têm me causado um choque enorme. Fico consternado, claro. Todos os que têm bom senso ficam. Mas não há grandes surpresas.
A Balsa da Medusa (detalhe), de Théodore Géricault

Vivemos no universo da entropia. É normal que as coisas se decomponham. Não ficaria surpreso se, no final das contas, o fenômeno da vida fosse apenas mais uma maneira que o universo tem de aumentar entropia ao longo do tempo. Desfazer-se através de diversas formas de atrito é a regra no universo da entropia. A covid-19 é uma nova forma de atrito que desfaz uma determinada espécie de seres vivos, a saber, nós. E a covid-19 é apenas mais uma das doenças que assola o mundo. Ela nem sequer é a primeira grande epidemia pela qual a humanidade passou em sua história. Contudo, há um aspecto bizarro na atual pandemia: a existência de um negacionismo tresloucado em um mundo dominado pela tecnociência.

Aqueles que comungam do pessimismo também não consideram chocante a existência de centenas de milhões de pessoas mundo afora que vivem suas vidas baseando-se no pensamento mágico e em doutrinas inflexíveis que as fazem negar o perigo de uma doença. Para leitores de Cioran ou Schopenhauer, o fluxo da história humana não é o palco de um progresso constante e assegurado. Na verdade, a história nem sequer é um processo dialético no qual a irracionalidade é um momento indispensável que, no final, acaba por contribuir com o avanço da razão. Não. Para o pessimista, a história do homem apenas é, sem propósito ou direção. Estamos à deriva num oceano temporal caótico.

Mais correto ainda seria pensar a história da humanidade como sendo o produto de uma força irônica e fugaz, que vive nos tentando com a possibilidade de atingirmos alturas nunca antes vistas, apenas para nos mostrar novos horrores quando alcançamos o topo seguinte da sua interminável escalada. A propósito, toda a história natural do planeta pode ser vista dessa forma. Cada vez que a vida na Terra passa por mutações (supostamente) bem-sucedidas, cada nova espécie que surge, é como se a força irônica por de trás da realidade contemplasse novas formas mais profundas de sentir dor e sofrimento. Somos produtos de uma engenharia natural perversa.

O processo dura alguns bilhões de anos e eis que a natureza acaba produzindo o homo sapiens. Uma das grandes diferenças do humano com relação aos outros animais é a sua aparente capacidade de volição, de escolha, de ação. Ponderamos diante de uma situação e agimos de maneiras diferentes. Na modernidade, entre 1500 e 1800, acreditava-se que nossa capacidade volitiva nos faria agir da forma mais racional possível, o que inevitavelmente engendraria um mundo cada vez melhor para todos. Mas, em pleno século XXI, o século do smartphone, internet rápida e supercomputadores, há milhões de seres humanos letrados, com acesso à internet, que são negacionistas da pandemia de covid-19. São pessoas que sabotam qualquer esforço de isolamento e até de vacinação. Em sua vasta maioria, baseiam-se no pensamento mágico e no fundamentalismo religioso ou ideológico para agir dessa maneira.

Isso varia ao redor do mundo, claro, mas o Brasil foi contemplado com um número desproporcional de toscos neste momento delicado da história contemporânea. Que o nosso povo tem péssima escolaridade ajuda a explicar o motivo pelo qual dezenas de milhões de brasileiros acreditam piamente nas imbecilidades toscas que seus pastores e seu presidente falam todos os dias. Sim, a falta de estudo dos brasileiros ajuda explicar o crescimento vertiginoso do terraplanismo e do movimento contra a vacinação nestas terras. Ela também ajuda a explicar a fé tresloucada na cloroquina como “tratamento precoce para covid”. Porém, a ignorância não explica totalmente a adesão à loucura que vemos atualmente. Não faltam médicos e enfermeiros que estão defendendo a cloroquina, duvidando da vacina e indo contra as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Basta olharmos as atitudes grosseiras dos Conselhos Regionais de Medicina e do próprio Conselho Federal de Medicina.

A ignorância, também, não justifica a truculência tosca do povo, mesmo do povo pobre que teve educação precária. Até eles parece que já foram mais espertos, menos fanáticos, menos guiados por charlatões e demagogos. Antigamente, falava-se da “lei de Gerson”, baseada num comercial de cigarro com um jogador de futebol. A tal lei postulava que todo brasileiro gosta de levar vantagem e que, por isso, o Brasil era subdesenvolvido. Além de ser uma visão extremamente preconceituosa, ela não resiste a uma análise mais profunda, visto que no mundo inteiro as elites sempre levaram vantagem em cima de seu povo pobre e trabalhador. Isso aconteceu inclusive no primeiro mundo. Contudo, a caracterização do brasileiro como malandro tornou-se clássica ao longo do século XX.

Eu me pergunto: malandro cai naquelas pregações grotescas do Valdomiro Santiago? Malandro acredita no cristianismo da Flordelis? Malandro não duvida de nada que o Bolsonaro fala? Para mim, essas atitudes são a marca de um povo extremamente ingênuo, incapaz de cortar a cabeça de seu Luis XVI e de sua Maria Antonieta. É o contrário de um povo esperto ou safo. Se tem algo que nós não fazemos é levar vantagem de verdade. De onde viriam as nossas mazelas, então? Viriam elas do nosso sistema político, econômico e social, tal como ele é previsto pela Constituição de 1988? Teriam os brasileiros “direitos demais”?

Vou argumentar que o grande problema do Brasil não é nem sistêmico, nem moral, mas um mistura de muitas coisas que até tocam em questões sistêmicas e morais, mas não se reduzem a elas. Há países prósperos, ricos e muito menos disfuncionais que, assim como nós, são economias de mercado e possuem estado do bem-estar social. Há vários países prósperos e menos disfuncionais nos quais a imoralidade e a corrupção abundam. Por exemplo: caixa 2 é legalizado em vários países de primeiro mundo, chama-se lobby. Além disso, superpotências ricas não se importam de mentir descaradamente para invadir outros países e destruí-los — se isso não é a epítome da corrupção, então nada mais é. Nosso maior problema é outro: nós somos sádicos uns com os outros. Basta termos um pouco de poder que já exercemos esse sadismo e, quando temos muito, o sadismo torna-se um vício incontrolável.

Embora existam críticas válidas que possam ser feitas ao pensamento de Jessé Souza, seu livro, A Elite do Atraso, pinta uma imagem muito boa e sucinta da nossa formação nacional. Ele também pode, para um pessimista como eu, pintar outra coisa: a total falta de esperança de podermos sanar nossas grandes questões tão cedo. Sei que não é essa a intenção de Jessé, pelo contrário. Como intelectual público, seu objetivo é buscar caminhos para melhorarmos. Concordo que devemos tentar. Mas certas coisas são muito improváveis e vão contra todo tipo de evidência.

Todos aqueles que passam os dias nas redes sociais e nos jornais fazendo apelos para que a população tenha bom senso e respeite as normas de segurança são uns pobres coitados. Basta observarmos a atitude da vasta maioria dos brasileiros durante um ano de pandemia para concluir isso. A pandemia está aí já faz um ano. Todo santo dia há pessoas, desde especialistas até comentaristas, alertando sobre o risco da pandemia se agravar. Embora não seja especialista, eu também tentei alertar pessoas próximas e fiz coro nas redes sociais em favor do distanciamento e uso de máscaras. Adiantou? Um pouco, sim, mas bem menos do que deveria.

Nunca houve lockdown no país, apenas medidas fracas de isolamento. Por conta disso, ocorreu algo que todos os especialistas previram: hoje somos o país mais pestilento da comunidade internacional. Temos a maior aceleração no número de novos casos e de mortes de coronavírus. Eu e minha mãe tivemos covid-19, mesmo tomando cuidado e nos isolando. Isso foi em dezembro. Ainda no início da pandemia no Brasil, um velho conhecido meu, de Manaus, morreu de covid-19. Ele era ultraconservador e bolsonarista. Sua última foto de perfil no Facebook tinha escrito “fechado com Bolsonaro”. Ele tinha 43 anos, havia se casado poucos anos antes e era pai.

Havia perdido o contato com ele e fiquei sabendo da sua morte através de amigos em comum. Eles estavam revoltados com o presidente por ele diminuir a gravidade da situação, o que certamente contribuiu para a morte de várias pessoas, incluindo desse antigo conhecido. Só tem um problema: todos esses amigos que vieram me contar da morte dele também votaram no Bolsonaro. Até pouco tempo antes disso acontecer, todos estavam acreditando nas teorias conspiratórias lunáticas sobre a pandemia. Sim, o presidente contribuiu. Mas esse meu conhecido tinha curso superior, era economista. Não é como se ele fosse um pobre coitado que não teve escola. Ele escolheu acreditar nas loucuras negacionistas. Vou além: ainda que ele fosse um pobre coitado, com pouca escolaridade, há limite para a transferência de culpa.

Não me levem a mal. Tanto Bolsonaro, quanto seus ministros e seus generais deveriam pegar prisão perpétua, no mínimo. O que eles estão fazendo é sim genocídio, ainda que indiretamente, através do vírus. Sou a favor de um tribunal estilo Nuremberg para julgá-los. Sou a favor, inclusive, das mesmas penalidades de Nuremberg, embora saiba que a nossa Constituição não permite a pena capital e tribunal de exceção. Dá-se um jeito. Agora, não podemos fingir que dezenas de milhões de brasileiros contribuíram para essa desgraça aglomerando, não usando máscaras e acreditando nas teorias conspiratórias de WhatsApp. Claro que os culpados maiores são aqueles que estão em cima, com poder para influenciar as massas. Quanto mais poder econômico e quanto mais poder político, maior a responsabilidade. Contudo, nós também somos culpados. Falhamos como civilização.

Pior do que essa falha, entretanto, é a nossa incapacidade de mudarmos o curso. É daí que vem minha total desesperança. Como já disse, a pandemia está aí faz um ano. Os alertas estão sendo feitos todos os dias há um ano. Mesmo assim, muitos de nós os ignoramos. Sim, os bolsonaristas ignoram, claro, mas não faltam progressistas, anti-bolsonaristas, que saem, vão para bares, aglomerações e não usam máscara. Basta olharmos os stories nas redes sociais para sabermos que isso é verdade. Uma hora a esperança deixa de ser uma virtude e se torna um vício grotesco. É como se os esperançosos contassem histórias de superação para as vacas que estão na fila do abate. Nós somos ao mesmo tempo os esperançosos e as vacas.

Essa metáfora define bem a condição humana, independente da pandemia. Porém, ela se aplica perfeitamente ao Brasil da covid-19 e do Bolsonaro. É por isso que, a partir desta semana, não tenho mais como dizer que me importo muito com o que está acontecendo no país. Vou me importar, claro. Só não tenho mais como enganar a mim mesmo e, como consequência desse autoengano, desesperar-me. Continuarei fazendo coro com aqueles que apelam ao bom senso, sim, mas sabendo que qualquer tipo de alerta vai mudar muito pouco. As mudanças que ocorrerem geralmente serão para pior. Sinto muito, de verdade, mas não posso compactuar com a mentira de que iremos conseguir sair melhores desta situação e que estamos fazendo um bom trabalho “apesar dos pesares”. Não estamos fazendo um bom trabalho, porque não adianta falar com pessoas obtusas. Também não vamos sair melhores desta.


por Fernando Olszewski