O Deus sádico

Escrevi em outras ocasiões (aquiaqui e aqui) sobre como, se existisse um Deus onipotente e onisciente que tivesse criado o universo que habitamos, Ele seria necessariamente mau — e sobre como indiferença seria equivalente à maldade para uma divindade criadora que tudo sabe e tudo pode. Mas essa divindade que centenas de milhões de pessoas acreditam está para além da indiferença e da maldade. Ela exige do homem uma adoração e um amor sem nenhuma reciprocidade, numa dinâmica que beira à loucura de uma relação de cativeiro. O modelo mais famoso para esse abuso é sem dúvidas o Livro de Jó. Ali encontra-se o arquétipo resumido no dito popular: “O Senhor age de formas misteriosas”, um mecanismo explanatório que não explica nada, mas finge que soluciona o problema empurrando-o para debaixo do tapete.

Imagine se um sujeito qualquer tratasse uma ou mais pessoas da forma como o Senhor trata suas criaturas. Ele certamente seria visto como um sádico que comete graves abusos, e com toda a razão. Pense em alguém tratando seus filhos da maneira que Deus trata a sua criação. Imagine agora que todas as criaturas sensíveis, capazes de sentir dor e prazer, estão submetidas ao crivo de uma divindade que as criou para terem uma existência breve, permeada de dores profundas e inevitáveis, das quais a única escapatória é a busca constante de estados positivos efêmeros que, no caso de animais mais complexos, logo desaparecem para dar lugar ao tédio. Todas as evidências que a natureza e a vida humana nos deram até hoje mostram que Deus não é bom, nem misterioso. Deus é um abusador cósmico — e nós todos somos suas vítimas.
Jó, de Léon Bonnat

Sobre nossas vidas serem pautadas na dor e no tédio, e sobre como vivemos numa eterna busca por efêmeros estados positivos, dou a palavra a Schopenhauer:
“Vimos na natureza destituída de conhecimento que a essência íntima dela é um esforço interminável, sem fim, sem repouso, o que nos aparece muito mais distintamente na consideração do animal e do homem. Querer e esforçar-se são sua única essência, comparável a uma sede insaciável. A base de todo querer, entretanto, é necessidade, carência, logo, sofrimento, ao qual consequentemente o homem está destinado originariamente pelo seu ser. Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua existência mesma se lhe tornam um fardo insuportável. Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio, os quais em realidade são seus componentes básicos. Isso também foi expresso de maneira bastante singular quando se disse que, após o homem ter posto todo sofrimento e tormento no inferno, nada restou para o céu senão o tédio.” 1
E não é como se o pêndulo se demorasse entre a dor e o tédio, provendo às criaturas quantidade maiores ou sequer iguais de estados positivos. As dores existem em maior quantidade e são muito mais intensas do que os prazeres. Volto a Schopenhauer:
“Se quereis num momento esclarecer-vos a esse respeito, e saber se o prazer é superior ao desgosto, ou se apenas se compensam, comparai a impressão do animal que devora outro com a impressão do que é devorado.” 2
Estados positivos são difíceis de obter, enquanto que estados negativos podem vir a qualquer momento e rapidamente destruir tudo aquilo que somos e tudo aquilo que construímos. De acordo com David Benatar:
“Considere também as dimensões temporais do ferimento ou doença e da recuperação. Uma pessoa pode se ferir em segundos: a pessoa é atingida pela bala ou projétil, ou é empurrada ou cai, ou sofre um derrame ou ataque cardíaco. Nesse e em outros casos, a pessoa pode instantaneamente perder sua visão ou audição ou o uso de um membro ou anos de aprendizado. O caminho para a recuperação é lento. Em muitos casos, a recuperação completa nunca é obtida. A ferida chega num instante, mas o sofrimento que dela resulta pode durar uma vida inteira.” 3
Mesmo os estados positivos mais primitivos e animalescos que possuímos requerem algum tipo de trabalho, seja do próprio corpo ou na fabricação de algo que nos gere prazer — e até nesses casos o estado positivo é efêmero e não pode ser continuado indefinidamente. Não conseguimos comer guloseimas indefinidamente sem nos empanturrarmos e nos sentirmos mal, por exemplo. Um outro exemplo: há raros casos de pessoas que têm orgasmos constantes, mas a sensação deixa de ser prazerosa e se torna dolorosa, ao ponto de impedir que elas tenham uma vida normal. 4, 5 O prazer mais basal e orgânico, do sexo à comida, é bom, mas além de dar trabalho possui um ponto de saciedade. A dor não. Estamos sempre disponíveis para a dor. Citando Aldapuerta:
“Para experimentar a dor, não é preciso inteligência, maturidade, sabedoria, não é necessário que o trabalho lento dos hormônios deixe nossas partes íntimas molhadas. Estamos sempre prontos para ela. Toda a vida está pronta para ela. Sempre. [...] Considere as maneiras através das quais obtemos prazer. [...] Considere as maneiras pelas quais nós sentimos dores. Uma está para a outra como a Lua está para o Sol.” 6
Quando consideramos um único Deus como fonte de tudo, criador de todas as coisas, não há escapatória: ele precisa ser responsabilizado por este estado de coisas que é a existência senciente, já que foi Ele quem a criou — e, sendo o criador de tudo aquilo que existe, inclusive das possibilidades, é inaceitável que se diga que um mundo tão repleto de sofrimentos seja o melhor que Ele poderia ter criado. Porém, ainda que fosse, havia a possibilidade de não criar nada. Quanto a Sua responsabilidade, não há dúvida alguma, já que Ele próprio a assume. Peguemos a (ainda) maior religião abraâmica do mundo, o cristianismo. Vejamos como o livro de Isaías, aceito como parte canônica do Antigo Testamento por todas as denominações cristãs, trata a questão da responsabilidade divina. Eis aqui as palavras do próprio Deus de Abraão, Isaac e Jacó:
“Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que tu não me conheças; Para que saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.” 7
Ainda que Ele não explicitasse que o mal é de sua responsabilidade nas Escrituras, a sua maldade continuaria sendo evidente a qualquer um. Para vê-la, basta observarmos o mundo humano e animal e tentarmos encaixar a suposta onibenevolência divina nele. É uma tarefa impossível. Mas o crente não se importa com essa impossibilidade, justamente porque o Deus dele é o “Deus do impossível” — frase que o crente nem se dá conta do quão sem sentido é. É por isso que, no fundo, teodiceias sempre foram criadas para os céticos, ainda que fossem “céticos religiosos”, por assim dizer. Citando Cioran:
“O problema do mal só perturba realmente alguns delicados, alguns céticos, revoltados pela maneira como o crente se conforma com ele ou o escamoteia. É para esses então que, em primeiro lugar, se dirigem as teodiceias, tentativas de humanizar Deus, acrobacias desesperadas que fracassam e se comprometem no seu próprio terreno, desmentidas a cada instante pela experiência. Embora procurem convencê-los de que a Providência é justa, não o conseguem.” 8
Só há uma forma convincente de encaixarmos a benevolência divina num mundo tão sofrido, sem apelarmos para mistérios insondáveis: separando o Deus criador deste mundo, que jamais poderia ser benevolente, do Bom Deus, aquele que nos salva deste mundo. Os gnósticos e os marcionistas fizeram isso no segundo e no terceiro século da era cristã, mas foram devidamente tachados de hereges pela nascente ortodoxia cristã e, depois, suprimidos. A ideia de separar o Deus criador do Deus salvador surgiu novamente mais tarde, na Idade Média, com os bogomilos na Bulgária e os cátaros no sul da França, mas nessas ocasiões ela também foi suprimida — brutalmente no caso dos cátaros. O devir é sinônimo de mudança, crescimento, decadência e corrupção. No caso dos entes sensíveis, tal movimento nunca é desacompanhado de dores diversas e inescapáveis. Bondade, portanto, não cria. Especialmente se essa bondade for divina e onibenevolente.

De nada adiantaram dois milênios de doutrinas que identificavam o mal com a ausência de bem, numa tentativa desesperada de poupar o Criador. Esse tipo de argumento só se sustenta com base em dogmas e teocracias. É fácil repetir à exaustão que mal é ausência de bem quando é um crime dizer o contrário. Felizmente, com a modernidade, tornou-se possível a livre investigação e não foram poucos os filósofos que notaram que o mal, entendido aqui como estados negativos, possui um estatuto ontológico real e se faz presente no mundo. Ambos Schopenhauer e Cioran trataram o mal como força positiva, isto é, força motriz sempre presente da realidade. Estados negativos não são a ausência de estados positivos, mas o status quo da realidade. A irrealidade ou, pelo menos, a efemeridade, se encontra nos estados positivos, ou seja, do lado do bem. O Criador deste mundo, caso exista, não pode se esquivar da Sua responsabilidade quanto à realidade do mal. De novo, cito Cioran: 
“Como o mal preside sobre tudo aquilo que é corruptível, quer dizer, sobre tudo aquilo que é vivo, é um absurdo tentar provar que ele compreende menos ser do que o bem, ou que a realidade não contém nenhum mal. Aqueles que identificam o mal com o nada supõem que estão, assim, salvando seu pobre Deus Bom. Ele é salvo apenas se nós tivermos a coragem de separar a Sua causa daquela do Demiurgo. Ao se recusar a fazê-lo, o cristianismo inveteradamente procurou impor a falta de evidência de um Criador misericordioso: um empreendimento que esgotou o cristianismo e comprometeu o Deus que procurava preservar.” 9
A relação abusiva de Deus com suas criaturas — e em especial com a humanidade — é mais do que óbvia quando não cantamos louvores de olhos fechados e ouvidos tapados. Mas a gigantesca maioria de nós toma as chibatadas divinas e ainda pede mais, acreditando que, assim como Jó, haverá algum tipo de recompensa que faça valer a pena toda a dor e espera, mesmo que essa recompensa só venha no além. O além, verdade seja dita, é basicamente tudo o que a grande maioria dos fiéis pode esperar, já que nesta vida permanecerão pobres e oprimidos até o último suspiro. Recentemente, um amigo me enviou uma foto que tirou da traseira de um caminhão, enquanto ia para o trabalho numa das estradas isoladas do Mato Grosso, terra abarrotada de cristãos conservadores pró-teocracia. É comum os caminhoneiros colocarem mensagens nas traseiras de seus veículos. Muitas são relacionadas à fé e à família. Em alguns casos, as mensagens são cômicas, o que é sempre bom de se ver.

Mas a imagem que meu amigo me enviou da traseira daquele caminhão me deixou alarmado e confesso que foi ela que me inspirou a escrever este ensaio. Naquele caminhão havia uma mensagem simples, mas que despertou em mim a vontade de dizer para o mundo que nem todos estão de acordo com as crenças da maioria, e que temos o direito de não estarmos de acordo. Mais ainda: temos o direito de rejeitarmos publicamente um Deus que consideramos sádico, não somos obrigados a nos calar. Escrever este ensaio é uma forma de não me calar. A mensagem na traseira do caminhão dizia o seguinte: “POR MAIS QUE EU SOFRA, OBRIGADO SENHOR”. Parece inócuo. Para muita gente é, inclusive para a maioria dos que creem, o que não deveria acontecer, já que é uma ideia profunda. Mas muitos que não creem também não enxergam nada demais nessa mensagem. Confesso que, para o dia a dia, talvez não haja nada demais mesmo. Porém o oceano de implicações por trás da frase me atormentou de algumas formas.


O tormento filosófico e teológico creio que deixei claro ao longo do ensaio: ao atribuirmos a Ele a responsabilidade da criação, não podemos nunca afirmar que Deus é benevolente sem imediatamente apelarmos para mistérios que estão além da compreensão e da lógica — ou seja, sem apelarmos para irracionalidade. O tormento humano também me parece esclarecido: os que seguem a observação e a lógica, isto é, aqueles que são incapazes de se ajoelhar perante um Deus sádico, têm todo o direito de fazê-lo e todo o direito de afirmar sua recusa. Veja que não falo aqui de descrença, necessariamente. Não tento mostrar incongruências apenas para afirmar que o ateísmo é o melhor caminho. É possível interpretar o que escrevo dessa forma, é verdade, mas não é esse o ponto que faço. O ponto que faço é que o Deus criador do mundo, se Ele existe, não é apenas mau, dado o abismo de sofrimento que criou, mas sádico, dada as exigências que faz da humanidade. Para Ele, não basta sofrermos, temos que nos ajoelhar e agradecer pelo sofrimento.

E por quê? O que poderia justificar uma atitude tão horrenda quanto essa? Por mais que determinados fiéis um pouco mais sofisticados possam prover argumentos aparentemente elaborados, por mais que alguns deles sejam membros do clero e tenham formação teológica, no final das contas a razão pela qual devemos todos concordar com o absurdo grotesco por trás dessa mensagem se resume num tipo de raciocínio bastante simples. Por que devemos aceitar o abuso divino? Porque tal livro sagrado diz que é assim e quem não concorda é herege. Essa é a resposta. Tirando isso, não há nada mais. Não há lógica. Não há senso. Não há razão. Só há um imenso vazio. Entre esse Criador monstruoso, pai do devir e de todas as suas inexoráveis desgraças, e o Bom Deus dos gnósticos, marcionistas, bogomilos e cátaros, fico com o último.

por Fernando Olszewski


Referências:
1. SCHOPENHAUER, A. O mundo como Vontade e como Representação. (Tomo I) Tradução de Jair Barbosa. São Paulo: UNESP, 2005. p. 401-402.
2. SCHOPENHAUER, A. As dores do mundo. Tradução de José Souza de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2019. E-book.
3. BENATAR, D. The Human Predicament. Nova York: Oxford University Press, 2017. p. 77-78 (Tradução nossa)
5. PGAD symptoms (Healthline)
6. ALDAPUERTA, J. The Eyes: Emetic Fables from the Andalusian de Sade. Tradução para o inglês por Lucia Teodora. Londres: Headpress, 1995. p. 61-62 (Tradução nossa)
7. Isaías 45:5-7 (Bíblia Sagrada - Almeida Corrigida Fiel)
8. CIORAN, E. Exercícios de admiração. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. E-book.
9. CIORAN, E. The New Gods. Tradução para o inglês de Richard Howard. Chicago: University of Chicago Press, 2013. E-book. (Tradução nossa)