Pobre país

As redes sociais podem iludir muito a percepção das pessoas sobre os assuntos, sim, mas elas também servem de termômetro para o que muita gente pensa ou, no mínimo, repete sem pensar. E tem horas que elas se tornam mais cansativas do que já são normalmente. Há alguns dias, uma mulher — que temporariamente não podia comer nada quente por algum motivo de saúde — postou no Twitter fotos de sorvetes comprados pelo pai, da marca Bacio de Latte. Uma pessoa comentou na postagem que tal sorvete era extremamente caro, que a mulher era uma privilegiada, uma rica, parte da elite dominante malvada e desgraçada do Brasil. Seguiram-se milhares de comentários e retweets reproduzindo ou até expandindo a crítica inicial.1, 2

A foto dos potes de sorvete não mostraria apenas apenas um agrado de um pai para a filha. Não, a foto dos potes de sorvete representaria a opressão da burguesia brasileira que humilha os pobres trabalhadores. Entre as dezenas de milhares de comentários nas várias redes sociais, alguns pregaram revolução armada, afirmaram que Stalin matou pouco e por aí vai. Uma chuva de absurdos normais para uma época que celebra Losurdo como um grande pensador político e historiador — sendo que ele não era nem uma coisa, nem outra.3, 4, 5, 6, 7

Sim, nós vivemos num país extremamente desigual e obscenamente injusto. Os donos do país, ignorantes privilegiados que na maioria dos casos herdaram sua fortuna, demonstram prazer na hora de massacrar os pobres. Como bem demonstra Jessé Souza, a nossa elite é a elite do atraso. São o retrato de uma classe vendida a interesses econômicos estrangeiros: nem sequer podem ser verdadeiramente chamados de “donos dos meios de produção”, pois nada produzem, vivem de especulação, papéis, aluguéis — em suma, capital improdutivo.8, 9 Mas a foto dos potes de sorvete nada tem a ver com isso. Achar que tem e que o ato de postá-la nas redes sociais deve ser censurado em todos os níveis mostra uma vontade de tiranizar as vidas das pessoas.

A moça não só não deveria poder postar a imagem dos potes, ela não deveria poder tê-los em primeiro lugar. Seu pai sequer lhes poderia ter dado. Bizarro. Há, contudo, um problema com essa reação desproporcional que não vi ninguém comentar, embora o comentário provavelmente surgiu aqui e ali: Bacio de Latte não é coisa de rico. Alguns podem dizer que, no Brasil, é sim. Mas não é, de fato, coisa de rico. Pare para olhar as localidades onde há franquias da sorveteria Bacio de Latte. Além da zona sul e da Barra da Tijuca (o bairro “rico” da zona oeste), há franquias dessa sorveteria em diversos shoppings da zona norte do Rio de Janeiro, e um ou outro na zona oeste (sem ser a Barra). Falo de shoppings da zona norte frequentados pela “classe média” local, pessoas que não vivem com grande conforto e, na maioria dos casos, estão a uma demissão de caírem no total desespero financeiro. Essas pessoas estão entre os consumidores esporádicos de sorvete em shopping centers. Elas não consomem todo dia, é verdade, mas neste ou naquele fim de semana, quando podem, quando sobra alguma coisa.

Claro que se pode dizer que, no caso da foto, não foi um potinho minúsculo de sorvete comprado durante um fim de semana num shopping, mas vários potes maiores. Vi alguém comentar que aqueles potes não dariam menos de 200 reais. De novo, há um problema que poucos notam: gastar 200 reais num presente ou num agrado esporádico não deveria ser luxo. Talvez seja um luxo dada a situação em que nos encontramos em 2022 e, também, dada a nossa história de desigualdade absurda. Porém um país que até pouco tempo atrás era a sexta maior economia do mundo deveria se revoltar não com a foto dos potes de sorvete de 200 reais, como se isso fosse uma grande ostentação que só os mais ricos sultões pudessem ter, mas com o fato de que a maioria da população não pode gastar nem 1/3 disso numa situação parecida — lembre-se: a mulher ganhou os potes do pai num momento em que só estava podendo comer coisas geladas, não é algo que fazem todo dia.

Na nossa situação desesperadora, é verdade: não é todo mundo que pode gastar 200 reais em potes de sorvete, nem de vez em quando. Não é todo mundo que pode ter carro, também. O preço ridículo dos automóveis no Brasil, aliás, já vinha aumentando há muitos e muitos anos, é um problema que vai além da recente destruição da economia brasileira que ocorreu principalmente de 2016 para cá.10 Então carro vira luxo de bilionários, assim como sorvete. Esquecem-se que, durante um bom tempo, existiu uma coisa chamada carro popular.11, 12, 13, 14 Esquecem-se que, durante muitos anos, graças ao crescimento econômico e diminuição da desigualdade — que não chegou nem perto de ser perfeita, claro —, sorvete era algo que parte considerável população podia comprar, se não a maioria, ainda que fosse de marcas mais baratas.

Às vezes sinto como se certas coisas, que antes eram sabidas, voltaram a ser desconhecidas e se tornaram segredos no Brasil. Coisas como: sorvete não é (ou ao menos não deveria ser) item de luxo — exceto em países muito, mas muito pobres e desiguais, como é o caso do nosso. Mas pobreza e desigualdade não devem ser normalizadas. Mesmo tendo empobrecido, o Brasil ainda tem riquezas o suficiente para que pessoas não precisem considerar sorvete luxo. Essa questão, porém, cai toda na conta da nossa desigualdade. Por isso, é até compreensível que as pessoas passem a achar uma obscenidade uma foto de potes de sorvete. Compreensível, mas não é correto. Pobre é o país no qual potes de sorvete (e carros) são considerados luxos obscenos que só multimilionários podem ter.


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Rápida observação: não estou levando em conta aqui discussões válidas sobre mobilidade urbana (preferência por transporte público), sustentabilidade e emissão de CO2.
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por Fernando Olszewski

Referências: