Já é o suficiente; parte II: bebês não são mártires

Massacre dos Inocentes, de Peter Paul Rubens

Antes de fazermos qualquer outra consideração, é preciso deixar claro que a luta contra a opressão, contra o apartheid e contra a limpeza étnica é completamente justa. Aqueles que existem não são obrigados a aceitar de bom grado a opressão ou destruição por pertencerem a um grupo tido como inferior na mente de seus opressores. É preciso um grau de ilusão muito grande para acreditar que um grupo de pessoas unidas por séculos de história em comum vão simplesmente deitar-se no chão e esperar que os tanques de seus algozes passem por cima delas.

Tendo deixado isso claro, independentemente das razões por trás da opressão de um grupo serem calcadas majoritariamente em questões religiosas ou em questões puramente materiais, bebês não são mártires. Há, claro, um elefante na sala quando se trata de alguns conflitos. Chame de religião, chame de “ideal metafísico”, o fato é que, em determinadas guerras, o peso que a ideia de um mandato divino traz é muito maior do que em outras. Porém, mesmo na análise da mais religiosa das guerras, a influência da fé passou a ser desconsiderada, se não por completo, pelo menos na sua maior parte. O que vale, para muitos, é a análise puramente material, ou seja, o que vale é a política, a economia e o colonialismo.

Desconsidera-se, por exemplo, as raízes religiosas de determinados processos coloniais e de segregação. Certos conflitos que visam a dominação de um território estão claramente mais assentados em questões políticas e econômicas (i.e. na luta por recursos ou por território estratégico). Mas outros não, especialmente quando se trata de uma terra com poucos recursos e cujas partes envolvidas são inspiradas a estarem ali por seus profetas. Contudo, ainda que déssemos o braço a torcer, ainda que absolvêssemos a crença na transcendência de influenciar alguns conflitos, a afirmação de que bebês não são mártires continuaria válida.

Bebês não são mártires nem de causas terrenas, como ideais políticos, nem de causas metafísicas. Eles só o são na cabeça daqueles que têm idade suficiente para considerá-los como tal. A principal acepção da palavra “mártir” alude à ideia de sofrer e morrer por uma causa, ideal ou fé. Atribuir martírio a novas consciências que nem tiveram tempo de se desenvolver e escolher suas crenças é grotesco. Claro, se tratarmos a palavra “mártir” como sinônimo de “vítima”, então sim, qualquer um pode sê-lo.

Aliás, nesse sentido, todos os seres sencientes são vítimas antes de serem qualquer outra coisa, já que foram forçados a existir. Mas sabemos que não é nesse sentido, de vítima da existência, que o termo é comumente usado. Mesmo quando se usa a palavra como sinônimo de vítima, o mártir é sempre vítima de uma injustiça perpetrada contra um membro de um povo justo, uma causa justa, uma crença justa, ou todas essas coisas em conjunto.

Nas últimas semanas, tem aparecido uma enxurrada de fotos e vídeos em redes sociais mostrando pais e líderes segurando crianças e bebês feridos ou mortos, chamando-os de mártires. Isso ocorre principalmente entre palestinos na Faixa de Gaza, visto que são eles que mais têm perdido crianças esmigalhadas em bombardeios israelenses. Porém, chamar crianças mortas de mártires não é monopólio dos palestinos. Israelenses também o fazem. Desde o começo da nova escalada de violência na Palestina, o governo de extrema-direita de Benjamin Netanyahu divulgou notas em que tratam suas crianças como filhas da luz, enquanto que as crianças de seus “inimigos” são os filhos das trevas.

Em ambos os lados desse conflito, é possível encontrar a justificativa metafísica para a criação de novas consciências especificamente com o intuito delas se juntarem aos esforços de uma guerra santa.1, 2 Esse tipo de asserção metafísica é mais difícil de ser feita em conflitos assentados majoritariamente em questões materiais, como no caso da invasão russa à Ucrânia. Lá, a maioria dos combatentes de ambos os lados professam a fé cristã ortodoxa e Deus passa um tanto quanto longe da motivação primária, secundária ou terciária daqueles que matam e morrem.

Ainda assim, é óbvio que a ideia de reprodução como forma de combater invasores ou como forma de criar novos conquistadores existe mesmo sem a motivação divina. A fé num novo mundo feito exclusivamente pelo homem também condena à existência milhões de novas consciências. Entre exemplos famosos, podemos citar o regime hitlerista, que incentivou procriação com o objetivo de expandir a raça ariana, e o regime stalinista, que reverteu o direito das mulheres ao aborto — direito alcançado quando Lenin esteve à frente do Estado — e incentivou famílias grandes com o objetivo de alavancar a indústria e a própria sociedade soviética.3, 4 

Em nossa loucura, não basta lutarmos as nossas próprias lutas. Queremos gerar novos combatentes para morrerem por nossas causas. Em alguns casos, com a certeza de que estamos empurrando eles para uma recompensa maravilhosa após a morte. Os filhos-soldados são extensão de nós mesmos e de nossos irmãos de armas. Acreditamos ter o total direito sobre suas vidas. A modernidade trouxe a ideia de autonomia para o indivíduo, mas no fundo, ainda pensamos como os medievais: tanto o pecado quanto a glória dos pais se estendem aos filhos e à toda sua geração. Só não admitimos isso.

A vida, no melhor dos cenários, é uma enorme fábrica de trabalho escravo. Mesmo aqueles que exploram o suor dos outros têm o trabalho de explorá-los ou, ao menos, de vigiá-los. Hesíodo, em Trabalhos e Dias, já tratava a condição humana de labuta e sofrimento como uma maldição. Para piorar, ainda nos vemos incentivados a trazer novos amaldiçoados para servir de bucha de canhão em nossas causas e em nossas guerras, sejam elas justas ou não. Já é o suficiente. Deixemos o mundo em silêncio depois de nós. Feche a porta do inferno aquele que for o último a sair.


por Fernando Olszewski

Notas: