Ensaio sobre desistir

Figura, por Ivan Serpa

A maior parte da vida consiste de desistências. Aliás, toda ela é um ensaio para a desistência final. Às vezes, o ensaio é longo e repleto de experiências, outras vezes tão curto que o ser nem sequer toma ciência do que está acontecendo, mesmo que num nível rudimentar. Para aqueles que têm vida mais longa, toda escolha implica em ao menos uma desistência, mas geralmente elas são múltiplas. Desistimos da maior parte das coisas, ainda que não percebamos ou que ignoremos isso.

Há um aspecto terapêutico em muitas desistências, o que pode tornar a abordagem desse fenômeno algo como autoajuda. Desistir de um projeto que deixou de nos fazer bem ou que não estava dando certo, às vezes, é melhor do que continuar, é verdade. Não adianta dar murro em ponta de faca. Certos esforços são em vão e é melhor reconhecermos isso o quanto antes. Mas esse aspecto aparentemente positivo não altera a realidade de que, queiramos ou não, as desistências estão sempre presentes conosco, desistências que muitas vezes não têm nada de positivas.

Muitas delas envolvem aspectos morais. Há quem discorde, mas ao deitarmos confortavelmente nas nossas camas enquanto a alguns metros de nós uma pessoa dorme na rua em meio a baratas e ratos, escolhemos, ainda que de forma passiva, não ajudá-la. Preferimos o nosso conforto ao dela.

Sim, podemos falar que não é possível ajudá-la por diversas razões ou que, mesmo que a ajudássemos, não conseguiríamos ajudá-la o tempo todo. Também podemos dizer que se pudéssemos ajudá-la o tempo todo, não poderíamos ajudar outras pessoas. Não podemos salvar o mundo inteiro. Tudo isso é verdade. Ajudar uns significa desistir de ajudar outros. Dependendo da ocasião, doar o nosso tempo aos outros, mesmo entes queridos, significa desistir de gastar tempo conosco. E por aí vai. As desistências se multiplicam e não há nada que possamos fazer, exceto talvez usar uma linguagem mais positiva: não estou desistindo de muitas coisas, estou afirmando uma coisa!

Continuamos desistindo de qualquer forma. O tempo passa como um enorme trem em movimento, inexorável, e com ele vemos caminhos sendo colocados de lado, passando pela janela. Devo ir na esquina comprar um sorvete? Devo buscar o doutorado? Cada caminho que tomamos são outros tantos que não escolhemos e vão ficando para trás do trem. Ainda que oportunidades retornem e queiramos abraçá-las, não somos mais o que éramos antes, pelo menos em muitos aspectos. Melhor do que tornar esse aspecto de nossas existências em algo positivo é encará-lo como uma inabilitação: não temos como fazer diferente.

Ao abrirmos uma porta, várias outras se fecham, até um momento em que somos jogados em portas cada vez mais dolorosas e abjetas contra a nossa vontade. Só sobra uma no final. A última vista do trem antes dele chegar na estação do nada, a mesma de onde saímos obrigados, chorando, enquanto todos à nossa volta achavam tudo muito lindo — claro, pois foram condicionados pela cultura e pela natureza a perseverar em face do carnaval de horrores.

Por que deveríamos escolher desistir de tantas coisas e não desistir de algumas outras? Às vezes porque isso significa reconhecer a si mesmo no outro, como no caso daquelas escolhas que contêm aspectos morais. Mas de um certo ponto de vista, todas elas contêm aspectos morais. Afinal, sempre poderíamos ser santos que se doam a todo momento para os outros. Porém, como já vimos, é bem difícil. E é mesmo. Se a vida é um teste para santidade, no sentido de nos reconhecermos nos outros e doarmos todo o nosso ser para que eles se sintam aliviados, raríssimos são aqueles que passam.

Tudo volta ao problema do nascimento. Tudo. Esse oceano de desistências e impossibilidades, que nunca são lembradas, como a miríade de perdedores de uma olimpíada, é resultado daquele primeiro agravo que sofremos, o mais terrível de todos. Fomos agraciados com a dádiva de sermos testemunhas das coisas mais grotescas, de fazermos parte de uma análise próxima e pessoal da decadência inerente ao devir, e sorrimos de orelha a orelha, achando tudo muito lindo, claro.

Alguns poucos reconhecem que raramente o devir é lindo, mas o consideram necessário e além de qualquer julgamento da nossa parte, acreditando que com isso são sábios. São menos cegos do que muitos, sim. Mas acabam cumprindo o papel de forjadores de desculpas para o moedor de carne ao qual estamos submetidos nesta vida. É verdade que há muita beleza e a aparência de necessidade. Mas tudo parece ser como um plano insidioso, feito pelas forças malignas, para nos trancar aqui dentro.

Quisera eu ter podido desistir do meu próprio nascimento! Quiséramos todos nós. Não ter sido... Que coisa maravilhosa. Uma filosofia da desistência, que nos faz compreender que, já nascidos, podemos entender que tudo, no final, é em vão. Ao término da vida, nossas consciências, formadas de matéria orgânica e submetidas às forças naturais, voltam ao mesmo estágio de inexistência de onde saíram, se tudo der certo. Retornamos à abençoada inexistência da qual desistimos quando viemos ao mundo. Ou melhor: da qual desistiram por nós.

Só de imaginarmos a possibilidade de nunca ter que desistir de nada, de nunca ter que escolher nada, de nunca desistirem de nós, traz uma grande calma. Há uma vacuidade em tudo aquilo que fazemos e tudo aquilo que somos. Deus desistiu de sua criação, porque não podemos nos alegrar com a possibilidade de pagarmos com a mesma moeda? Nunca houve um Deus e somos fruto da natureza? Então não devemos absolutamente nada à natureza e podemos desistir dessa Mãe impessoal, que não se importa de sufocar seus filhos aos trilhões, todos os dias.

Não, a vida humana não é um teste para a santidade, embora aqueles que vivem para aliviar o sofrimento alheio sejam os melhores de nós. Ela está mais para um teste, feito pelo acaso, no qual os vitoriosos são aqueles que compreendem que devemos desistir da decadência do devir. Há santidade na desistência, também, e a santidade altruísta não é incompatível com a santidade do desistente. Só o é para aqueles que pretendem perpetuar sofredores, fetichizando a sua função de santo. A santidade do desistente supera e engloba todas as outras, inclusive a santidade altruísta, porque percebe a vacuidade de perseverar eternamente numa empreitada malignamente inútil.


por Fernando Olszewski