Pessimismo e política

Pollice Verso, por Jean-Léon Gérôme.

Desde que tive os meus primeiros acessos de lucidez há pouco mais de uma década, acessos estes que me fizeram entender que a vida é dolorosa, sem sentido e que não ser é melhor do que ser, de tempos em tempos as pessoas me questionam sobre a guinada à “esquerda” que acompanhou a lucidez. Algumas delas, mais próximas, indagaram de forma polida. Já outros, anônimos das redes sociais, tomaram a liberdade de me xingar. Eles apontam que o pessimismo supostamente é sempre conservador e totalmente incompatível com simpatias políticas consideradas progressistas. Esse suposto truísmo vem tanto de conservadores quanto de progressistas, embora os primeiros sejam a maioria e é deles que vieram os xingamentos até agora.

Embora tenha deixado a resposta transparecer diversas vezes, resolvi que seria uma boa ideia resumir de uma vez por todas o que se passou e a principal razão pela qual a mudança de postura política acompanhou a lucidez.

É mais fácil começar a descrever essa postura pelo o que ela não é. Ela não é a mesma daqueles que acreditam que a história humana possui um lado certo, num sentido científico. Isto é, que a história possui uma lei, discernível pelo homem, que engendra sociedades cada vez mais racionais e igualitárias ao longo do tempo, o que dispensa a moral e a trata como sentimentalismo burguês. Ao dissociar filosofia moral da política, ao abraçar de vez o maquiavelismo não só como tática, mas como visão de mundo, movimentos políticos progressistas na primeira metade do século XX tiveram sucesso em tomar o poder, mas construíram sociedades que, embora menos desiguais, eram falhas, opressoras e paranoicas.

Apesar do pessimista e socialista Mainländer1 criticar corretamente Schopenhauer por sua falta de interesse e conhecimento em relação às questões políticas e sociais, é uma observação simples do próprio Schopenhauer2 que encapsula não só a concepção da ética, mas também da política que comecei a ter: a convicção de que o mundo e o homem são coisas que não deveriam existir — que não ser é melhor do que ser — deveria nos encher de tolerância, paciência, amor e compaixão, coisas que todos nós precisamos e que, portanto, todos nós devemos uns aos outros. Somos todos exilados metafísicos no devir, condenados não à morte, mas à vida, com todas as suas tribulações.

Essa compreensão é perfeitamente estendível para o campo da política, a arte de viver na pólis. Então, nada tem de utopismo, de busca por um mundo perfeito ou de crença num desenrolar histórico. A ideia é a contenção de danos, nada mais.

Para Mainländer, a finalidade de toda a existência é se anular. Seres dotados de autoconsciência e inteligência conseguem entender isso, mas ter esses atributos não é suficiente para chegar a essa conclusão. Antes de nos extinguirmos voluntariamente, ele postulava ser necessário alcançarmos um grau de prosperidade geral onde todos teriam suas necessidades materiais mais do que resolvidas. Só assim, como espécie, perceberíamos a vacuidade da existência. É difícil alguém ponderar sobre como não ser é melhor do que ser quando se está lutando para não morrer de fome e quando não se tem tempo nem educação acessível em primeiro lugar.

A ideia de que o pessimismo é necessariamente conservador tem sido usada por alguns pensadores conservadores nas últimas décadas. Roger Scruton, na Inglaterra, e Luís Pondé, no Brasil, são dois deles. Até mesmo o não-pensador, Olavo de Carvalho, ajudou a propagar isso. Mas, embora o pessimismo traga consigo uma apatia política, além da recusa da Utopia como ilusão perniciosa, tratá-lo como intrinsecamente conservador é mais estratégia de marketing do que uma coisa séria: alguns conservadores revestem-se de um tipo de pensamento profundo para justificar a sua apologia das mais grotescas opressões contemporâneas.

Uma coisa é afirmar que a ideia de um mundo perfeito é tolice. É tolice mesmo. O máximo que conseguimos é dar suspiros de alívio. A ideia de que o homem é capaz de construir uma era de ouro maravilhosa na Terra sempre será receita para o desastre. Porém, concluir daí que não podemos tornar as coisas bem menos piores do que elas são é desfaçatez. Mas não é só desse campo que vem o suposto truísmo. Mais recentemente, alguém comentou como “o pessimismo é reacionário e o otimismo é revolucionário”. Se por isso querem dizer que o pessimismo não crê em utopias, nem que existe algo que torne ser mais desejável que não ser, sim. Mas, ainda assim, essa é uma interpretação bastante alargada do que seja ser reacionário.

Essa caracterização tem sua maior expressão na crítica de Lukács3 à filosofia de Schopenhauer, crítica essa que, por alguma razão, é até hoje tratada como uma grande refutação do pessimismo schopenhaueriano por alguns. Ao lermos o que Lukács escreve sobre Schopenhauer, vemos como o ad hominem foi elevado à forma de análise séria por pensadores sancionados pelos antigos regimes marxistas do leste europeu. A sua mensagem pode ser resumida como: esqueça o que Schopenhauer de fato diz sobre a existência, o que importa é que ele prega a passividade social e é burguês, portanto toda a sua análise não passa de justificativa para a dominação da classe proletária.

Para Lukács:
“[...] o sistema de Schopenhauer — construído com uma natureza arquitetônico-formal, de modo engenhoso e com senso de composição — erige-se como um elegante e moderno hotel, equipado com todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo. E a visão cotidiana do abismo, entre refeições ou criações artísticas confortavelmente saboreadas, só pode aumentar a alegria desse sofisticado conforto.
“Com isso, o irracionalismo schopenhaueriano cumpre a sua tarefa: impedir que certo setor descontente da intelectualidade dirija concretamente o seu descontentamento com o ‘existente’, leia-se, com a ordem social vigente, contra o sistema capitalista dominante. Com isso o irracionalismo cumpre a sua meta central — e não importa até que ponto o próprio Schopenhauer tivesse consciência disso: fornecer uma apologia indireta da ordem social capitalista.”4
Ele também afirma que Nietzsche, depois, ajudou a encaminhar esse mesmo pessimismo para a sua expressão ativa e imperialista. Não curiosamente, Lukács silencia a respeito de Mainländer, por razões óbvias: Mainländer contradiz a ideia de que a rejeição pessimista e niilista do ser é necessariamente uma justificativa indireta do status quo capitalista. Mesmo que se aponte que há apenas um exemplo, o de Mainländer, um já basta para fazer com que a acusação do pessimismo como apologia indireta da opressão de classe desmorone.

Ao contrário do que afirma Lukács, é perfeitamente possível que sejamos descontentes com a ordem social vigente, com o sistema dominante, e ainda assim sejamos descontentes com a existência em si. Ao afirmarem que isso é impossível ou que é errado, ao inclusive quererem que se proíba que nós possamos chegar a essa conclusão, obrigam-nos a ficar no devir, mesmo que tenhamos todas as razões para deixá-lo, além de nos obrigar a criar novas cópias de nós mesmos, através da reprodução, para sofrerem o mesmo destino. Os que pensam dessa forma, querendo ou não, estão no mesmo grupo de Nietzsche, Scruton, Pondé e Carvalho: são forjadores de justificativas para o devir.

Para os justificadores do devir, o homem deve graças a Deus, à pátria, à família, à sociedade, ao Estado ou à espécie pelo simples fato de ter nascido, isto é, pelo simples fato de ter sido jogado num mundo sem que seu consentimento pudesse ser obtido, visto que não existia. Já para os que defendem que não ser é melhor do que ser, a única coisa que talvez devamos aos outros é justamente a compaixão por estarmos todos numa situação incontornável, dolorosa e mortal.

por Fernando Olszewski

1. Beiser, Frederick C. Weltschmerz: Pessimism in German Philosophy, 1860-1900. 2016. p. 223.
2. Schopenhauer, Arthur. Parerga and Paralipomena. v. 2. 1974. p. 304.
3. Lukács, Georg. A destruição da razão. 2020. p. 172-219.
4. Ibid. p. 219.