Excesso de Lucidez

Pintura de Darina Muravjeva


Em A Negação da Morte, o antropólogo Ernest Becker escreveu o seguinte:

A prisão do caráter da pessoa é trabalhosamente construída para negar uma coisa, e apenas uma coisa: a sua condição de criatura. Isso é o terror. Uma vez admitido que é uma criatura que defeca, você convida o oceano primitivo da angústia animal a desaguar sobre você. Mas isso é mais do que angústia da criatura, é também a angústia do homem, a angústia que resulta do paradoxo humano de que o homem é um animal cônscio de sua limitação animal. A angústia é o resultado da percepção da verdade da nossa condição. O que significa ser um animal consciente de si mesmo? A idéia é absurda, se não for monstruosa. Significa saber que se é alimento para os vermes. Este é o terror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão — e, apesar de tudo isso, morrer. Parece uma mistificação, que é o motivo pelo qual certo tipo de homem cultural se rebela abertamente contra a idéia de Deus. Que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos do homem para se divertirem.

No livro Os Três Primeiros Minutos, o físico ganhador do Nobel, Steven Weinberg, fez uma afirmação que vai na contramão de tudo o que os crentes numa ordem divina e, também, os crentes numa grandiosa ordem natural acreditam; porém, sua afirmação complementa bem o pensamento de Becker. Weinberg escreveu:

Quanto mais o universo parece compreensível, mais ele parece sem sentido.

Esse sentimento de que, quanto mais consciência e conhecimento, mais desafortunado é um ser e, quanto menos consciência ou quanto mais próximos dos animais, menos desafortunado é um ser, ecoa em diversos pensadores e escritores. O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, escritor que não se afirmava pessimista — embora tenha escrito que a vida parece ser um erro da matéria e que o cansaço da vida o fazia desejar nunca ter existido — é repleto de afirmações maldizendo a consciência de si e a inteligência. Dentre vários exemplos, um dos mais marcantes é a longa citação que se segue:

A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.

A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.

Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstrata para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental. O falar e escrever nada fazem de novo no nosso instinto primordial de viver sem saber como. A nossa inteligência abstrata não serve senão para fazer sistemas, ou ideias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.

Todo o mundo, toda a vida, é um vasto sistema de inconsciências operando através de consciências individuais. Assim como com dois gases, passando por eles uma corrente elétrica, se faz um líquido, assim com duas consciências — a do nosso ser concreto e a do nosso ser abstrato — se faz, passando por elas a vida e o mundo, uma inconsciência superior.

Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por instinto e destino orgânico o que todos nós temos que realizar por desvio e destino inorgânico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem esforço o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como uma árvore, é parte da paisagem e portanto da beleza, e não, como nós, mitos da passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento.

Pessoa, décadas antes de Becker, diz basicamente a mesma coisa que Becker afirma em seu trabalho: inventamos todo um aparato para nos deixar inconscientes do fato de que defecamos, sofremos e somos comida para vermes. No caso de Pessoa, na verdade, nem sequer é preciso inventar um aparato. O aparato já vem pronto de fábrica, especialmente para a vasta maioria dos seres humanos, que Pessoa acreditava não pensar, isto é: a vasta maioria que ele acreditava não ter entendimento da situação em que se encontra. Pessoa — que repito, fez questão de salientar que não é pessimista — trata como mais felizes os que vão com o fluxo da vida e não pensam na existência. Tendo a concordar com ele. Por exemplo, ele escreve:

Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!

Embora pareça, Pessoa não está sendo um completo elitista ao escrever essas palavras. Em outro trecho, ele afirma que:

O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.

A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes — brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias — que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.

Ou seja, para Pessoa, mesmo entre aqueles que são brilhantes há uma quantidade enorme de indivíduos apaziguados na inconsciência, consumidores de ilusões diversas, que também vegetam. São como máquinas de calcular vivas, capazes de solucionar problemas e gerar grande valor para o mundo humano, mas são incapazes de enxergar fora das ilusões. Embora brilhantes em diversos aspectos, não possuem inteligência ou talvez má sorte suficiente para entenderem o fado da lucidez excessiva. Ter excesso de lucidez é saber que a vida precisa ter ao menos um determinado grau de inconsciência, senão ela não aguenta continuar vivendo, dada a vacuidade de sentido e a dor que todos nós viventes temos que aguentar. Os amaldiçoados capazes de compreender isso sem se agarrar a ilusões teológicas ou seculares encontram-se no estado que Pessoa chama de Decadência. Os infelizes habitantes da Decadência entendem que não são nem parte de um plano divino, nem parte de um plano natural ou histórico ou o que quer que seja:

Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.

Só não caímos todos em desespero porque aprendemos a limitar o conteúdo de nossas consciências através de milhares de anos de evolução. É isso o que o filósofo Peter Wessel Zapffe argumentava. Para Zapffe, somos animais essencialmente metafísicos, buscadores de um propósito maior que faça toda a nossa vida e os problemas que temos ao longo de nossas vidas fazerem sentido. Há, claro, sentidos intramundanos fabricados culturalmente e individualmente. Mas esses sentidos nem sempre se sustentam e estamos a todo momento a poucos passos do terror existencial. Esses mecanismos de limitação da consciência, contudo, não funcionam para todos. Algumas pessoas, quebradas desde o nascimento ou ao longo da vida, são capazes de enxergar o que há no final do túnel. Para o seu desespero, não é uma luz, mas o vazio uivante do nada. Para o escritor e admirador de Zapffe, Thomas Ligotti, sem as emoções bem intencionadas que mantêm os nossos cérebros apaziguados, nós perderíamos o nosso equilíbrio e cairíamos no abismo da lucidez. Segundo ele, a lucidez traz o conhecimento perfeito do nada e da dor para seres dotados de consciência.

Afirmo que pessoas com excesso de lucidez são quebradas porque nelas falta uma adaptação natural crucial. Seriam mais contentes com tudo e mais aptas a deixarem descendentes se não faltasse nelas o mecanismo que ilude constantemente a espécie. Dos homens mais brutos aos cientistas mais consagrados, quase toda a espécie não fica desamparada pelo mecanismo natural que engana e diz que a vida não é malignamente inútil. Esse mecanismo, para Schopenhauer, era uma Vontade única, que atravessa tudo o que existe e subsiste por si mesma fora do tempo e do espaço. É só no animal humano, possuidor de consciência de si e de inteligência, que o entendimento da Vontade pode ser atingido. Porém, isso não significa que todos atingirão esse entendimento. Para Schopenhauer, poucos, na verdade, são capazes. Para ele, contudo, esses poucos são os melhores da humanidade. Dentre esses, há um grupo menor ainda de pessoas que negam totalmente a si próprias, esfomeando a Vontade que as anima: os ascetas. Longe de serem quebrados, para Schopenhauer, eles são os mais avançados de nós. Eles seriam mais contentes se não enxergassem o mundo através do Véu de Maia, sim, mas esse não é o ponto. É do ponto de vista do heroísmo que podemos considerar o asceta como o mais perfeito dos humanos, não do ponto de vista evolutivo.

Ao considerá-los o ápice da humanidade, Schopenhauer não quer dizer, claro, que aqueles que são capazes de enxergar a realidade sem ilusões estão livres do sofrimento. Pelo contrário, segundo o filósofo, quanto mais inteligente for o indivíduo, quanto mais ele entender a realidade do mundo, mais sofrido ele será. Mas esse indivíduo também será capaz de negar a Vontade dentro de si — e isso, para Schopenhauer, coloca-o num grau de perfeição maior do que o resto, mesmo com todo o sofrimento. Embora concorde com boa parte do que Schopenhauer afirma, ainda se mantém para mim o fato de que os iludidos, os brutos e os incapazes encontram um contentamento que aqueles que chamo de “quebrados” não encontram. Para Schopenhauer, o asceta é o auge do que podemos ser e ele não está quebrado, pelo contrário, ele é uma expressão aperfeiçoada da Vontade, que se torna capaz de perceber o horror e o vazio da existência. Talvez o asceta seja isso mesmo. Porém, penso que, no asceta, o mecanismo da ilusão também não funciona, como não funciona naqueles que Fernando Pessoa diz habitarem a Decadência.

Os ascetas se diferenciam do resto dos quebrados não na lucidez excessiva, que ambos possuem, mas no que fazem com ela. O asceta morre para o mundo ainda em vida, negando a si próprio e vivendo para outra coisa: seja na clausura, seja na doação aos sofredores, seja na meditação. Tudo isso é norteado por diversos mitos relativos à cultura religiosa ou secular de cada asceta, é verdade. Ele habita a Decadência que é a consciência da vida, mas se eleva e faz da sua existência terrena uma missão de desapego. Porém, não havendo nada fora da existência concreta que nos cerca, há quem critique o ascetismo como loucura e até fraqueza. De fato, colocar um peso muito grande na verdade literal das religiões que promovem o ascetismo é problemático por não existirem evidências arqueológicas ou científicas que comprovem a realidade de um único evento sobrenatural sequer. Contudo, Schopenhauer mesmo argumentou que a âncora do ascetismo está para além da literalidade dos mitos religiosos: ela se encontra num sentido figurado, alegórico, filosófico.

Mas, para além da literalidade, a ideia de que a rejeição do mundo seria uma loucura pelo simples fato de que a existência que nos cerca é tudo o que há me parece uma tentativa de acabar com a conversa e se decretar vitorioso sem fundamento. Aqueles que se abstêm de julgar a vida afirmando não ser possível fazê-lo estão implicitamente afirmando-a, querendo ou não. Eles habitam o limiar entre a lucidez excessiva e a ilusão, criando uma nova ilusão: a de que a existência, com todas as suas dores e falta de sentido, não pode ser questionada e só nos resta aceitá-la. Nós só podemos nos submeter a ela, sem reclamar. Porém, isso é algo que ninguém faz ou fez. De certa forma, o asceta que se deixa morrer de fome consegue ser mais próximo de aceitação total do que o mais ferrenho afirmador da vida, já que estar vivo é não aceitar as coisas que aparecem naturalmente, coisas inevitáveis como a fome e outras necessidades básicas de qualquer organismo. Estar vivo é mover-se o tempo inteiro para escapar de situações naturalmente desconfortáveis. Aceitar essa realidade é aceitar a instabilidade, já que estabilidade é algo que não faz parte do devir.

É por essa razão que Cioran escreveu que Nietzsche foi um falso iconoclasta, que derrubou ídolos apenas para erguer outros: a vida, o devir, a existência, inquestionáveis como vontade de potência. O pensamento de Cioran faz coro com as análises de Pessoa, Zapffe, Becker e Ligotti. A consciência, segundo Cioran, é um escândalo biológico que nos remove do presente absoluto no qual vivem os animais. Em suma, a consciência humana é um erro de percurso da natureza. Aliás, para Cioran, a própria vida já é um equívoco ou, nas suas palavras, um “mau gosto da matéria”. A consciência, portanto, seria um equívoco ainda maior do que a própria vida em estados menos conscientes ou vegetativos. No jogo da vida, a nossa espécie recebeu cartas aparentemente vencedoras da natureza, visto que nos tornamos a espécie dominante do nosso planeta. Somos senhores que hoje detêm o destino de toda a biosfera em nossas mãos. Entretanto, essa vitória depende da manutenção constante de um certo grau de inconsciência que permite a vasta maioria de nós tocar a vida como se ela estivesse indo para algum lugar e, novamente, como se tudo isso não fosse malignamente inútil.


por Fernando Olszewski