Os filhos mais azarados da natureza

Natureza morta com um crânio, de Philippe de Champaigne

Imagine processos físicos e químicos se desenrolando ao longo de bilhões de anos finalmente produzindo as primeiras protocélulas capazes de se replicar e diversificar ao longo do tempo. Durante alguns bilhões de anos, a vida em nosso planeta foi unicelular, microscópica. Seres multicelulares, como plantas, fungos e animais, são uma adição tardia à biosfera, tendo surgido apenas nos últimos 600 milhões de anos. Desde então, árvore da vida produziu uma multitude de seres equipados com aparatos sensoriais cada vez mais complexos e desses, parte sentem o desconforto, a falta de saúde e os machucados através de órgãos que traduzem esses estímulos como dor: os azarados membros do reino animal.

A natureza gerou incontáveis criaturas que sofreram estímulos nocivos a sua saúde apenas para deixar descendentes e morrer, numa cadeia que se estende ao longo de várias eras geológicas. Aqui e ali, pequenas variações genéticas, que normalmente são deletérias para os organismos, produziram novas espécies que sobreviveram às pressões da seleção natural e passaram seus traços bem sucedidos para gerações futuras. Surgiram as primeiras plantas, os primeiros fungos e os primeiros animais, que se diversificaram cada vez mais. No reino animal, seres estranhos extintos há centenas de milhões de anos deram origem aos animais invertebrados e vertebrados que existem atualmente.

E é nos animais que as coisas ficaram realmente sombrias. Com seus variados sistemas nervosos, determinados sinais danosos passaram a ser interpretados como dor. A dor é um traço evolutivo que, no agregado, permite a sobrevivência da espécie. Ao fugir da dor, o animal tem mais chance de sobreviver e se reproduzir. Mas, convenhamos, a percepção de dano através da dor é uma inovação natural detestável. E quanto mais complexo, maior a capacidade do animal sentir e expressar sua dor. Enquanto que até seres unicelulares são capazes de responder e, dependendo do caso, se afastar de estímulos danosos, e enquanto plantas também possuem mecanismos de percepção de determinados estímulos que atentam contra sua saúde, é nos animais que a percepção de estímulos danosos se torna dor. Essa percepção de dor através de um sistema nervoso é chamada de nocicepção.

Quanto mais complexo é o sistema nervoso de uma espécie, maior aparenta ser o abismo de dor física ao qual o indivíduo dessa espécie está submetido. Mas a coisa não para por aí. Quanto mais desenvolvido for o sistema nervoso, mais suscetível estará o animal a dores que vão além daquelas que são físicas. Não apenas feridas causadas por agentes externos e doenças o afetarão negativamente, mas também estados internos produzidos pela forma como o animal percebe e entende o mundo ao seu redor. Quanto maior a capacidade cognitiva, quanto mais o animal tem a habilidade de absorver o mundo, mais a capacidade para a dor mental é potencializada.

Nós, humanos, não somos os únicos animais que conseguem sofrer psicologicamente. Nós não somos os únicos animais a sentir alegria e felicidade. Porém, entre todas as espécies de animais vivas hoje na face da Terra, nós somos de longe a mais dotada em termos cognitivos. Nós conseguimos ponderar sobre tudo, ainda que não cheguemos a uma resposta ou conclusão. Temos a infelicidade de sermos capazes de refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos, inclusive sobre o nosso começo e o nosso fim. Podemos até mesmo refletir sobre todo o sofrimento pelo qual passaram todas as criaturas sensíveis ao longo da história natural. Tendo ponderado sobre a seleção natural e a falta de sentido para o sofrimento dos animais durante toda sua vida, Charles Darwin escreveu o seguinte em sua Autobiografia:

Que existe muito sofrimento no mundo, ninguém discute. Alguns tentaram explicá-lo, em referência ao homem, imaginando que isso serve para seu aprimoramento moral. Mas o número de seres humanos no mundo não é nada, comparado ao de todos os outros seres sensíveis. Estes, muitas vezes, sofrem enormemente, sem nenhum aperfeiçoamento moral. Para nossas mentes finitas, um ser tão poderoso e tão pleno de conhecimentos quanto um Deus capaz de criar o Universo é onipotente e onisciente. Para nossa compreensão, é revoltante supor que sua benevolência não seja ilimitada, pois que vantagem haveria no sofrimento de milhões de animais inferiores, durante um tempo quase infinito?

Isso faz lembrar a passagem do segundo volume de O mundo como vontade e como representação em que Schopenhauer escreve sobre as observações de Franz Wilhelm Junghuhn, médico, geólogo e botânico alemão da primeira metade do século XIX:

Junghuhn conta que observou em Java um vasto campo tomado por carcaças e que ele julgou ser um campo de batalha: as carcaças nada eram, contudo, senão as de grandes tartarugas, longas em cinco pés, três de largura e de altura, que, ao sair do mar para pôr os seus ovos, pegam esse caminho e então são atacadas por cães selvagens que, com a força da matilha, viram-nas de costas, arrancam-lhes a carapaça inferior, logo as pequenas placas da barriga, e assim as devoram vivas. Mas amiúde então um tigre pula sobre os cães. E todo esse tormento repete-se por milhares e milhares de vezes, ano após ano. Para isso nasceram, portanto, essas tartarugas? Por qual crime têm de sofrer tal tormento? Para que todas as cenas de horror? A única resposta é: assim objetiva-se a Vontade de vida.

Vale lembrar que Schopenhauer precede Darwin em algumas décadas e não chegou a viver para ver a revolução causada por suas descobertas. Mas, para homens que enxergavam o mundo sem as lentes do conformismo religioso ou dos ideários filosófico-políticos da época, a realidade ficava bem clara: a natureza produziu um oceano de seres sensíveis que são incessantemente submetidos a uma procissão de dor a troco de nada. O homem se encaixa dentro desse quadro da pior maneira: ele consegue entender o que está acontecendo. Isso, claro, faz com que ele se revolte e busque algum tipo de ilusão ou, no máximo, a aceitação heroica de sua condição. Em A queda no tempo, Cioran escreve:

Uma vez que o homem, separado do Criador e da criação, tornou-se indivíduo — em outras palavras, fratura e fissura no Ser — e uma vez que ele aprendeu, assumindo seu nome a ponto de provocação, que ele era mortal, seu orgulho foi assim ampliado, não menos que sua confusão [...] Não mais reconciliado com um desfecho outrora intensamente desejado, ele se volta finalmente, e ansiosamente, para os animais, seus antigos companheiros: todos, vis e nobres, aceitam seu destino, desfrutam dele ou se resignam a ele; ninguém seguiu seu exemplo ou imitou sua rebelião. As plantas, mais do que os animais, regozijam-se por terem sido criadas: a própria urtiga ainda floresce dentro de Deus; somente o homem sufoca ali, e não é essa sensação de asfixia que o levou a se afastar do resto da criação, um pária consentido, um rejeitado voluntário? Todos os outros seres vivos, pelo próprio fato de serem idênticos à sua condição, têm uma certa superioridade sobre ele. E é quando ele os inveja, quando anseia por sua glória impessoal, que o homem entende a gravidade de seu caso.

Somos os mais azarados dos filhos da natureza porque sabemos o que está acontecendo, entendemos que todo o processo que nos trouxe até aqui é fútil, sem propósito. No grande esquema das coisas, somos comida para vermes e nada mais. Nos rebelamos contra esse destino, mas não adianta. Invejamos os outros animais não porque a natureza é bela e harmônica, ela não é. Nossa inveja brota de vê-los ignorantes do todo. Eles fazem parte do todo. Ainda que sofram horrivelmente, não compreendem isso, não mudam. As tartarugas sobre as quais Schopenhauer escreveu não possuem a faculdade do entendimento. A seleção natural não as moldou para que fossem habilitadas para isso, ao contrário de nós e de nossos ancestrais mais imediatos. Foi por isso que eles dominaram o fogo, começaram a fazer ferramentas de pedra e acabaram inventando a roda. Mas a mesma vantagem natural que nos deu a chance de dominarmos a natureza fez com que pelo menos alguns de nós enxergassem a futilidade disso tudo.

O que nos torna especiais frente às outras criaturas capazes de sentir? Nada. Somos perdedores no final das contas. A condição dos outros animais, porém, não deve ser romantizada. São nossos irmãos, logo, sempre estão a poucos passos de serem moldados através das eras pela natureza para sofrerem tão intensamente quanto nós. Eles já sofrem, e muito. Sua única vantagem é não terem o conhecimento profundo de seu sofrimento e mortalidade — embora alguns outros animais também estejam sujeitos à tristeza e reconheçam a morte, eles não estão mergulhados num abismo de entendimento como nós estamos. Na mesma obra, A queda no tempo, Cioran escreve sobre o quão próximos estamos dos nossos irmãos e o que nos diferencia deles:

Sem dor, como o autor de Notas do Subsolo viu tão bem, não haveria consciência. E a dor, que afeta todos os vivos, é a única indicação que nos permite supor que a consciência não é privilégio do homem. Inflija alguma tortura a um animal, considere a expressão de seus olhos, e você perceberá um lampejo que projeta a criatura, por um instante, acima de sua condição. Seja qual for o animal, uma vez que sofre, dá um passo em nossa direção, esforça-se para se juntar a nós. E é impossível, enquanto durar sua aflição, negar-lhe um grau, por mínimo que seja, de consciência.
Consciência não é lucidez. A lucidez, monopólio do homem, representa a conclusão do processo de separação entre a mente e o mundo; é necessariamente consciência da consciência, e se nos distinguimos dos animais, é somente a lucidez que deve receber o crédito ou a culpa.

A lucidez é a consciência da consciência, a separação total entre a cognição e o resto do universo. Ela reflete o paradoxo ambulante que somos: seres paridos pelo cosmos, mas que não se enxergam parte dele. Somos órfãos de alguma coisa, exilados de algum lugar. Entendemos o nosso próprio entendimento e, por isso, há uma cisão entre o homem e os animais, porque nossa consciência não é mais uma com o todo. Ela se individua, encapsulando-se a si própria. Um verdadeiro truque de mestre forjado pela pressão natural. Não adianta tentarmos nos imaginar como parte desse todo. Nós não somos. E quando tentamos, somos escorraçados pelos outros animais. Até mesmo as sociedades indígenas, que muitos inocentemente supõem estarem em perfeito equilíbrio e pertencerem a algum estado natural, já representam um rompimento completo com o todo da natureza. Mas não é culpa delas, nem nossa. É culpa do acaso evolutivo que nos fabricou.

Embora nem todos parem para questionar o todo, embora muitos toquem seus dias como se fossem robôs, após um tempo, é inevitável que surjam pessoas que pensem sobre as suas vidas, sobre a vida em geral, sobre a existência e a mortalidade. A morte é a real causa do espanto filosófico, segundo Schopenhauer. É verdade. Mas a morte não só a musa da filosofia. Ela, junto com o sofrimento e a óbvia banalidade da vida, também encontra-se na raiz das mentiras que contamos para nós mesmos para conseguir tocar o dia. Ela também é musa das nossas artes. A mais sublime obra de arte, dentro desse contexto, pode ser mera distração, mas eu argumento que é mais que isso: é o humano tentando transcender sua condição, sublimando o agora com o objetivo de tocar o eterno, o incondicionado, sem o auxílio de ilusionistas charlatões e vendilhões da fé.

Arte, religião, filosofia, civilização e tecnologia foram inventadas pela humanidade para escapar da sua condição natural abjeta. O mito da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden é bastante apropriado, pois há uma clara ruptura entre a vida e o conhecimento. Nós enveredamos pelo conhecimento e pagamos caro até hoje. Nunca deixaremos de pagar. Atingimos a perfeita compreensão do que é a vida: a vida é um fenômeno natural que surgiu devido a condições químicas específicas, condições essas que deram à luz a seres que se replicam, geram descendentes e mudam ao longo do tempo, pressionados pelo ambiente que extingue alguns grupos enquanto premia outros temporariamente. Não há um porquê para todo esse mecanismo. Ele simplesmente acontece. Nossa espécie, para sobreviver, depende da faculdade de julgar, ainda que implicitamente. Outras espécies também, mas de forma mais rudimentar, menos sofisticada. Entretanto, todos os dias, a maioria de nós julga a vida positivamente.

O julgamento positivo em face das intermináveis adversidades está entranhado em nós. É de se esperar que esteja. Se não estivesse, não teríamos sido tão bem sucedidos como espécie. Felizmente, nosso grande azar de compreender a futilidade de tudo não afeta a todos de forma mais plena. Enquanto toda a raça humana sente que há algo de errado com a sua existência — pois, se não sentisse, não veria a necessidade de ter fé em algum ideal sobrenatural ou terreno — apenas um seleto grupo de amaldiçoados naturais recusa o mantra de que vida é bonita, é bonita e é bonita. Enxergamos a beleza, sim, mas percebemos o mecanismo insidioso que está por de trás das cortinas, controlando tudo, como uma conspiração. Até a beleza vemos com desconfiança, com razão. Invejamos os animais pela ignorância e não por romantizá-los, algo que é patologizado como depressão pelos amantes da vida e da lucidez.

“Como olhar para a floresta e para o oceano e não enxergar a beleza da criação?” perguntam aqueles iludidos que nos diagnosticam. A resposta é fácil: porque a floresta e o oceano são fábricas de morte que deixariam os administradores do pior campo de extermínio do século XX com inveja. São bonitas, sim, mas a implicação dessa beleza é mais profunda do que a análise estética afirmativa pode compreender.

Os animais são azarados por mecanicamente viverem na pele todo o horror da objetivação da Vontade de vida, e nós somos duplamente azarados por vivermos o mesmo horror e sabermos disso. O que nos espanta é a prisão de carne que nos cerca. Mas quando paramos para ver direito, só há carne, nada mais. Não há uma alma ou essência metafísica presa dentro deste corpo. Somos exilados, sim, mas sem uma pátria para retornar. É horripilante. Sorte, ao menos, é sabermos que, provavelmente, o pesadelo chega ao fim, tanto para nós como indivíduos quanto para todos os outros, coletivamente. Sorte ainda maior é a daquelas espécies que já foram extintas.


por Fernando Olszewski